"Cabe exclusivamente à Entidade Reguladora para a Comunicação Social [ERC] a livre gestão interna das iniciativas e publicações que decide divulgar junto do público, no âmbito daquilo que sempre foi considerada a sua atividade de manutenção quotidiana regulatória, legitimada pela sua margem de total autonomia e independência orgânica, funcional e intelectual face ao poder político. Outro entendimento envolveria uma manifesta desconsideração da natureza constitucional desta Entidade Reguladora e, ainda, uma situação suscetível de configurar uma eventual interferência indevida na sua capacidade de tomar decisões (...).".Estas palavras, que parecem acusar o parlamento de tentativa de "ingerência política" na ERC, constam de uma carta remetida esta quinta-feira pelo respetivo conselho regulador, e assinada por todos os seus quatro membros - Sebastião Póvoas, Fátima Resende Lima, Francisco Azevedo e Silva e João Pedro Figueiredo -, à Comissão de Cultura e Comunicação do parlamento. Trata-se da resposta à indagação, pelos serviços da Comissão, sobre a disponibilidade dos dirigentes da ERC para comparecer no parlamento no dia 17 de maio. Em causa está a audição requerida, em fevereiro, pelo PS, na sequência das notícias do DN sobre o facto de o presidente do conselho regulador (CR), o juiz conselheiro Sebastião Póvoas, ter decidido retirar, postumamente, o nome de Mário Mesquita, vice-presidente do CR desaparecido a 27 de maio de 2022, da capa de um livro sobre desinformação que este coordenara..Não é claro na missiva se esta significa uma recusa do CR da ERC em comparecer na audição - uma estreia nas relações institucionais entre um regulador e os legisladores - ou apenas um protesto quanto ao tema: "A temática a propósito da qual foi suscitada a audição dos Membros deste Conselho Regulador não se enquadra nas matérias sujeitas a acompanhamento parlamentar e judicial (...)..Luís Graça, o deputado do PS que preside a esta comissão parlamentar, confessa ao DN a sua perplexidade: "Li duas vezes a carta porque não queria acreditar. Trata-se de uma manifestação de indisponibilidade em colaborar com a Assembleia da República [AR], e não tenho memória de algo assim. A colaboração das entidades reguladoras com a AR é norma, e esta carta manifesta uma ausência de espírito de colaboração surpreendente." Lembrando que é o parlamento que nomeia o CR da ERC, e que "quem nomeia escrutina - a ERC tem de prestar contas, não é por acaso que a AR pode, por uma maioria de dois terços, destituir o órgão", Luis Graça informa ter remetido a carta para o presidente da AR "a pedir parecer". "A minha profunda convicção é de que o CR tem de vir, parece-me que a lei é clara nesse aspeto", conclui, não sem deixar de comentar que este CR terminou há muito - em dezembro - o mandato e "tem de ser substituído", o que, considera, não sucedeu ainda devido ao facto de PSD não indicar nomes..Recorde-se que a supressão do nome do antigo jornalista e ex-diretor do DN da capa do livro ocorreu a 20 de outubro de 2022, quando aquela fora já distribuída, em antecipação do lançamento da obra, pela editora (a Almedina), com o nome de Mário Mesquita..Esta supressão, assumida por Sebastião Póvoas, em entrevista ao DN, como sendo de sua exclusiva iniciativa - "O pelouro das publicações da ERC era e continua a ser meu. Eu é que aprovo ou não aprovo as capas e os textos das publicações" -, considerando o juiz conselheiro tratar-se de "uma invenção, uma questão que não tem relevância nenhuma" (afirmou mesmo não lhe pesar "minimamente na consciência"), mereceu palavras duras de dois presidentes da República, o atual e Ramalho Eanes. Marcelo Rebelo de Sousa exprimiu a sua "profunda estranheza", considerando o gesto de Póvoas "ofensivo da memória de alguém que tanto deu à democracia, à liberdade de imprensa e à ERC" e Eanes reputou-o de "injustificável e inaceitável"..A decisão do presidente da ERC suscitou também uma nota de repúdio, assinada por mais de 500 pessoas, qualificando-a de "vil e mesquinha" e "humilhação post mortem", e manifestações indignadas de vários coletivos - como o Sindicato de Jornalistas, a Comissão Organizadora do I Congresso Regional dos Jornalistas dos Açores e a Associação de Estudos Comunicação e Jornalismo -, algumas das quais exortando o parlamento a questionar a ERC sobre o assunto. Fazendo-se eco dessa indignação e perplexidade, o grupo parlamentar do BE efetuou um requerimento a pedir esclarecimentos ao regulador, enquanto o do PS (partido do qual Mário Mesquita foi fundador), requereu a respetiva comparência na comissão referida..Visando "um cabal esclarecimento desta matéria, e caso seja possível, (...) a reparação deste agravo feito à memória do professor Mário Mesquita", o requerimento do PS é assim agora reputado de ilegítimo por todo o CR da ERC. Uma unanimidade interessante, já que dois dos seus membros, Fátima Resende Lima e Francisco Azevedo e Silva, afirmaram ao DN não ter concordado com a decisão de retirar o nome da capa do livro; João Pedro Figueiredo não quis pronunciar-se..Para fundamentar a sua não obrigação de esclarecer o parlamento sobre o assunto em causa, a carta do CR da ERC invoca os estatutos desta entidade (aprovados pela lei nº53/2005, de 8 de novembro), e nomeadamente o respetivo artigo 73º..Ora neste artigo, cuja epígrafe é "Relatório à Assembleia da República e audições parlamentares", o número 4 lê-se: "Os membros do conselho regulador comparecerão perante a comissão competente da Assembleia da República, para prestar informações ou esclarecimentos sobre as suas atividades, sempre que tal lhes for solicitado.".Não há no artigo qualquer especificação sobre quais as "atividades" em relação às quais este órgão, eleito pelo parlamento, deve esclarecimentos ao mesmo e quais aquelas pelas quais não pode ser inquirido. Por outro lado, a própria carta da ERC admite que as "iniciativas e publicações que decide divulgar junto do público" fazem parte do âmbito da sua "atividade de manutenção quotidiana regulatória" - ou seja, das suas atividades de regulação..Sebastião Póvoas, presidente da ERC e único dos membros do CR não eleito pelo parlamento (foi cooptado pelos restantes), é a quem cabe, nos termos dos estatutos, "assegurar as relações da ERC com a Assembleia da República, o Governo e demais autoridades", assim como "representar a ERC em juízo"..O que nos leva à segunda polémica a que a ERC, e nomeadamente o seu presidente, está associada: uma guerra judicial com o Ministério da Saúde, na qual exige que este castigue um seu ex-funcionário que acusou Sebastião Póvoas de perseguição..Não, não é todos os dias que vemos um regulador e um ministério em guerra nos tribunais - e por causa de um trabalhador que um considera ter violado "os deveres de respeito e correção", exigindo vê-lo punido, crendo o outro que o dito funcionário não merece qualquer punição porque limitou a não ser "subserviente" e a usar do "direito à liberdade de expressão"..Assim é o caso que opõe, no Tribunal Administrativo, a ERC ao ministério, réu numa ação colocada por aquela. Ação que, de acordo com a contestação apresentada por este último, e à qual o DN teve acesso, visa o reconhecimento do direito de punir disciplinarmente um trabalhador que desde junho de 2022 já não está sob o poder disciplinar da ERC.."Um direito apenas divisável pela própria", proclama o ministério de Manuel Pizarro, que reputa de "despropositada" e "até, perdoe-se a franqueza, absurda" a invocação pela ERC de uma alegada violação da sua "autonomia de gestão" e da sua "independência orgânica, funcional e técnica"..O réu nega que a ERC tenha sequer legitimidade para intentar a ação, que visa impugnar dois atos administrativos realizados, respetivamente, pelo inspector-geral das Atividades em Saúde e pelo ministro. E explica porquê: nos termos da lei, "tem legitimidade para impugnar um ato administrativo (...) quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos"..Pergunta o ministério: "Em que medida a procedência da presente ação teria para a Autora [a ERC] um interesse real e atual; e que utilidade dela poderia retirar?" Nenhum, conclui, já que "não sofreu qualquer dano real e efetivo nos seus interesses, nem é detentora de um direito subjetivo à punição do trabalhador relativamente a quem instaurou o procedimento disciplinar.".A menção a um hipotético "direito subjetivo à punição", e à ideia de que a ERC estaria a comportar-se como se da não punição do trabalhador resultasse um dano "direto e pessoal", ganha uma tonalidade irónica pelo facto de o processo disciplinar em causa se ter fundamentado numa carta enviada pelo dito trabalhador ao CR da ERC, acusando o respetivo presidente de "feroz e incompreensível perseguição", e os restantes membros do conselho de "conivência"..Como o DN noticiou em dezembro, esta carta, datada de 10 de maio de 2022, é da autoria do jurista Rui Mouta, funcionário público dos quadros da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) que estava então colocado, em comissão de serviço, na ERC. Comissão de serviço que foi unilateralmente terminada pela ERC logo nesse mês, sem prejuízo de instaurar um processo disciplinar a Mouta..É esse processo disciplinar, que a ERC instruiu e levou até ao fim, apesar de o funcionário já ter regressado ao serviço de origem, o motivo da colocação do ministério da Saúde no banco dos réus..Decidindo que Mouta teria de ser multado em seis dias de salário por "violação do dever de correção e urbanidade", a ERC enviou essa decisão à IGAS, já que esta era, desde junho de 2022, a detentora do poder disciplinar sobre o trabalhador. Porém, examinando o processo, a IGAS decidiu pelo seu arquivamento..Esta decisão, tomada em novembro por Carlos Carapeto, o dirigente da IGAS, fundamenta-se na conclusão de que as imputações de Mouta a Sebastião Póvoas e aos restantes membros do Conselho Regulador da ERC não tinham excedido os limites da liberdade de expressão.."Os deveres de respeito e correção não significam subserviência, cega e incondicionada, aos superiores hierárquicos", nem supressão do direito de defesa, "nem, muito menos, do direito de falar" ou de ter de acatar, em silêncio, "reprimendas verbais". (...) É para nós evidente que as afirmações proferidas pelo arguido não excederam a dimensão tolerada, inerente à liberdade de expressão e à crítica", lê-se no relatório da IGAS que fundamentou o despacho de arquivamento..Perante este arquivamento, o regulador dos media, considerando que Mouta afrontara "o prestígio e imagem do conselho regulador e da própria ERC", acusou a IGAS de "violar a lei", e "extravasar as suas competências" por "não lhe caber julgar da validade de atos praticados por outras entidades que não estão sujeitas à sua hierarquia ou tutela", apelando, em "recurso hierárquico" ao ministro da Saúde, Manuel Pizarro, para que anulasse ou revogasse o despacho de arquivamento e sancionasse Mouta. Como Pizarro recusou, a ERC avançou para tribunal, pedindo a anulação das decisões do inspetor-geral e do ministro.