A galeria dos Governadores de Macau, recém-inaugurada no Centro Científico e Cultural de Macau, com a restauração a ser mecenato da Fundação Jorge Álvares, que celebrou 25 anos, mostra os governadores desde meados do século XIX, com o último deles a ter sido o general Rocha Vieira. Além de Rocha Vieira e do também general Garcia Leandro, conseguiram ter familiares de outros governadores na inauguração…Foi uma sessão muito interessante. Tivemos a oportunidade de ter descendentes de dez governadores. Não tivemos todos, e a culpa foi nossa, porque o tempo era curto para podermos identificar todos os descendentes de governadores, que é uma tarefa hercúlea, mas tivemos até trinetos de governadores, e o que achei mais interessante é que todos tinham uma marca dentro da própria família do que foi estar em Macau, mesmo que algumas dessas pessoas nunca tenham estado em Macau. Terem tido um antepassado governador de Macau, a lenda dele, é uma coisa muito vivida por aquelas famílias. Alguns até nos trouxeram peças que tinham de memória dessa passagem por Macau, livros, alguns objetos. Esta Galeria dos Governadores era um objetivo antigo da Fundação, pois com ela conta-se a história de Macau, pelo menos desde o século XIX até ao final do século XX, e pode ver-se como foi estar naquela zona do mundo, que não era uma zona muito confortável, e realmente durante estes últimos dois séculos foi muito difícil, com a última Guerra Mundial, a Revolução Comunista, a Revolução Cultural.Há mesmo um governador que é morto por chineses, no século XIX.É Ferreira do Amaral, que é o primeiro que aparece na Galeria.Ser governador de Macau não era uma tarefa fácil...Não era uma tarefa fácil, e principalmente, se pensarmos que na altura não havia telemóveis, não havia telefones, talvez começasse a haver telexes, e que se tinha de tomar decisões muitas vezes rápidas, e muitas vezes fora de horas de Portugal, a tarefa ainda era mais difícil. Portanto, os graus de que era preciso de ponderação e de capacidade de diálogo naquela zona eram brutais, quer para o lado de lá, que era a China, quer para o lado de cá, pois muitas vezes as pessoas que estavam a decidir aqui em Portugal não tinham todo o enquadramento necessário à tomada da decisão correta.Assistiu em Macau ao fim da Administração Portuguesa, de 19 para 20 de dezembro de 1999?Uns dias antes estava já em Macau. E a razão é porque fui desde logo convidada pelo general Rocha Vieira para fazer parte dos curadores da Fundação. A Fundação Jorge Álvares foi constituída a 14 de dezembro e a primeira reunião que tivemos de curadores foi realizada em Macau no dia 18, ou seja, na véspera do dia da transição.Foi um momento emocional para si o arrear da bandeira ao fim de mais de quatro séculos de presença portuguesa?Sim, foi muito. Comovi-me muito. Não só na parte da cerimónia de troca de bandeiras, como também numa cerimónia de que pouca gente fala, mas que foi o Te Deum feito na Catedral de Macau, e que foi uma cerimónia linda, organizada pelos jesuítas, e que realmente comoveu toda a gente.Este nome encontrado para a Fundação, Jorge Álvares, é o do primeiro português, aliás o primeiro europeu, a chegar pelo mar à China, em 1513. Foi uma escolha mais ou menos consensual?Acho que foi uma escolha consensual. E dado o que é a missão da Fundação, que é fazer uma ligação à China, através de Macau, foi exatamente isso que Jorge Álvares fez. Foi realmente com ele que começaram as conexões entre Portugal e a China através de Macau.Estamos a falar das relações de vários séculos com a China, e o seu nome é um testemunho da própria ligação de Portugal à China. Explique por favor a origem de Hagatong.Eu vou explicar o que é a minha família de Macau. O meu pai nasceu em Macau, e a mãe do meu pai era de três famílias portuguesas de Macau. Nunca tinha vindo a Portugal até eu nascer. A minha avó tinha olhos azuis e era loura, assim como as irmãs e todas as primas dela, algumas até que viviam em Hong Kong. Portanto, eram todas de famílias portuguesas. Do lado do meu pai, o meu avô era oriental, chinês, mas tinha sido educado em Macau, e portanto falava corretamente português, e era católico, e isso faz uma diferença muito grande, e durante muito tempo esteve como o responsável pela secção chinesa do Banco Nacional Ultramarino.E sabe o significado do nome Hagatong?Eu não sei o significado, mas diz-se em chinês de outra maneira que não é como nós portugueses pronunciamos, mas eu não consigo repetir, porque não falo chinês, infelizmente.As bolsas de estudo são uma das atividades da Fundação, mas a vossa intervenção ao longo destes 25 anos é muito diversa. Pode dar exemplos?Além das bolsas de estudo, temos os prémios anuais que damos aos melhores estudantes da Escola Portuguesa de Macau, e também a alguns da Universidade de Macau. Mas entre as principais atividades eu poderia dizer patrocinar edições de livros em língua portuguesa, sobretudo temas que estão relacionados com Macau e com a China. Temos também a parte da música, que é um setor que temos vindo a desenvolver, não só patrocinando os encontros anuais de música chinesa e instrumentos musicais chineses, com uma parceria com uma instituição europeia, e onde vêm muitos musicólogos e investigadores deste setor de atividade estrangeiros a Portugal passar uma semana. Temos também o Festival de Música de Mafra, que fazemos uma vez por ano, com o nome do nosso benemérito maestro Filipe de Sousa. Há projetos que às vezes desenvolvemos com a comunidade chinesa em Portugal, e, por exemplo, quando a Fundação se iniciou, numa época em que não era vulgar os chineses falarem português como hoje em dia falam os residentes, patrocinámos muitas lições de português para a comunidade. Também patrocinámos os primeiros cursos de chinês no Centro Científico e Cultural de Macau, aqui em Lisboa. Temos uma biblioteca digital, que está acessível ao público em geral, com livros sobretudo para crianças e jovens. E já temos o terceiro volume de uma coleção da Isabel Alçada e da Ana Maria Magalhães também com temas ligados a Macau e à China. Fazemos uma distribuição gratuita destes livros junto das bibliotecas escolares em Portugal, e também através das escolas portuguesas no estrangeiro. Estes livros são um projeto muito interessante, porque geralmente tentamos fazer em muitos sítios ações de divulgação com as autoras, e, portanto, há interação interessantíssima com os alunos. O último livro foi sobre Tomás Pereira, que mandámos a D. Tolentino, que nos agradeceu numa carta linda.Tomás Pereira, um jesuíta que no final do século XVII serviu de intérprete do imperador chinês num tratado…Sim, num tratado com os russos.Também há a Biblioteca Jorge Álvares, que a Fundação patrocinou.Sim, no Centro Científico e Cultural de Macau, onde somos o principal mecenas. Nos últimos três anos, patrocinámos projetos de meio milhão de euros. Este número já impressiona. Um deles foi, em 2022, as instalações definitivas da biblioteca, que passou a ter o nome Biblioteca Jorge Alvares. É todo um acervo documental que existe, não só doado por particulares, como também de documentação que veio de Macau, na altura, e alguma está relacionada também com Goa, e é muito interessante. É, sobretudo, muito interessante para os estudiosos e investigadores. Depois, no ano seguinte, apoiámos o Arquivo Documental dos Governadores. O pessoal. É o arquivo privado, porque o público tem que ir para o Ministério dos Negócios Estrangeiros. O general Rocha Vieira doou o seu arquivo pessoal, o general Garcia Leandro também, a dra. Leonor Rocha Vieira doou os livros de visitas do Palácio de Santa Sancha durante os anos em que estiveram lá, fechado o último pelo presidente Jorge Sampaio, no dia 18 de dezembro, na véspera da passagem de Macau para a China. E em 2024 apoiámos a Sala dos Governadores. Isto é tudo feito no Centro Científico e Cultural de Macau, portanto, o dono, o depositário de tudo isto, é o Centro. O Arquivo recebeu, entretanto, do general Nobre de Carvalho, que foi governador nos anos 1960 e 1970, um documento interessantíssimo, que é uma carta manuscrita de Salazar, que foi entregue por um padre, com as instruções relativamente às medidas que devia tomar se houvesse problemas na altura da Revolução Cultural, e, realmente, se as instruções tivessem sido bem acolhidas, já não estávamos em Macau aquele tempo todo, e não teríamos tido estas lindas comemorações. Portanto, é só para dizer que é mesmo um documento que ninguém sabia que existia. Tivemos também os familiares do general Lopes dos Santos, que já nos fizeram doações, e nós esperamos, com esta iniciativa da Galeria dos Governadores, que mais coisas vão chegar. Estes são os três projetos importantes que fizemos nos últimos anos na Fundação. De qualquer maneira, eu gostava de dizer que nos nossos 25 anos de existência, temos patrocínios, fizemos ações, etc., estimados em mais de cinco milhões de euros. São números que acumulados são já bastante importantes e resumem o que tem sido a nossa atividade. .“Temos uma coleção da Isabel Alçada e da Ana Maria Magalhães com temas ligados a Macau e à China. Fazemos uma distribuição gratuita junto das bibliotecas escolares em Portugal.”Maria Celeste Hagatong.Do seu posto de presidente da Fundação Jorge Álvares, como é que avalia as relações Portugal-China, sobretudo em relação a evolução de Macau, 25 anos depois da transferência de poderes?Tudo o que eu oiço - não tenho ido a Macau, a última vez foi há 7 ou 8 anos - é bastante positivo. Ou seja, as relações Portugal-China foram sempre fantásticas. Eu digo fantásticas porque há um livro que diz que as relações entre Portugal e a China são como um cedro que balança, verga, mas nunca se parte. E portanto, estamos um bocadinho sempre assim. Mas estão bastante bem hoje as relações Portugal-China, sobretudo em Macau. Eu julgo que tem havido uma transição bastante consensual em Macau relativamente à passagem e à mudança da administração portuguesa. E posso dar-lhe um exemplo. Algumas das pessoas que estavam lá durante a Administração portuguesa, em algumas instituições importantes, mantêm-se nessas mesmas instituições. Um dos exemplos, que eu acho muito importante, é o vice-reitor da Universidade de Macau, o professor doutor Rui Martins. Ainda há dias, quando fez a sua apresentação na sessão comemorativa do 25.º aniversário no Centro Científico e Cultural, referiu isso, dizendo: “Eu vim para para Macau passar dois anos, ainda na administração portuguesa. Estou há 27 ou 28 anos. Como vice-reitor na mesma, tenho uma universidade que cada vez é maior, já temos capacidade para 15 mil alunos e vamos ter capacidade para chegar a 35 mil alunos com o novo polo que vamos desenvolver na Ilha da Montanha”. Portanto, é só para ver que deixámos algumas coisas. O BNU mantém-se exatamente como era, aliás, com a renovação do contrato de emissão da pataca em paridade com o Banco da China. Portanto, nós só temos que dizer que deixámos obra feita e bem feita em muitos setores de atividade.Estou a entrevistá-la como presidente da Fundação Jorge Álvares, mas muita gente a identifica mais como empresária, como mulher da banca. Saiu há uns meses do Banco de Fomento. A sua energia agora está focada na Fundação?Ora bem, eu tive que sair do Banco de Fomento, é público, por razões de saúde. É evidente que ao estar aqui como presidente da Fundação Jorge Alves não tenho o mesmo stress de estar no Banco de Fomento, nem as exigências de horários do Banco de Fomento. Portanto, estou aqui de alma e coração. Como devem calcular, eu pertenço à diáspora macaense. Sou um exemplar da diáspora macaense. E a diáspora macaense cada vez é maior, porque cada vez está mais espalhada, e, portanto, dá-me muito prazer estar ligada a estes assuntos relacionados com Macau e poder guardar a memória de Macau e dá-la a conhecer cada vez mais, a mais gente. Macau realmente é um território único. Na altura dizia-se um território de 16 km². Agora, se for à internet, já tem 32. Mas Macau, seja dos 16 ou dos 32 km², é um sítio cheio de convivências, de gente diferente, tem uma cultura muito própria, e, sobretudo, os macaenses têm uma cultura muito própria. E eu fui educada no meio dessa cultura. O meu pai era de Macau e foi presidente da Casa de Macau, portanto tive muita ligação sempre com pessoas de Macau. E, portanto, se pudermos dar a conhecer o que somos e divulgar mais a nossa cultura, acho que estaremos a fazer um ótimo trabalho.