"Não há transplantação sem doação.” Este é o argumento mais válido para quem trabalha nesta área e quer ver aumentada a possibilidade de responder aos doentes. Por isto mesmo, entre especialistas, Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) e a própria Associação Portuguesa de Bioética (APB) é consensual que a legislação portuguesa deve ser alterada o mais rápido possível para se poder fazer o que outros países, como Espanha e Estados Unidos da América, já fazem há mais de dez anos. Ao DN, o coordenador nacional para a Transplantação do IPST, Nuno Gaibino, é perentório: “Não conseguiremos aumentar a transplantação sem haver a alteração da lei.” Porquê? Porque “o país já está aquém das necessidades dos doentes. A recolha de órgãos por morte cerebral está otimizada ao máximo, já se perdem muito poucos dadores nesta situação, mas é preciso haver mais dadores, porque a doação de órgãos é dar mais oportunidade de vida a quem está doente”, sustenta o dirigente do IPST.Mas, para tal, é preciso que a lei portuguesa seja alterada nos seus critérios, para que seja possível a recolha de órgãos em doentes em paragem cardiocirculatória controlada - ou seja, doentes internados em meio hospitalar que acabam por ter paragem cardiocirculatória, mas que não entram em morte cerebral, embora nada mais haja a fazer.Esta alteração, segundo revelam estudos internacionais e já portugueses, permitiria aumentar, só no primeiro ano da medida, o número de dadores em mais de 20%. Para o presidente da Associação Portuguesa de Bioética, Rui Nunes, “a lei que temos é eticamente intocável, mas esta alteração vai nessa linha e representa um avanço civilizacional”. A lei atual só permite a recolha de órgãos em situações de morte cerebral e de paragem cardiocirculatória não-con- trolada - doentes socorridos pelo INEM fora do espaço hospitalar, mas nos quais nada mais há a fazer e o óbito é decretado.A discussão sobre esta alteração legislativa existe há uma década, nem sempre com consenso da classe médica, mas, em 2016, Portugal encetou um projeto-piloto, que se expandiu ao fim de um ano, e que consolidou resultados até 2024: 258 órgãos recolhidos. O coordenador nacional da transplantação garante ao DN que o IPST tem vindo a trabalhar no sentido da mudança e que tem tudo preparado para que o país possa dar este passo. “No dia 20 de julho de 2024 foi feito um pedido formal à Ordem dos Médicos para um parecer técnico, já que a lei portuguesa define que para uma alteração legislativa tem de haver uma proposta por parte da Ordem sobre a componente técnica para a reabilitação e recolha de órgãos na paragem cardiocirculatória controlada. Depois deste parecer técnico, será a vez de consultar o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV).” Portanto, e segundo explica ao DN, falta agora o parecer da Ordem dos Médicos para uma proposta vá ao CNECV, e siga o seu percurso legislativo normal.Ao DN, o bastonário Carlos Cortes diz que a “Ordem criou, no início deste ano, um Grupo de Trabalho para analisar a alteração legislativa e que está a fazer esse caminho”, mas, reforça, “o trabalho, para se caminhar no sentido da alteração legislativa, não começou só este ano, tem sido contínuo, dentro da própria ordem, ouvindo todos os colégios, e com o próprio IPST, com muitas reuniões para que o trabalho que está a ser feito seja consensual e que respeite todas as sensibilidades”.Associação de Bioética vai voltar à carga com o temaA APB tem pressionado também os órgãos competentes neste sentido. Em outubro de 2024, entregou a todos os partidos com assento parlamentar, uma proposta de alteração à lei, com todo o enquadramento. O objetivo, explica o presidente Rui Nunes, era que “todos os deputados tivessem consciência do que se está a passar e do que é preciso fazer, porque gostaríamos que nesta matéria houvesse uma convergência de vontades, ou quase uma unanimidade, ou, pelo menos, um consenso em torno da bondade da alteração legislativa e da proposta que temos. É uma matéria de grande relevância social”.A mesma proposta foi enviada ao Ministério da Saúde e a todos os órgãos competentes, como presidente da AR, Comissão Parlamentar da Saúde, CNECV. Segundo explicou o presidente da APB, “os partidos reagiram positivamente, mostraram-se muito sensibilizados para o tema”, mas, até à altura da dissolução do Parlamento, “não tive qualquer resposta, nem para agendamento de reuniões para trabalhar o tema. Tenho é recebido inúmeras manifestações de apoio, sobretudo da classe médica, que sabe que esta alteração na lei é uma evolução; não entendendo porque é que ainda não aconteceu”. A APB diz que não vai desistir. “É uma causa em prol da saúde dos outros. Só aguardamos o desfecho eleitoral para voltarmos a contactar a nova tutela”, acrescentando: “É evidente que esta alteração, do ponto de vista legal, pode ser feita por outros caminhos. Basta um despacho da Secretaria de Estado da Saúde para que tal se concretizasse. Nós quisemos ir primeiro à Assembleia da República por uma questão de consciência social.”Para Rui Nunes “esta alteração é urgente pelos doentes e, ao contrário de outras iniciativas na Saúde, até há capacidade instalada no terreno para a concretizar. Ou seja, não existe sequer uma questão de falta de recursos para que não se possa avançar. Temos Unidades de Cuidados Intensivos com equipas altamente diferenciadas, treinadas e motivadas para o trabalho que fazem, temos o equipamento, unidades com ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorpórea, em português), portanto é só uma questão de vontade política que, enfim, tem tardado”.O professor da Faculdade de Medicina do Porto reforça ainda que “todos temos de perceber que esta matéria não é exclusiva de ninguém. É uma matéria de cidadania”.56,6 % dos doentes ficaram em lista de esperaPortugal é o terceiro país do mundo com o maior número de doações de órgãos face à sua população - estando Espanha em primeiro lugar e os EUA em segundo. Os números nacionais dos três últimos anos comprovam isto mesmo. Em 2024, e segundo dados disponibilizados ao DN pelo IPST, que vãos ser divulgados a 12 de maio, pelas 15h00, no Hospital Pulido Valente, em Lisboa, foram recolhidos 1083 órgãos de 374 dadores falecidos e de 75 vivos, estes últimos no âmbito da transplantação do rim. Mas tal já não é suficiente para as necessidades dos doentes portugueses, pois, dos 2954 doentes inscritos para transplante em 2024, só 894 foram transplantados, 43,4% do total, ficando mais de metade, 2060, 56,6%, em lista de espera (ver tabela).. A percentagem de doentes em lista de espera tem sido constante nos últimos três anos, atingindo um maior pico em 2022.Nuno Gaibino assume que o tema é sensível para a população portuguesa, até por uma questão cultural. E explica: “Em Portugal, culturalmente, não estamos habituados a falar da limitação de cuidados terapêuticos ou medidas de fim de vida. Há dez anos, então, era uma realidade que nem se colocava. Hoje, não é assim, porque a limitação de cuidados é uma obrigação ética e moral. Não podemos continuar a colocar toda a tecnologia à volta dos nossos doentes, quando sabemos que a situação é irreversível”.Quando confrontado com a questão da alteração à lei e se esta não coloca em causa, por exemplo, o envolvimento das famílias na decisão de recolha de órgãos, Nuno Gaibino é perentório mais uma vez: “Todas as questões éticas são cumpridas. O objetivo é exatamente esse, que todos os pressupostos legislativos estejam salvaguardados na lei. É para isso que temos vindo a trabalhar.” Aliás, reforça, “qualquer equipa quer o melhor tratamento para o seu doente, mas, quando se atinge o limite de que já nada mais há a fazer, então, a questão da recolha de órgãos em situação de paragem cardiocirculatória controlada deve ser colocada”.O médico explica ainda que numa situação destas, “haverá uma equipa, completamente distinta da que tratou o doente, para fazer a sua avaliação e perceber se, após o óbito, pode ser candidato à colheita de órgãos. As famílias são ouvidas e só depois será organizada a remoção de todos os suportes que ainda fazem este doente viver, como ventilador ou medicamentos, para ser colocado em ECMO, de forma a que os órgãos recebam oxigenação e possam ser recolhidos”. Para o IPST, esta alteração legislativa “é uma prioridade”, já que “o problema da escassez de órgãos, de tecidos e de célula agrava-se”.Estudo no São João revelou aumento de 20% de dadoresPara explicar o impacto que a recolha de órgãos em paragem cardiocirculatória controlada pode trazer ao país, Nuno Gaibino dá como exemplo o estudo feito pelo professor José Artur Paiva, em 2019, na Unidade de Cuidados Intensivos, do Hospital São João, no Porto. Como diz, “já nem precisamos de recorrer a estudos internacionais, basta olhar para o que foi demonstrado por este estudo português”. E explica: “O professor Artur Paiva analisou o número de doentes que acabaram por falecer naquele hospital, que não foram dadores, mas que poderiam ter sido suscetíveis de colheita de órgãos. E, num ano, identificou 197 doentes, em dez limitou-se a terapêutica. Isto é muito importante, porque se pensarmos que temos quatro hospitais com unidades de ECMO, São José, Santa Maria, Coimbra e São João, se em cada um houvesse, num ano, dez doentes que podem ser dadores, ora teríamos mais 40 dadores, o que “é muito bom, permitiria a recolha de muitos mais órgãos, tecidos e células, que vão ajudar outros doentes nos tratamentos”. Mas o médico acredita que, nos anos seguintes, “este incremento poderia chegar a 50 ou 75 novos dadores”. E isto, “se a recolha de órgãos for feita só nestes hospitais públicos. Se formos rigorosos na forma como nos organizamos e nas metodologias de trabalho e a recolha for também alargada a unidades privadas e sociais, com as mesmas condições, não há impossibilidade nenhuma de acompanharmos Espanha e os EUA, que em poucos anos aumentaram a sua transplantação em 50%”, ressalva o médico. Para especialistas e entidades, “o caminho está identificado e é absolutamente prioritário. Temos tudo para que, a curto prazo, possamos ter uma legislação neste sentido. As equipas estão prontas para trabalhar e os doentes continuam a aguardar”, conclui Nuno Gaibino.Em Portugal, todos são dadoresPela lei portuguesa, todos os cidadãos são dadores de órgãos, mas a lei protege os que, por vontade própria, não o querem ser, através da inscrição no Registo Nacional de Não-Dadores (RENNDA), em vigor desde 1994, pelo Despacho Normativo n.º 700/94, de 1 de outubro. E qualquer cidadão nacional, ou estrangeiro com residência permanente em Portugal, com mais de 18 anos pode efetuar a sua inscrição no RENNDA, sendo ainda permitida a inscrição de menores e incapacitados, devendo esta ser efetuada pelos representantes legais.