"Podemos e devemos preocupar-nos com o facto de as meninas serem impedidas de frequentar a escola noutras culturas, mas nos países ocidentais as barreiras também existem, são é mais subtis. Todas nós temos uma história de descriminação para contar." Quem o diz, em conversa com o DN, é a canadiana Claudia Mitchell que veio à Universidade de Coimbra na última semana para receber um dos prémios do Conselho Cultural Mundial. Mitchell foi distinguida com Prémio de Educação José Vasconcelos "pelo seu empenho na educação, enquanto professora entusiasta e defensora apaixonada da juventude, transformando as vidas de milhares de jovens oriundos de meios marginalizados, com um impacto profundo e duradouro no bem-estar e autoestima das raparigas em muitos países". As outras duas premiadas foram E J. Meejin Yoon, arquiteta e diretora da Faculdade de Arquitetura, Arte e Planeamento, na Universidade de Cornell (EUA) e Victoria Kaspi, professora da Universidade McGill (Montreal, Canadá), onde dirige a Cátedra Lorne Trottier em Astrofísica e Cosmologia. Receberam o Prémio de Artes Leonardo Da Vinci e Albert Einstein respectivamente..Ao longo de décadas de trabalho de campo, Claudia Mitchell, professora na Faculdade de Educação da Universidade de McGill, Canadá, vem constatando que "a aposta na Educação pode fazer muita diferença nas sociedades. A transformação social começa quando as crianças têm livre acesso à escola e à educação". Com investigação feita quer no seu país, nomeadamente na região de Montreal (sobretudo com comunidades mais frágeis) mas também em vários países da África subsaariana, Mitchell, considera que "do acesso à escolarização dependem o desenvolvimento das capacidades de pensar, imaginar, dialogar e argumentar. O mesmo acontece com o princípio crítico, que é determinante para compreender um mundo tão complexo e avassalador como o nosso.".Sentadas na Sala do Senado da Universidade de Coimbra para conversar com o DN, Claudia Mitchell e Meejin Yoon (Victoria Kaspi não viajou para Portugal por motivos de saúde), as duas sublinham a importância muito mais do que simbólica destes prémios de excelência nas áreas da Ciência, Educação e Artes terem sido atribuídos a três mulheres. Porque o mundo ainda não é paritário e a igualdade de oportunidades ainda é uma miragem, mesmo nos países ocidentais que apregoam essa conquista. Meejin Yoon, arquitecta, refere-se a quão difícil ainda é para uma mulher afirmar-se no mundo muito masculino da sua disciplina. Nos Estados Unidos, na China (de onde a sua família é originária), em toda a parte, afinal: "Quando eu era estudante de licenciatura havia algumas raparigas na minha turma, mas à medida que avançávamos para graus superiores o número diminuía. Ainda assim, a minha geração foi precedida por autênticas pioneiras, algumas delas foram mesmo a única mulher da sua turma. Imagine-se como lhes foi difícil ingressar no mercado de trabalho e aplicar o que tinham aprendido.".Dir-se-ia que no ensino, as coisas seriam mais fáceis, mas Claudia Mitchell comenta que a realidade é bem mais matizada do que parece ao primeiro olhar: " Na América do Norte, a educação e ensino nos primeiros graus é uma atividade muito feminina mas também muito desvalorizada. Há poucas oportunidades de progressão na carreira. Na verdade, é muito importante levarmos mais meninas à escola em África, mas nos países ocidentais também há muitas barreiras a considerar". Claudia Mitchell chama a atenção para a fragilidade global das mulheres em momentos de crise como a pandemia ou a guerra, qualquer guerra: "Se pensarmos nos confinamentos causados pela covid-19, verificaremos que aumentou tragicamente o número de feminicídios ou o desemprego feminino. Por outro lado, a invasão da Ucrânia veio demonstrar, uma vez mais, que as mulheres são sempre o elo mais fraco em todos os conflitos armados da História"..Na África subsaariana, onde Claudia Mitchell trabalhou e onde ainda orienta vários trabalhos de investigação de estudantes seus, a covid significou um retrocesso social das pequenas conquistas que tinham sido feitas: "São lugares onde havia uma longa história de opressão, pobreza e violência. Tudo se agravou muito com a covid. Quando as escolas fecharam por causa do confinamento, em muitos lugares elas simplesmente não reabriram ou levaram muito tempo a fazê-lo. Para muitas meninas, essa espera foi trágica porque ficaram ainda mais vulneráveis a situações de violência de género, outras engravidaram e, na sequência disso, não voltaram à escola. Perderam muito, algumas perderam mesmo a vida.".Meeijin Yoon foi distinguida, segundo o júri, "pelos seus feitos no mundo académico e pela sua contribuição única para a disciplina de arquitetura, em particular a conceção inovadora e ponderada de memoriais, instalações e estruturas públicas, inspiradas por um profundo sentido de contexto histórico e cultural, proporcionando lugares de recordação e reflexão geradores de esperança". A trabalhar presentemente no Museu do MIT - Massachusetts Institute of Technology e em algo "tão desafiante" como a sede do Instituto da Democracia, a arquiteta afirma que a arte é uma ferramenta essencial para a educação cívica: "A arte estimula a imaginação e se imaginarmos um futuro diferente, seremos capazes de lutar por ele. Disciplinas como o Design, a Arquitectura ou o Design Urbano podem dar um contributo para a mudança social." Especialista naquilo a que chama "paisagem comemorativa", tem a preocupação de criar lugares "em que as pessoas de hoje possam pensar o legado que herdaram" e considera que as restrições inesperadas da pandemia nos fizeram valorizar mais "a companhia uns dos outros e as experiências colectivas, como a ida a um concerto, ao teatro, a um museu. Acho que há mais procura do que nunca porque a arte é uma forma de nos relacionarmos uns com os outros, às vezes com tensão, mas sem conflito.".O lado interventivo das disciplinas a que se dedicam é um aspecto do trabalho de que estas duas investigadoras não prescindem. Meejin Yoon considera que "a arquitectura tem tanto de arte como de ciência, mas só ganha relevância quando assume a sua componente social" e Claudia Mitchell brinca com o facto de os seus colegas académicos nem sempre compreenderem a pulsão cívica que a move - a ela e aos estudantes sob a sua orientação. "Este prémio veio dar-nos o reconhecimento que às vezes nos falta, admito. Mas eu tenho estudantes a trabalhar temas de grande impacto social. Uma delas está, neste momento, a trabalhar com mulheres refugiadas que chegam a Montreal e o objetivo é perceber como elas se integram e quais são as suas lutas. Outra está a trabalhar com doentes internados em unidades de cuidados paliativos e, neste caso, queremos entender como estas pessoas, a maior parte delas idosas, gostaria de terminar os seus dias, sem esquecer como esta situação de sofrimento é vivida pelas famílias nos corredores das unidades hospitalares." Mesmo quando o tema do trabalho é a educação, Claudia Mitchell frisa sempre que não se pode olhar para a escola ou para a falta dela: "É importante que vejamos a educação nas suas várias componentes: a formal, conferida pelas escolas e a informal, assegurada dentro das comunidades. Não podemos descurar o papel que jovens com acesso à educação podem ter no esclarecimento dos pais em matérias como as alterações climáticas e as boas práticas em matéria de ambiente, por exemplo.".Recorde-se ainda que a ausente nesta conversa recebeu o Prémio Mundial de Ciências Albert Einstein "como reconhecimento das suas contribuições fundamentais para a compreensão dos "magnetares", estrelas de neutrões com os campos magnéticos mais elevados que se conhecem no Universo". O Conselho Cultural Mundial - uma organização internacional sem fins lucrativos, composta por académicos, cientistas e dirigentes universitários de todo o mundo - premiou ainda um conjunto de jovens investigadores com ligação à Universidade de Coimbra que tenham desenvolvido trabalhos notáveis nas áreas da ciência, da educação e das artes. Os vencedores foram Filipa Bessa, Joana Ferreira, João Peça, Paulo Rocha e Sérgio Domingos (Ciência), Ana Dias Fonseca, Hugo Gonçalo Oliveira, Rui Cardoso Martins (Educação), Edicleison Freitas, Joana Antunes, Carlos Azevedo, João Crisóstomo e Luís Sobral (Artes). A realização desta cerimónia nesta universidade portuguesa serve ainda para lembrar os 250 anos da Reforma Pombalina, que abriu a instituição ao espírito do Iluminismo..dnot@dn.pt