Lurdes é uma mulher de 74 anos, moradora na região do Porto, com problemas de saúde e habituada a recorrer tanto ao setor público, como ao privado para os resolver, mas nunca imaginou que uma queda “sem sentido” no dia 4 de outubro de 2024 num hospital do Serviço Nacional de Saúde (SNS), onde estava a ser preparada para uma operação à bexiga, problema que a atormentava há meses com grande sofrimento, pudesse mudar a sua vida. Oito meses depois, questionada pelo DN sobre por que não avançou com uma queixa no hospital onde tal aconteceu e até para outras entidades, desabafa com sinceridade: “Fiquei tão abalada com tudo, porque já não pude ser operada à bexiga naquele dia, que acabei por dizer ao marido que não avançava com queixa nenhuma. Só queria que as duas situações se resolvessem e que não fosse prejudicada em nada, pois tive de remarcar nova operação para aquele médico e naquele hospital.”O problema na bexiga levou-a até ao médico especialista que dava consultas numa unidade privada no Norte: “Tinha muito boas referências”, justifica. “O médico tentou vários tratamentos, que não funcionaram, e acabou por me falar na cirurgia. Aceitei. Mas tinha de ser operada num hospital do SNS da região norte, onde trabalhava, porque ele não fazia aquele procedimento no privado. Aceitei também. A operação foi marcada para 4 de outubro de 2024”, conta Lurdes ao DN, relembrando o sucedido. “Fui de véspera para a cidade onde fica o hospital central onde deveria ser operada. Seria a primeira a entrar no bloco, mas, na véspera, avisaram-me que, afinal, naquele dia as operações eram noutra unidade, mais pequena, a uns cinco quilómetros dali. Cheguei à unidade indicada antes das 8h00. Estava eu e outra senhora. Fomos levadas para uma sala com duas camas, onde nos iam preparar para a cirurgia. Quando chegámos, havia uma funcionária a lavar o chão. O funcionário que ia connosco até comentou: ‘Não te tinha dito para começares pelo outro lado? Estas senhoras vão preparar-se para o bloco’.”Lurdes estranhou o chão molhado, estranhou mais ainda quando teve de ficar descalça em cima dele enquanto esperava que a viessem buscar. Foi então que perguntou à funcionária: “‘Não me arranja uns chinelos?’ Disse-me que não tinham. Só tinham protetores de plástico para colocar nos sapatos. Não pensei e aceitei. Calcei-os. E assim que dei um passo escorreguei no chão molhado, bati com a cabeça no chão, perdi os sentidos, só acordei quando já ia na ambulância para as urgências do hospital central onde devia ter sido operada e só me lembro de ver sangue. Levei nove pontos no lábio superior. Tive de fazer uma TAC por causa da cabeça e fiquei a saber que tinha partido o pulso.”.Caiu no São Francisco Xavier e deixou o trabalho. Hospital refuta responsabilidades. Caso está na Justiça.Ao DN, Lurdes conta tudo de rajada, culpabilizando-se até a si própria por não ter pensado e ter aceitado “os pezinhos de plástico” e de ter arruinado o dia em que pensava que iria resolver, finalmente, “o meu problema de bexiga, num dia horrível, passado em exames e cheia de dores”. Ficou internada uma noite na urgência para observação. “No dia seguinte tive alta, com gesso no braço esquerdo e medicada”, mas com o decorrer dos dias as dores não abrandavam. Teve de voltar a uma urgência hospitalar. “Fizeram-me um RX e disseram-me que não tinham boas notícias para me dar: ‘O seu braço não está no sítio e vai ter de ser operada’. Não queria acreditar”. No SNS, disseram-lhe que teria de esperar, pelo menos três semanas, para ser operada. Mas “fui ao privado e operaram-me em três dias. Só queria resolver a situação o mais rapidamente possível. Correu tudo bem, na altura”, porque, hoje, “sei que este braço não está bem. Levei uma placa de metal e parece que o braço não me pertence”, desabafa, admitindo, mais uma vez, sentir ainda “muita tristeza” com o que lhe aconteceu.Depois da operação ao braço, voltou ao médico que a ia operar à bexiga. “Insisti em ficar com o mesmo médico e não fiz queixa, precisamente, porque não queria ser prejudicada na marcação da nova data para a operação à bexiga, mas contei-lhe o sucedido. Ele parecia não saber e estranhou muito estarem a lavar o chão. Mas não comentou nada mais. A operação ficou para 27 de janeiro deste ano no hospital central, onde deveria ter sido operada na primeira vez, e correu tudo bem. Mas se estou melhor da bexiga? Não muito. E o braço continua a não ter a mesma força.”Olhando para trás, Lurdes diz não ter tido coragem, nem forças, para se queixar a quem quer que fosse. “Estava abalada e exausta. Ainda estou. Mas aquela queda mudou tudo na minha vida”, afirma ao DN, pedindo para que não a identifiquemos na totalidade. Como Lurdes, há muitos outros utentes que não se queixam às entidades competentes, mas as quedas que sofrem, essas, deveriam ser todas registadas no Sistema Clínico de cada hospital, sendo depois os dados enviados para os Serviços Partilhado do Ministério da Saúde (SPMS), que depois os envia para o programa Notifica, gerido pela Direcção-Geral da Saúde (DGS), destinado à notificação e gestão de incidentes ocorridos no Sistema de Saúde.Número de episódios de quedas tem vindo a aumentar nos últimos anos De acordo com os dados disponibilizados ao DN, em cinco anos, de 2020 a 2024, foram registadas 3267 quedas de cidadãos e de profissionais, 474 no primeiro destes anos, 490 no segundo, 666, 815 e 822 nos subsequentes. Segundo é referido pela própria DGS, na resposta ao nosso jornal, “os dados revelam um aumento do número de notificações de quedas, refletindo um crescente reconhecimento da relevância da notificação destes incidentes de segurança do doente”.Quem está no terreno concorda. O enfermeiro diretor da Unidade Local de Saúde (ULS) de Gaia/Espinho, cuja especialidade é a área da Reabilitação, diz mesmo ao DN que “as quedas são uma grande preocupação e uma prioridade para esta ULS”. O presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), Xavier Barreto, corrobora também: “Estas situações são uma preocupação para os hospitais, porque têm custos, aumentam os tempos de internamento, e prejudicam os resultados em saúde com os danos que têm para os doentes, alguns casos são fatais.”Esta visão é também partilhada por quem representa o setor privado. O presidente da Associação Nacional da Hospitalização Privada (ANHP), Óscar Gaspar, assume ao DN que “o tema é muito importante, desde logo para as pessoas, mas também para as organizações, e, por isso, há uma crescente preocupação”. Óscar Gaspar considera que “a utilização das instituições de saúde é muito intensa e cada vez com maior frequência de pessoas idosas (que, em alguns casos, acumulam dificuldades de mobilidade com discernimento decorrente das doenças)”, devendo “os prestadores de cuidados, conscientes deste problema, criar condições para o minimizar e resolvê-lo quando ocorre.” Para a advogada Rita Duarte, que já defendeu casos em que estão em causa os direitos dos utilizadores, na área da Saúde “deveria haver uma solução interna, em cada unidade, além das reclamações que os utentes pudessem fazer às entidades competentes”.Ainda são poucos os utentes que se queixam às entidades competentes Mas nem sempre é o que acontece. Aliás, um dos casos que a jurista acompanha neste momento começou com o hospital a não responder à utente e a não reconhecer a queda, quando a utente teve de receber tratamento imediato nas urgências. Mais tarde, a nova carta da utente, acabou por responder, mas sem assumir “responsabilidades”, por considerar que a queda foi provocada por um cano de lavatório em cima do passeio que estava “sinalizado” - a queda mudou a vida da utente que se viu forçada “a deixar o trabalho que tinha”, explica Rita Duarte. A utente avançou com uma queixa na Justiça, que dura desde 2021.O DN contactou o hospital em causa, o São Francisco Xavier, em Lisboa, que respondeu: “Estando um processo a decorrer na Justiça, não se considera oportuno prestar comentários adicionais. A segurança dos doentes e acompanhantes é uma preocupação permanente da ULS Lisboa Ocidental, que tem procurado adotar as medidas adequadas nas suas diferentes unidades.” Mas a atitude desta utente nada tem a ver com a da maioria dos que sofre episódios deste tipo. “A maioria não se queixa, porque, provavelmente, não quer passar pelo calvário que a minha cliente está a passar”, referindo-se ao caso que tem em mãos, em que a queda ocorreu a 26 de maio, com a primeira queixa para o hospital a 1 de junho.Os dados disponibilizados ao DN pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS), organismo que detém competência para monitorizar e sancionar unidades por estas situações, demonstram precisamente esta realidade. Em cinco anos e quatro meses, desde 2020 até ao final de abril de 2025, foram recebidas 463 queixas por quedas em hospitais do SNS, respetivamente 87, 86, 98, 116, 76 e 25 nos primeiros quatro meses deste ano. Números muito distantes das quedas registadas pela DGS nas unidades de saúde. Na resposta ao DN, a ERS explica que das situações recebidas algumas levaram a processos de instrução que envolveram, nomeadamente oito unidades, como os hospitais de Guimarães, São João, CUF Cascais, Particular do Algarve, o da Santa Casa da Misericórdia de Santarém, o Garcia de Orta e a ULS de Entre Douro e Vouga e a unidade Lorsenior. Mas o desfecho destes processos ainda se desconhece.O enfermeiro diretor da ULS Gaia/Espinho reforça ao DN que a aposta para esta situação deve ser a prevenção. E dá como exemplo o número de episódios registados este ano até ao mês de junho, e apesar de o tema ser uma prioridade estratégica. O número total de episódios em 2024 foi de 415 e até junho deste ano já são 236, afetando sobretudo idosos dos 65 aos 80 anos, maioritariamente do sexo masculino. “Mesmo com prevenção, as quedas acontecem”, sublinha Belmiro Rocha, reconhecendo que é preciso fazer mais. Mas não só. O enfermeiro admite também que, dentro das próprias unidades, os episódios de quedas estão “subnotificados”. Facto que também é assumido pela própria DGS. “A subnotificação nesta área continua a existir, não só em Portugal como a nível internacional, de acordo com a OMS”, refere na resposta ao DN. Quedas podem estar “subnotificadas”O enfermeiro diretor explica que na ULSGE “tudo fica registado. A avaliação de risco de queda dos utentes, bem como a sua monitorização”, embora admita que possa não ser assim em todo o lado. “Admito que os registos de quedas possam estar subnotificados, sobretudo quedas pequenas, sem grandes consequências, mas que não deixam de ser quedas. Penso que este deveria ser um aspeto a melhorar”, diz, defendendo que “a notificação deveria incluir todas as quedas, tenham consequências ou não”. Esta mudança, afirma, seria importante “para termos noção real do problema. Até podemos ter um caso em que o doente tropeçou nos seus chinelos e caiu sem bater com a cabeça em lado nenhum e sem ter perdido a consciência, mas caiu e este episódio deveria ser notificado. Mas admito que, se calhar, nesta e noutras circunstâncias, estas situações não sejam devidamente notificadas”.Sobre quedas grandes, o enfermeiro diretor acredita que estas “estão todas devidamente notificadas, nomeadamente pelos enfermeiros no decorrer do seu dia a dia, porque quando um doente cai e bate com a cabeça em qualquer lado, automaticamente tem de fazer uma TAC ou outros exames, e tudo isto fica registado com o porquê do pedido”.Para o especialista em Reabilitação “tem de se apostar na continuidade da notificação, independentemente das consequências, porque até mesmo nós, profissionais, precisamos de ter a perceção sobre o tipo de situação que levou à queda. Se esta ocorreu porque o doente se desorientou, se foi pelo efeito da medicação ou até por algum episódio de saúde que teve no momento”.Na ULS em que trabalha, “a prevenção das quedas é uma prioridade fundamental, dada a sua importância quer na promoção da segurança e bem-estar dos utentes”, quer na questão dos custos e do prolongamento do internamento dos utentes. Ao DN, admite: “As quedas representam um dos principais eventos adversos em contexto hospitalar e até nos cuidados de saúde primários, podendo causar lesões graves, perda de autonomia e prolongamento do internamento, além de aumentar os custos e a carga sobre os profissionais de saúde.”Por tudo isto, a ULSGE aprovou em 2021, e já atualizou, uma estratégia e “abordagem integrada, baseada na avaliação rigorosa do risco, intervenções personalizadas e formação contínua dos próprios profissionais, visando reduzir a incidência de quedas e garantir cuidados de qualidade e segurança”.Arquitetura hospitalar também pode estar na origem das quedasBelmiro Rocha explica que, e tendo em conta a realidade vivida na ULSGE, há vários tipos de queda, “desde as acidentais, causadas por obstáculos no caminho, pisos escorregadios, iluminação insuficiente às fisiológicas previsíveis (associadas ao estado de saúde do utente, fraqueza muscular, tonturas, alterações da marcha, hipotensão ortostática) ou às fisiológicas imprevisíveis (episódios súbitos como convulsões, AVC ou síncopes)”. Mas também há quedas que podem estar relacionadas com “a toma de medicamentos, como sedativos, anti-hipertensores, diuréticos, antidiabéticos ou com outros fatores “intrínsecos, do próprio utente, como idade avançada, alterações cognitivas (demência ou delirium), défices visuais e auditivos, polimedicação, incontinência ou urgência miccional”.Os fatores extrínsecos, como destaca o presidente da APAH, Xavier Barreto, podem ter a ver com a própria arquitetura das unidades, sobretudo as antigas, e com a falta de recursos humanos. “A arquitetura das unidades, a forma como as enfermarias estão desenhadas, os percursos que os doentes têm de fazer para se movimentar dentro da unidade são importantes para se evitar quedas, sobretudo quando há menos recursos humanos. Porque se tivermos mais enfermeiros e mais auxiliares será dada maior atenção ao doente, o que reduz naturalmente o número de quedas.”Belmiro Rocha destaca ainda a falta de material de apoio, como “barras ou grades laterais na cama” e até a falta de “cadeiras ou camas não-ajustadas”.Quer se queira, quer não, há quedas que têm um impacto enorme nos utentes, algumas “até fatais”, relembra Xavier Barreto. As quedas tanto podem provocar “fraturas (fémur, punho, costelas), como traumatismo craniano, perda de autonomia, medo de cair novamente (síndrome pós-queda) e aumento da morbilidade e mortalidade”. Mas, para as unidades, o impacto também é enorme: “Aumenta os custos com tratamentos e cuidados, tem danos na imagem e credibilidade do serviço e sobrecarrega os profissionais.”Em relação à prevenção, Belmiro Rocha salvaguarda que, nos últimos anos, as unidades do SNS têm vindo a melhorá-la com mais protocolos e formação. No caso da ULSGE, por exemplo, “temos a avaliação do risco a todos os utentes internados em cuidados hospitalares e primários usando a Escala de Morse”. Depois, com intervenções no ambiente da estrutura, como “iluminação adequada e eliminação de obstáculos, campainhas ao alcance do utente, calçado antiderrapante ( uso de meias antiderrapantes, fornecidas pela ULSGE), grades laterais na cama (caso a caso), ajuste da altura da cama, supervisão no levante e autocuidado”. Mas o enfermeiro relembra ainda que a ULSGE tem apostado em medidas complementares, como “formação e sensibilização contínua para profissionais, utentes e familiares, na revisão periódica da medicação para minimizar riscos, em programas precoces de exercício e fortalecimento muscular e até no envolvimento dos Cuidados de Saúde Primários nesta prevenção”.O representante dos administradores espera que a própria tutela tenha “uma estratégia de prevenção para estas situações”. O enfermeiro diretor defende que deve ser “uma prioridade estratégica para as unidades, integrando cuidados hospitalares e primários numa abordagem coordenada e alinhada com as melhores práticas nacionais, com foco na segurança do utente e qualidade dos cuidados prestados”.