Quando voltas para o teu país? Portugal está cheio de brasileiros e tu devias ir-te embora. Não te queremos aqui. És gorda. És burra. És feia.” Estas foram algumas das frases que Anny Silva, 21 anos, ouviu ao longo de todo um ano letivo. Estava no 9.º ano, num país diferente e não conhecia ninguém. A adaptação a Portugal, conta, foi difícil e a inclusão inexistente. “Tudo começou com a minha diretora de turma. Começou a fazer-me perguntas. Queria saber por que razão eu e a minha família tínhamos vindo para Portugal. Perguntava quando íamos embora e começou a tecer comentários depreciativos sobre imigração.” .Anny acredita que foi essa postura que originou o comportamento abusivo dos colegas de turma, dando início ao seu “inferno”. “Os colegas perceberam que tinham a liberdade de me dizer o que a professora me dizia e as coisas foram escalando. Perguntavam-me se trazia armas quando entrava na sala, diziam que lhes roubava coisas e recusavam sentar-se ao meu lado. Atiravam o meu material do 3.º andar. Tinha de procurar as minhas coisas numa espécie de mata para onde as atiravam. Cuspiam na minha água e chamavam-me nomes. Diziam que era burra e feia”, relembra ao DN. .E se na escola a vida era difícil, fora dela também havia outros problemas. “Estava longe da maioria da minha família e dos meus amigos e as coisas em casa também não estavam bem.” Começou, por isso, a procurar conforto na comida, “uma forma de controlar a ansiedade”. Em poucos meses engordou 15 quilos. “Chorava todos os dias, comecei a comer muitos doces e o que mais me afetou foi isso mesmo. O pouco que restava da minha autoestima acabou. Sentia-me rejeitada pelas pessoas, sentia-me feia e gorda constantemente”, lamenta. Acabaria por contar aos pais o que se passava, mas a jovem tinha medo e vergonha da eventual ida da mãe à escola. Pediu-lhe para não o fazer e começou a esconder o que se passava. Não procurou ajuda na escola porque não confiava nos adultos. “Se a minha diretora de turma fazia o que fazia, como poderia sentir que outro adulto me ajudaria?”, questiona. .Entretanto, o ano letivo chegou ao fim. A jovem mudou de escola e foi para o Pinhal Novo. A mudança trouxe-lhe “uma nova experiência”, sem agressões, sem bullying e uma aceitação que ainda não tinha sentido. “Conheci novas pessoas, uma diretora de turma completamente diferente e preocupada comigo e com a minha adaptação. Fui recebida de braços abertos. As professoras apoiaram-me muito. Comecei o ano muito em baixo, mas os alunos receberam-me muito bem. Já tinha um colega na minha mesa e incluíram-me nas atividades”, conta. Anny transformou a dor em algo “positivo” e garante que agora é “uma pessoa mais forte e com mais ferramentas para enfrentar os problemas da vida”. “Não precisava de ter passado por tudo isso para ser assim, mas a verdade é que hoje não aceito que me maltratem, seja em que contexto for. Eu trato bem toda a gente e exijo o mesmo comportamento. Nunca mais baixei a cabeça”, conclui..“Ser vítima de bullying moldou-me a personalidade”.Inês Andrade tem 30 anos e é a presidente da associação No Bully. Criou o projeto em 2016 e escreveu o livro O Bullying Termina Aqui! O Teu Diário de Superação, em coautoria com Marta Curto. Mas para chegar aqui passou por um processo difícil como vítima de bullying, com 14 anos. .Estava no 9.º ano e sofreu bullying psicológico e cyberbullying. “Recebia chamadas anónimas, era vítima de rumores, provocações e diziam-me coisas muito feias”, explica. Os professores, conta, foram testemunhas de muitas situações de agressão psicológica, mas “nenhum nunca interveio”. Sem apoio dos adultos, Inês procurou as amigas, mas também não encontrou consolo. “Foi o que mais me custou. Não foi a atitude dos adultos, mas a passividade das minhas amigas”, refere. Decidiu partilhar o que se passava com uma professora, mas a docente “desvalorizou”. Foi a primeira e única vez que procurou ajuda na escola. À semelhança de Anny, contou o que estava a acontecer em casa, mas não quis que os pais fossem à escola. .Assim, decidiu “lidar com a situação sozinha, sem grande sucesso”. O calvário terminou porque a vida se encarregou de o resolver. Na passagem para o 10.º ano, a turma separou-se e muitos mudaram de escola. As marcas ficaram, mas Inês decidiu passar à ação e ajudar outros jovens como ela. A No Bully foi trazida para Portugal por iniciativa da Inês, da mãe e do namorado. “Para que os jovens pudessem ter mais apoios, mais recursos para os ajudar, conhecíamos o projeto, que já tinha sucesso nos EUA, e trouxemos essa metodologia para cá. Estamos a implementar nas escolas portuguesas desde 2016 e tem ótimos resultados. Já estivemos em mais de 50 instituições de ensino e estimamos ter tido contacto com cerca de 11 mil pessoas, entre jovens e adultos.”.Inês explica que a metodologia do projeto se distingue da abordagem tradicional, que passa por “ignorar a situação ou castigar os agressores”. “Nós envolvemos o grupo de jovens, tanto os bullies como outras pessoas do grupo, e tratamo-las todas da mesma forma. Não há castigos para os agressores e é criada uma equipa que vai procurar soluções para resolver a situação. Quando os bullies percebem que não estão a ser repreendidos, mas estão a ter uma oportunidade de corrigir as situações, resolvem-se de forma construtiva e duradoura”, avança. Assim, são os próprios agressores que escolhem medidas simples para fazer face ao problema, como “receber a pessoa no início da manhã para dizer bom-dia, ajudar numa disciplina ou fazer companhia ao almoço”..Da fase mais difícil da sua vida já pouco resta, nem mesmo as marcas, pois “passaram com o tempo”. Contudo, Inês Andrade afirma: “Ter sido vítima de bullying moldou-me a personalidade.”.Associações querem mais prevenção e estudo nacional.Paulo Costa, professor e responsável pela Associação Antibullying com Crianças e Jovens, acredita haver hoje uma maior consciencialização sobre o bullying, mas também ainda um longo caminho a percorrer, e não necessariamente na legislação. “Somos muito bons no papel, o que está no papel é interessantíssimo, com comissões que envolvem professores, auxiliares, alunos e pais, mas depois onde estão essas comissões?”, questiona. Para o docente, implementar ações de sensibilização nas escolas de forma esporádica “é claramente insuficiente”. “É preciso estar constantemente a trabalhar nesse tema. A legislação até é interessante, mas a forma como é aplicada não é”, justifica. E pede mais técnicos nas escolas e formação para todos, professores, funcionários, alunos e pais. “O elemento-chave é a formação e a capacitação. Precisamos também de um estudo a nível nacional, pois o que existe são estudos localizados.”.Luís Fernandes, psicólogo e fundador do projeto bullying.pt, partilha da mesma opinião. “Precisamos de um diagnóstico nacional abrangente. O que temos são estudos de uma determinada zona do país ou faixa etária.” A grande lacuna no combate ao bullying, avança, também se prende com o facto de, “apesar de haver muitos projetos e associações”, não existir “uma visão muito central. Vão-se fazendo coisas de forma esporádica, como se fosse uma atividade sazonal. Agora em outubro fala-se muito nisto e depois perde-se esse impulso. Só conseguimos gerar mudanças quando a prevenção e intervenção é feita ao longo do todo o ano”. E essa intervenção, defende, tem de ser feita desde cedo. “No 1.º ciclo e até no final do pré-escolar já há comportamentos que, se não forem alvo de uma intervenção inicial, podem dar origem a miúdos com condutas próprias de agressores ou vítimas”, explica.