Em 2023, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) recebeu 78 queixas de discriminação de utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em relação ao acesso a exames em centros privados de diagnóstico e terapêutica. Em 2024, foram 77, mas, em 2025, até outubro, já entraram 96 queixas, mais do que o total registado em cada um dos anos anteriores. A este ritmo, o número de queixas deverá ultrapassar, pela primeira vez, a centena, no final deste ano . A ERS confirmou ao DN o aumento de queixas este ano e que estas têm visado sobretudo a dificuldade no acesso à marcação e realização de exames, como ecografia, mamografia, ressonância ou TAC, pois as vagas existentes nos centros privados para o SNS podem levar a uma espera de três a quatro meses. O mesmo acontece também em relação a tratamentos de reabilitação, como fisioterapia. Esta situação já levou a ERS a lançar um alerta de supervisão aos prestadores de serviço convencionados, no dia 29 de outubro, lembrando que “a discriminação de utentes é proibida” e que qualquer ação “discriminatória” pode levar à aplicação de coimas.Ao DN, a Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP), que tem alguns associados com convenções com o SNS, assume o problema, justificando-o com o facto de haver cada vez menos médicos a quererem trabalhar neste regime, por a convenção, ou os preços praticados pelo Estado, estarem cada vez mais “desatualizados”. O presidente da APHP, Óscar Gaspar, confirma este fenómeno, sublinhando mesmo que “a situação pode não ter retorno” - mantendo-se assim as dificuldades no acesso para os utentes do SNS. “O fenómeno tem vindo a acentuar-se ao longo do tempo e a situação tende a ser de não-retorno, o que constitui um grave problema de acesso, porque a perspetiva é de que os recursos humanos especializados na saúde sejam cada vez mais escassos”, disse.Para o presidente da APHP as entidades da saúde estão cientes desta situação, destacando que, no final de outubro, foi enviada uma carta à ERS a solicitar que, dentro das suas competências, “intervenha urgentemente nesta matéria”. Mais. “Esta semana, terça-feira, dia 18, tivemos uma reunião com a ERS em que as convenções foram o tema principal. Cada vez há menos médicos e especialidades a aceitarem trabalhar com os regimes convencionados (da ADSE e do SNS), porque consideram que as condições não são adequadas e, para mais, com o aumento da procura, têm alternativas mais equilibradas.” Óscar Gaspar referia-se ao facto de os preços praticados pelo Estado não serem atualizados quase há dez anos. Motivo que levou a APHP a solicitar à ERS, na missiva enviada em outubro, que se pronuncie sobre “o montante das taxas e preços de cuidados de saúde administrativamente fixados”. Em termos de contextualização, recorde-se que a rede de prestadores convencionados reúne 3265 centros de análises, de radiologia ou de tratamentos, segundo a listagem no site da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), e que o próprio SNS, que tem mais de dez milhões de utentes inscritos, depende quase na totalidade destes centros para conseguir dar resposta aos seus utentes, mas o presidente da APHP insiste que “os termos das convenções estão cada vez menos adequados aos meios de diagnóstico ou cirurgias tal como são realizados e, em março, confirmámos que a percentagem da atividade realizada pelos privados com o SNS é cada vez menor”. Segundo referiu ao DN, “o SNS sabe que os equipamentos, os consumíveis e os recursos humanos são hoje muito mais onerosos do que há três ou cinco anos, mas, ainda assim, não fez qualquer ajustamento das condições”..Gestão na Saúde: Montenegro aponta objetivo de baixar a fatura a pagar aos fornecedores do SNS. O DN contactou também a ACSS, que é a entidade que tem agora a seu cargo a contratação de convenções, para saber se, de facto, o número de centros convencionados tem vindo a reduzir nos últimos anos, mas esta não disponibilizou tais dados, referindo apenas que “as entidades convencionadas têm-se mantido estáveis, exceto nos casos que, pela natureza comercial das entidades tenham sido extintas ou sido alvo de fusões e concentração de serviços”.No entanto, confirma que “o regime de convenções que permanece em vigor decorre do Decreto-Lei n.º 139/2013, para todas as áreas de Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica (MCDT)”. Na resposta ao DN, a ACSS assegura ainda estar, “neste momento, a consolidar os dados para poder apresentar a evolução anual das entidades convencionadas com o SNS”, já que “esta informação estava distribuída pelas cinco Administrações Regionais de Saúde, que, entretanto, entraram em processo de extinção na sequência da reforma organizacional em curso”.Coimas aplicadas pela ERS podem ir dos mil aos 45 mil eurosA situação é muitíssimo importante, porque, e como explica ao DN a ERS, “as queixas referidas dizem respeito a relatos de situações em que os respetivos estabelecimentos convencionados, para efeito de acesso a consultas ou MCDT, definem regras distintas de agendamento e de acesso, consoante a qualidade em que os respetivos utentes se apresentam (beneficiário do SNS, de subsistema de saúde, de seguro ou plano de saúde, a título particular, etc.), preterindo ou protelando o acesso a cuidados de saúde de utentes do SNS”. E foi esta situação que levou a entidade reguladora a avisar os prestadores de serviço convencionados que “o acesso a cuidados de saúde por utentes do SNS deve ser garantido com respeito pelos princípios da universalidade, da igualdade e da proibição da discriminação”, referindo ainda que, “no caso do acesso programado, isto é, aquele que é previamente agendado, deverá ser cumprido o critério da prioridade temporal, nos termos do qual é assegurado aos utentes o acesso aos cuidados pretendidos de acordo com o momento temporal em que o solicitaram, numa lógica de First come, first served”.Na missiva feita no final de outubro, a ERS diz mesmo que, “no exercício dos seus poderes de supervisão”, pode intervir “através da emissão de ordens e instruções, quer na esfera sancionatória, por via da abertura de processos contraordenacionais e condenação dos prestadores visados no pagamento de coimas”, sublinhando que “a adoção de uma prática discriminatória pode ser punível com coima de 1000 euros a 3740,98 euros ou de 1500 euros a 44.891,81 euros, consoante o infrator seja pessoa singular ou coletiva”. Na resposta ao DN, a ERS deixa claro que, “no âmbito das suas competências estatutárias tem tido um longo histórico de intervenção em matéria de garantia do acesso a cuidados de saúde no âmbito do SNS (em particular, em estabelecimentos convencionados) e à prevenção de práticas de discriminação e rejeição de utentes” e que vai continuar.APAH lembra que preços praticados pelo SNS são ”negativos” há vários anosMas do lado dos convencionados, a APHP também não vai desistir de querer ver as convenções atualizadas. Na carta enviada à ERS, a que o DN teve acesso, a associação socorre-se até das conclusões de um estudo recentemente divulgado e realizado pelo ISEG para a Confederação da Indústria Portuguesa e nomeadamente para o seu Conselho de Saúde, Prevenção e Bem-estar, sobre a evolução da despesa do SNS na última década e as causas do seu aumento, recordando que na área dos MCDT “as conclusões são claras”. Isto é, “as despesas com os meios complementares de diagnóstico e terapêutica realizados pelo SNS ou por entidades convencionadas observam uma diminuição, em termos reais, de 2015 a 2023” - “o efeito preço é sempre negativo”. Na carta enviada à ERS, a APHP detalha ainda mais os seus argumentos ao referir que, no período que vai de 2015 a 2023, “a variação das despesas com os MCDT realizados pelo SNS ou por entidades convencionadas foi negativa - de -99,1 milhões euros, sendo significativamente predominante o efeito quantidade, -42,2%, com 420,6 milhões euros e ficando o efeito preço em 524,2%, com -519,7 milhões euros”. O que quer dizer que “o efeito preço, ao ser muito negativo, contribuiu para que as despesas com os meios complementares de diagnóstico e terapêutica realizados pelo SNS ou por entidades convencionadas não só não aumentassem tanto, como até diminuíssem, anulando o aumento provocado pelo efeito quantidade”, lê-se no documento. “A evolução é de tal forma impressiva, que o estudo dá conta que o preço médio dos atos de MCDT se reduziu de 5,9 euros em 2016 até 4,1 euros em 2023, o que representa uma quebra de 30,5% em termos reais”.E é neste sentido, que a APHP justifica a situação que, como diz, tende a agravar, “quando os preços não são eficientes, fica em causa, nomeadamente, a atratividade suficiente para, tendo em conta as condições de mercado, os operadores privados quererem aderir às convenções, assim promovendo o acesso à saúde” e os “incentivos à prestação de cuidados com qualidade e segurança por parte dos operadores privados.” Solicitando à ERS que se “pronuncie sobre o montante das taxas e preços de cuidados de saúde administrativamente fixados, ou estabelecidos por convenção entre o SNS e entidades externas, e zelar pelo seu cumprimento, bem como “tomar iniciativas concretas que permitam a revisão das convenções”. Dos números aos custosExames - Todos os anos são prescritos milhares de exames a utentes do SNS para serem realizados nos centros privados de diagnóstico e terapêutica. De acordo com o Portal da Transparência do SNS, em 2024, na área das análises clínicas foram realizados quase 58 mil exames (57.906), na área da Radiologia quase 78 mil (77.603) e na área de Cardiologia pouco mais de 35 mil (35.003). Mas, de acordo com a associação que representa o setor das Análises Clínicas, neste mesmo ano, os centros convencionados realizaram cerca de 300 mil atos por dia, o que dá cerca de 200 milhões de análises ao ano. Despesas - Em 2024, e segundo o Portal da Transparência, o SNS gastou na área das análises clínicas 244 milhões de euros e mais 106 milhões de euros em exames de radiologia. Ao todo, e só nestas áreas 350 milhões. Mas, segundo dados oficiais, a despesa com fornecimentos e serviços externos cresceu cerca de 4,3%, mais 221 milhões de euros em relação ao ano anterior.