"Espancamentos, medo e exploração". PJ deteta 100 vítimas no Baixo Alentejo

A Polícia Judiciária identificou situações muito próximas de escravidão de imigrantes que trabalhavam em explorações agrícolas do Baixo Alentejo. Numa só operação, conduzida pela Unidade Nacional de Contraterrorismo e pelo DIAP de Évora, duas organizações criminosas foram visadas. Foram detidos 28 suspeitos, a maioria romenos, e sinalizada mais de uma centena de vítimas.
Publicado a
Atualizado a

Dois inquéritos e duas organizações criminosas com o mesmo modus operandi inspiraram o nome Operação Espelho dado à investigação que levou a Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da Polícia Judiciária e os procuradores o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Évora, ontem, ao Baixo Alentejo onde detiveram, até agora, 28 suspeitos de pertencerem a estas estruturas, fortemente indiciados de vários crimes: associação criminosa, tráfico de seres humanos, auxílio à imigração ilegal, angariação de mão-de-obra ilegal, extorsão, branqueamento de capitais, fraude fiscal, ofensas à integridade física, posse de arma de fogo e falsificação de documentos.

Mas o "espelho" da designação também serve para sinalizar uma duplicação/repetição de um fenómeno criminal que, de acordo com a diretora da UNCT, Manuela Santos, "se pode mitigar, mas dificilmente acabará".

Há praticamente um ano, a 23 de novembro, a sua unidade também esteve à frente de uma mega operação que visou o mesmo tipo de vítimas e de suspeitos de crimes (associação criminosa, tráfico de pessoas, branqueamento de capitais e falsificação de documentos).

Destaquedestaque"É com satisfação que verificamos a repetição destas operações, as quais confirmam os relatórios e as perceções sociais sobre tais fenómenos criminosos. Mas não deixa de ser preocupante a sua repetição, o que exigirá da parte das autoridades um programa especial de combate aos crimes ligados ao auxílio da imigração ilegal", afirma o presidente do OSCOT

"É com satisfação que verificamos a repetição destas operações, as quais confirmam os relatórios e as perceções sociais sobre tais fenómenos criminosos. Mas não deixa de ser preocupante a sua repetição, o que exigirá da parte das autoridades um programa especial de combate aos crimes ligados ao auxílio da imigração ilegal, associados aos vários tráficos, como o de pessoas, drogas e órgãos", declara Jorge Bacelar Gouveia, o presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT).

Tal como na atual operação, as vítimas eram também, na sua maioria, aliciados nos seus países de origem, tais como Roménia, Moldávia, Índia, Senegal, Paquistão, Marrocos, entre outros, para virem trabalhar em explorações agrícolas naquela região do nosso país . Os cabecilhas das associações criminosas eram, tal como agora, famílias romenas.

Questionada pelos jornalistas sobre as razões para estes casos de repetirem, Manuela Santos reconheceu que, apesar de "estas operações serem uma pedrada no charco, possivelmente vão continuar a acontecer nos próximos anos".

"É um negócio que rende muito às pessoas que exploram e não o vão abandonar", enquanto houver também interesse de imigrantes em virem para Portugal, explicou.

Citaçãocitacao"Tem de continuar a haver um esforço das autoridades. Não temos pretensão de conseguir acabar com este fenómeno, mas pelo menos mitigá-lo"

"Tem de continuar a haver um esforço das autoridades. Não temos pretensão de conseguir acabar com este fenómeno, mas pelo menos mitigá-lo", acrescentou na conferência de imprensa a diretora da UNCT, sublinhando que "tem de continuar a haver este esforço das autoridades", pois a ideia é "fazer este tipo de operações com a maior frequência possível e que as investigações durem o menos tempo possível".

Revelou ainda que nesta Operação Espelho, cuja investigação começou no início do ano, a PJ percebeu "que tinha de atalhar caminho para que as vítimas não sofressem mais", salientando situações de "intimidação muito grande, pressão psicológica e física muito fortes" que inibiam a denúncia.

Ao DN, fonte judicial que acompanhou a investigação salientou ainda o "clima de medo e terror" em que viviam as vítimas, "ameaçadas psicológica e fisicamente, várias vezes espancadas pelos membros das organizações criminosas que as obrigavam a viver em condições degradantes, revelando uma enorme falta de respeito pela condição humana".

À hora de fecho desta edição, estavam sinalizadas no terreno mais de 100 vítimas de exploração, 16 das quais, de acordo ainda com Manuela Santos, foram encaminhadas para apoio na Segurança Social. "Há pessoas mal-alimentadas, com aspeto frágil. O dinheiro é pouco e a alimentação não abunda", referiu.

Romenos, moldavos, ucranianos, indianos, senegaleses, paquistaneses, entre outros, vieram para Portugal com o legítimo sonho de terem melhores condições de vida, com trabalhos prometidos em explorações agrícolas, dependendo de culturas sazonais, ordenado, alojamento e alimentação.

Os investigadores da UNCT confirmaram que pouco ou nada foi cumprido e constataram que a realidade era bem diferente. Ao suposto ordenado - que rondaria os 800 euros - era descontado o alojamento (quase sempre uma espécie de tapete a servir de colchão no chão de quartos partilhados com mais de duas dezenas de pessoas e apenas com uma casa de banho), o transporte e a alimentação, subtraindo-lhes ainda uma taxa pelos trabalhos que lhes arranjavam.

Sem documentos pessoais, que lhe eram retirados desde que chegavam a Portugal para que não pudessem fugir, aos trabalhadores restava pouco mais de 100 euros, mas a boa parte nada sobrava.

DestaquedestaqueOs principais membros das duas organizações estiveram sob vigilância policial nos últimos meses e dessa forma a UNCT conseguiu perceber a sua forma de funcionamento estruturado e hierarquizado, como distribuição clara de funções.

Os principais membros das duas organizações estiveram sob vigilância policial nos últimos meses e dessa forma a UNCT conseguiu perceber a sua forma de funcionamento estruturado e hierarquizado, como distribuição clara de funções.

Os cabecilhas de ambas são romenos, têm portugueses como "homens de confiança", que lhes dão apoio na gestão de entradas e permanência dos imigrantes, e contabilistas que tratam da parte financeira e criação fictícia de empresas. Numa das organizações eram duas mulheres portuguesas com estas funções .

Há ainda papéis identificados dos que tratam de encontrar os alojamentos, dos que ficam responsáveis pelos transportes para os campos de trabalho e ainda quase duas dezenas a quem cabia controlar os imigrantes e, sempre que se apercebiam de algum sentimento de revolta (que foi sendo cada vez mais constante), sová-los e ameaçar de violência sobre os familiares nos países de origem para que se mantivesse em silêncio e continuassem a trabalhar.

Além dos líderes romenos, nacionalidade predominante entre os elementos da organização, e dos portugueses, estão também identificados outros suspeitos estrangeiros, entre os quais moldavos, ucranianos e senegaleses.

As localidades alvo das buscas, especialmente por serem onde os suspeitos residiam ou os imigrantes trabalhavam, incluíram Cuba, Serpa, Faro do Alentejo, Vila de Frades, Vidigueira, Ferreira do Alentejo, Portel, Alfundão, Peroguarda, Trigaches, Salvada, São João de Negrilhos, Ervidel, Torrão e Beja.

Estiveram no terreno 480 operacionais (mais um "espelho" da operação de há um ano, na qual, segundo a PJ estiveram "mais de 400"), entre os quais muitos dos antigos inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), confirmou Manuela Santos, que estão agora nos quadros desta polícia. "Somos todos PJ", asseverou.

Com a extinção do SEF a PJ passou a ter competência exclusiva de investigação de todos os crimes relacionados com o auxílio à imigração ilegal e tráfico de seres humanos.

Citaçãocitacao "O Tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal são realidades lucrativas para as organizações criminosas, que se aproveitam da assimetria económica mundial e dos consequentes movimentos migratórios, sobretudo para a Europa e América do Norte, obrigam-nos a um reforço da capacidade internas de prevenção e combate. Há um aumento substancial das denúncias de situações de tráfico pessoas, de auxílio à imigração ilegal e de crimes conexos, como seja a falsificação de documentos. São fenómenos que se têm vindo a intensificar e que, para serem controlados, necessitam de uma atuação holística em várias vertentes da sociedade, uma concertação dos poderes legislativo, executivo e judicial", afirmou o diretor nacional da PJ, Luís Neves

Ainda no seu recente discurso por ocasião do 78ª aniversário da PJ, o diretor nacional Luís Neves, destacou a investigação destes crimes como uma das cinco prioridades.

"O Tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal são realidades lucrativas para as organizações criminosas, que se aproveitam da assimetria económica mundial e dos consequentes movimentos migratórios, sobretudo para a Europa e América do Norte, obrigam-nos a um reforço da capacidade internas de prevenção e combate. Há um aumento substancial das denúncias de situações de tráfico pessoas, de auxílio à imigração ilegal e de crimes conexos, como seja a falsificação de documentos. São fenómenos que se têm vindo a intensificar e que, para serem controlados, necessitam de uma atuação holística em várias vertentes da sociedade, uma concertação dos poderes legislativo, executivo e judicial", afirmou.

Na "Operação Espelho" foram cumpridos 78 mandados de busca domiciliária e não domiciliária e, segundo o comunicado oficial da PJ, da ação, que "contou com a colaboração da Segurança Social no encaminhamento das vítimas, com necessidades de apoio social imediato, e com o apoio logístico da Força Aérea Portuguesa", na base de Beja, "resultou a apreensão de vários elementos probatórios".

Conforme o DN já noticiou, em abril deste ano, Portugal é um país onde o tráfico de seres humanos para exploração laboral é dominante, ao contrário do que acontece no resto do mundo, em que predomina a exploração sexual. O facto é referido nos relatórios nacionais e internacionais.

A vulnerabilidade da pessoa é determinante para a sua sinalização como vítima de tráfico. Depender totalmente do empregador, não possuir recursos económicos, desconhecer a comunidade local e ser obrigado a aceitar as condições em que vive, são as principais características.

O distrito de Beja é referido nos relatórios sobre o tráfico de seres humanos em Portugal como aquele onde são detetadas mais vítimas. Aconteceu novamente em 2022 com 91 pessoas sinalizadas, oriundos de Marrocos (20), Nepal (15), Índia (14), Argélia (7), Senegal (6), Roménia (6) e Paquistão (5). Leiria regista o segundo maior número, 38 no total, maioritariamente do Nepal (23), Índia (5) e Paquistão (3).

Na já referida grande operação da PJ em 2022, cuja investigação "está em fase de conclusão", avançou a diretora da UNCT na mesma conferência de imprensa, foram identificadas 350 presumíveis vítimas e constituídos 36 arguidos (entre os 22 e 59 anos), 31 dos quais estão em prisão preventiva.

Na conferência de imprensa, a diretora da UNCT salientou a "importância da cooperação policial internacional" para estas investigações, mas também alertou para a necessidade de a PJ ter "acesso direto, sem intermediários", às bases de dados que eram do SEF, entre as quais a do designado Portal SAPA (Sistema Automático de Pré-Agendamento) onde estão registadas todas as manifestações de interesse de estrangeiros que querem vir para Portugal trabalhar e residir.

"O acesso ao SAPA é muito necessário para este tipo de investigação. Ainda não acedemos e temos de aceder de forma direta, sem intermediários. O segredo é alma de negócio e a PJ é a única polícia com competência exclusiva para estes crimes. Mas penso que está a ser tratado e que a breve trecho vamos conseguir aceder diretamente", sublinhou.

Como já deu nota anteriormente o DN, um ponto muito crítico da gigantesca transição de competências policiais do ex-SEF para a PJ, PSP e GNR são as cobiçadas e ricas bases de dados do SEF, as tais 23 que o diretor nacional da Judiciária, Luís Neves, lamentou não ter "acesso a nenhuma".

A pesquisa direta pelas polícias a estas bases de dados - que contêm, entre outros elementos, estrangeiros sinalizados criminalmente por outros países, moradas de referência, circulação no espaço Schengen e roteiros de viagem - não é ainda possível.

Para já, tal como acontecia com o SEF, todos os investigadores têm de pedir essa informação à Unidade de Coordenação de Fronteiras e Estrangeiros (UCFE) e à Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), que vai ficar com as bases de dados não policiais , como é o caso do SAPA.

Segundo disse ao DN o coordenador da UCFE, ex-inspetor do SEF José Caçador, "não está ainda claro" como vai ser o acesso direto, pois "fisicamente as bases de dados estão ainda na AIMA e é à AIMA que compete dar estes acessos. É complexo e oneroso".

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt