Setúbal vista do Castelo de Palmela.
Setúbal vista do Castelo de Palmela.Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens

Em toada marítima por Setúbal

Quanto mais nos aproximamos do Verão mais nos chegamos também ao mar e suas delícias. Também se come carne, mas com oferta assim rica é evidente a rendição ao reino de Neptuno. Setúbal abraça a Arrábida, o imenso areal, e o mar mais fecundo. E nós entregamo-nos, pois claro.
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Setúbal está a atrair atenções junto de diversos grupos de interesse, e está a afirmar-se com capital informal do Atlântico, com produtos, correntes e tradições que se foram acomodando ao gosto de todos. Passear no centro, visitar as suas mesas e conhecer o património arquitetónico é fonte de surpresas que nos viciam logo na primeira investida. Receituário antigo, convivência da cozinha rústica com a aristocrata, o equilíbrio é o que absorvemos e confirmamos. Na capital do Sado está tudo certo. Todos a Setúbal!

FOTO Paulo Spranger/Global Imagens

Debulhe marisqueiro manual e rico

Custa imaginar que há cerca de um século a sadina avenida Luísa Tódi estava cheia de mesas e gente que ali acorria principalmente para comer ostras. A crassostrea angulata é a variedade local e é secular o gosto por elas a ponto de configurar perdição e arrastar hordas de apreciadores. Infelizmente são atreitas a contaminação, o que fez com que o curso da sua história fosse trajectória interrompida e décadas depois retomada, ciclicamente. O vaivém repete-se em todos os bancos de ostras do mundo, há um esgotar, pausa e retomar que não adianta pretender alterar. Mas é verdade que as daqui beneficiam dos nutrientes da baía do Sado em Setúbal e por isso são tão desejadas.

Mais raras são as santolas do Sado, de corpo relativamente pequeno quase esférico, patas compridas e fortes, para se manterem na força da corrente. Ovadas, são iguaria difícil de superar, sabor verdadeiramente exótico, cozem-se e preparam-se como a sapateira, e são de comer e chorar por mais.

Ostras, uma das iguarias da região. Sara Matos/Global Imagens
Santola do sado. Paulo Spranger/Global Imagens

Amêijoas à Bulhão Pato ou ao natural, apenas escaldadas estão sempre presentes em Setúbal e atrevo-me a sugerir a substituição pelo “parente pobre” mas incrivelmente saboroso que é o berbigão. Na configuração ancestral, não leva vinho branco, mas não se admire se assim lhe for servido, é apenas pena pelo inevitável aviltamento do sabor do marisco.

Peixe grelhado é o que perfuma os telheiros e grelhas de restaurantes ribeirinhos e casas particulares, estão aí as sardinhas - consta que este ano as há bem boas - e só por si são já chamariz grande, o produto tem procura o ano inteiro e é limitado apenas pelos tempos obrigatórios de defeso para preservação da espécie. Há que experimentar pelo menos uma vez na vida a sardinha assada consumida em fatia grossa de pão, tasquinhada devagar para deixar apenas a espinha e a cabeça, e mesmo esta muitas vezes também se come.

Amêijoas. Paulo Spranger /Global Imagens
Mercado do Livramento encontra-se sempre peixe de mar de várias bitolas. Álvaro Isidoro / Global Imagens

No Mercado do Livramento encontra-se sempre peixe de mar de várias bitolas, um robalo de dois quilos ou mais para escalfar ou um imperador de quilo e meio para assar é o nirvana do prazer estival que se avizinha. Na orla restaurativa também se consegue arranjar encomendando, mas o preço aumenta substancialmente com o exotismo da empreitada.

Deliciosos salmonetes se servem nalgumas casas setubalenses, tal como em Sesimbra também aqui junto à rocha as temperaturas do mar são incrivelmente baixas, dando aos peixinhos rosados pendor muito peculiar e saboroso.

É pela pedra também que encontramos lagosta de nível quintessencial, foi sempre muito apreciada pelos setubalenses. Há que saber procurar, nalgumas casas é tratada com a excelência que merece, confirmando o nível culinário supremo de que o crustáceo é capaz. Come-se praticamente tudo e há que reservar paciência para ir até ao fim. É uma peça cara e curiosamente integra-se em declinações de topo do arroz de marisco, apesar da sua glória estar no consumo individual.

Sempre que quiser perceber como o consumidor de Setúbal prefere o marisco ou o peixe, pense sempre em peças individuais, sem misturas. Nas casas de família essa á a opção mais frequente. Em situações festivas pode eventualmente servir-se um arroz, que há que dizê-lo, é um regalo para os sentidos.

As adoráveis caldeiradas e outras criações populares

A chamada cozinha de pescador tem fortíssima influência no imaginário de Setúbal e com pouco se faz um lauto banquete para toda a família. Temos sempre duas opções de requinte para o vezeiro prato de tacho, ou monoproteína ou com a base mais usual, de congro, patarroxa e raia, entre outros. A primeira é alquímica e sofisticada - normalmente feita sem qualquer adição de água ou vinho -, enquanto a segunda é feita com o propósito de aproveitamento integral de aparas e amanhos dos peixes. A forma como se faz resulta do que há disponível, sendo que nas cabeças, barbatanas, rabos e outras partes menos nobres é onde está muito do sabor do pescado.

Rui Minderico/Global Imagens

Se queremos entrar na alma desta cozinha rústica mas cheia de sabor, temos de abdicar dos luxos relativos de ter sempre os peixes despinhados e as partes moles separadas. Mesmo nestes casos, a utilização de água é muito contida, pois os legumes que se colocam no tacho vão suar e dar substrato ao maravilhoso caldo que todos veneramos. Um simples rascasso da pedra também pode dar uma experiência fabulosa à mesa. Levado em cama de cebola e batata ao forno em tabuleiro resulta num exercício de exploração para que faltam as palavras. Setúbal é templo deste tipo de labor e não corre o risco de abrandar, pois mesmo os mais pequenos gostam de pegar nas partes ossudas do peixe e meticulosamente extrair o melhor do sabor de cada exemplar.

Banquete moderno é o que faz com abusiva coroação do choco frito como grande iguaria de Setúbal. Vai muita gente ali só por ele e não tem mal algum confessar esse pecado, antes seguramente encontra eco no país inteiro. A crocância conferida pela boa fritura das tiras de choco e o sabor resultante quando o dito foi marinado ou temperado a preceito configura tentação e come-se sem parar. E há quem o faça muito bem, é uma cidade popular e aberta a todos que se afirma e pronuncia.

Choco frito. Sara Matos / Global Imagens
Caldeirada de peixe. Natacha Cardoso / Global Imagens

O mesmo se pode dizer dos jaquinzinhos - carapauzinhos - fritos com uma boa açorda ao lado, um “nibble” standard por estas terras prodigiosas e com muita razão. Frequentar a mesa de Setúbal é abdicar do preconceito e aprender a dar valor aos bons momentos à roda de uma mesa partilhada.

Doçuras, queijo e vinho

Quem não conhece a torta de Azeitão? Na configuração de bolo de pastelaria, que é a mais frequente, é uma pequena torta de massa enrolada recheada de doce de ovos, com textura muito macia. Na verdade foi criada para integrar o farnel que os viajantes levavam no autocarro rumo ao sul e que se apanhava ali mesmo, na vila de Azeitão. A receita original contempla uma torta grande e caseira, que os locais ainda fazem para colocar na mesa em dias de reunião familiar, e serve-se à fatia. As proporções são mais agradáveis nesta versão caseira, que contudo muitos não provaram ainda nem conhecem. A doçaria é assunto delicado em qualquer parte e aqui não é excepção.

Os biscoitos em forma de S Casa Cego. Leonardo Negrão/Global Imagens
As Tortas de Azeitão. Rodrigo Cabrita / Global Imagens

Em conversa com Domingos Soares Franco, avatar vínico da clássica casa José Maria da Fonseca, dou-me conta de alguma doçaria que se perdeu nas brumas do tempo. Juntamente com seu irmão António, representa todo um legado vínico e de costumes que importa sempre sondar. A verdadeira torta de Azeitão sempre se fez em sua casa, juntamente com outras receitas de família passadas de geração em geração. Acrescem a tradição do moscatel de Setúbal, da casta Periquita - Castelão - e de muita da inovação operada no mundo vínico e que com o tempo se estendeu a todo o país.

Há uma delícia chamada Esses de Azeitão, biscoitos que Domingos Soares Franco recorda com saudade dos tempos áureos da Casa Cego, na rua principal de Azeitão, fundada em 1901. Trata-se de biscoitos de canela com a forma de S e que obrigatoriamente têm de ser crocantes por fora e macios por dentro. Tal como na casa da família dos irmãos Soares Franco, passados mais de 120 anos todas as casas de família fazem os seus e à sua maneira. Importante é não os deixar cozer demasiado, prejudica muito o sabor e o prazer no momento de consumo. São, no entanto, ligação feliz com o famoso moscatel de Setúbal, ponte vinho-comida que rapidamente se torna indispensável.

O moscatel da região. Reinaldo Rodrigues / Global Imagens

Há muitas outras delícias - tantas quantos moscatéis diferentes - que são o convite para toda uma descoberta. Na genealogia da família consta também um parente que decidiu trazer da Serra da Estrela pastor e ovelhas e foi nada mais nada menos que o primeiro queijo de Azeitão, que é em tudo semelhante ao que se faz pela serra mais alta de Portugal. Em curas diferentes gosta de abordar o moscatel de Setúbal, mas os vinhos tintos e brancos clássicos não enjeitam a contenda, antes harmonizam de forma deliciosa. Muito para descobrir na prodigiosa Setúbal.

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