“É bom lembrar que a primeira grande vitória contra Napoleão foi em Portugal”
A conversa com Nuno Lemos Pires estava apalavrada desde o verão, com o pretexto da publicação de Os Resistentes (Oficina do Livro), mas acaba por acontecer já em cima do fim do ano, num cafezinho do Restelo, perto do Ministério da Defesa, onde o major-general é agora diretor-geral de Política de Defesa Nacional. Não resisto a comentar que desde a nossa anterior conversa, sobre um livro a assinalar os 70 anos da NATO, aconteceram duas promoções: de brigadeiro-general para major-general e de subdiretor-geral de Política de Defesa Nacional para diretor. Limita-se a confirmar com um aceno de cabeça. Neste intervalo, que significou uma saída e um regresso ao ministério da Defesa, ganhou notoriedade pelo trabalho que fez em Moçambique na formação dos militares destinados a combater os jihadistas em Cabo Delgado, mas já lá iremos. Primeiro que tudo, falemos do livro Os Resistentes, em que há um capítulo sobre como os portugueses enfrentaram as invasões napoleónicas do início do século XIX.“Portugal ficou ocupado e as populações tiveram muita fome, houve muita violência, sofreram todo o tipo de abusos, não só físicos, mas morais, uma humilhação permanente. Foi a primeira vez na história que alguma vez a bandeira portuguesa foi arriada e que foi erguida outra bandeira que não portuguesa em território nacional. E isso mexeu muito nas populações. E por isso, são as populações que se revoltam contra a invasão francesa. Mesmo o rei tendo dado a ordem, antes de partir para o Brasil, para acolher os franceses, as populações revoltaram-se. De norte a sul, toda a gente se juntou naquilo que eram as antigas organizações que já existiam em Portugal, uma coisa muito própria portuguesa, que eram as milícias e as ordenanças. E apresentaram-se voluntariamente nas unidades para lutar contra os franceses. E é bom lembrar que a primeira grande vitória contra Napoleão foi em Portugal. É a batalha dos Padrões de Teixeira, que fica ali ao pé da Régua, em que a população, sob o comando do nosso Francisco da Silveira, armada de varapaus, de pedras, etc., derrotou o general Loison, o famoso maneta. A população derrota uma divisão francesa que vai a caminho do Porto e tem de voltar para trás. Ainda não chegaram os ingleses. Estamos a falar de junho de 1808 e os ingleses só chegam já em agosto de 1808. Portanto, quando os ingleses chegam - Vasco Pulido Valente costumava dizer isto muitas vezes - nove décimos do território português estava libertado. Os franceses tinham ficado apenas com os eixos fundamentais, que tinham a ver com Lisboa e a ligação a Espanha”.
Estamos a beber café na esplanada, a aproveitar um tímido sol invernal, e comemos uma fatia de bolo rei, em homenagem à época. Comento com Nuno que também fala neste último livro da resistência dos timorenses aos indonésios depois da invasão de 1975. E que nesse caso há uma experiência pessoal importante, pois, nascido em Lisboa em 1965, é filho do general Mário Lemos Pires, o último governador português de Timor-Leste, e chegou a viver em Díli, para onde viajou, criança, faz agora quase meio século.
“Fiz lá a minha quarta classe. O meu pai foi nomeado em novembro de 1974 e eu fui para lá logo no Natal e vim de lá em agosto de 1975. Portanto, tenho memórias muito vívidas, porque, claro, um filho de um governador não tinha uma vida normal. A ligação que tínhamos com os timorenses era muito forte, muito aberta, muito boa. E vivemos aquela hecatombe da invasão da Indonésia de uma forma muito dolorosa. Mas costumo dizer assim: o que é que sobra disso tudo, como diz, passados 50 anos? Sobra uma atitude de encontro entre portugueses e timorenses que hoje é extremamente forte. Porque o meu pai, como governador, teve a intuição política de tomar uma decisão, na altura pouco popular, que foi nunca intervir contra os timorenses. Quando começou uma guerra civil entre os dois partidos que se estavam a opor, comportamento ainda de grande imaturidade política, é claro que o meu pai podia ter recorrido, em parte, como governador e comandante-chefe, ao poder das armas. Mas ele teve a intuição política de preservar esta ligação com os timorenses, para terem livremente o princípio de autodeterminação. Hoje já ninguém duvida que isso foi uma das melhores coisas que fizemos. Ou seja, os portugueses não afrontaram os timorenses, ajudaram os timorenses e não se esqueceram deles durante todo o período de ocupação. E o meu pai esteve extremamente ativo até haver o referendo em 1999. O meu pai esteve ao lado da brilhante diplomacia portuguesa, da maior parte da classe política portuguesa, mas, acima de tudo, da população portuguesa. Algo que nos deve orgulhar profundamente é a certa altura, de norte a sul do país, de todos os quadrantes, os portugueses darem as mãos por Timor”.
Já este ano, em setembro, deu-se o regresso a Timor-Leste. Conta que à distância, toda a família acompanhou essa visita, desde Leonor, educadora de infância que é mãe das suas duas filhas e do filho, à mãe, viúva do último governador: “Fui em funções oficiais, como diretor-geral de Política de Defesa Nacional, mas, claro, quando ali aterrei, entrou uma emoção pelo meu corpo dentro. Reconheci logo muitos sítios de Díli. Fui visitar a minha casa, o palácio onde vivia o governador, e foram muito simpáticos, Ramos Horta, Xanana Gusmão, toda a Administração pública de Timor, receberam-me de braços abertos. Fui recebido de uma forma extremamente cordial e afetiva por Xanana, que mandou mostrar o gabinete que era do meu pai, e falou da ligação fortíssima com Portugal. Valeu tudo a pena. E, para mim, visitar outra vez as praias, andar outra vez naquelas estradas foi muito emotivo”.
Ao ano na escola em Díli, entre 1974 e 1975, seguiu-se o Colégio Militar. Antes da decisão, por volta do nono ano, de ir para a Academia Militar, confessa que houve uma certa inclinação para seguir medicina. “Mas tinha um primo que era médico e que me levou a visitar as urgências e achei aquilo claustrofóbico. Gosto de natureza e por isso querer ir para a Academia Militar, queria andar no campo. Por isso é que sou de Infantaria e de Operações Especiais, e quanto mais andar livremente e no meio da selva, melhor para mim. E foi isso a minha vida militar também”, conta. O pai, sublinha, nunca o tentou influenciar num sentido ou noutro, de seguir a carreira militar ou não. “Só se pronunciou sobre a minha entrada na vida militar, quase um ano depois de estar na Academia Militar, e foi quando lhe perguntei o que é que ele achava e ele respondeu-me que achava bem”.
Homem das Operações Especiais, com uma vida no terreno que tem conseguido conciliar com investigação académica e a publicação já de 11 livros, o major-general Nuno Lemos Pires tem uma memória muito especial do Afeganistão, onde esteve colocado entre 2009 e 2010. “Portugal teve ali uma presença nobre, útil, importante, relevante, para ajudar o país depois da queda dos talibãs em 2001. Costumo dizer que tenho uma enorme vergonha do que a comunidade internacional fez depois com o Afeganistão, aquilo em 2021 foi uma debandada terrível que nos insultou a todos. Mas, dito isto, nada substitui o facto de termos lá estado, porque enquanto lá estivemos fizemos a diferença. Houve mulheres a trabalhar, crianças a voltar à escola, meninas a terem a oportunidade de estudar. Se houve momentos em que as pessoas ouviram música e cantaram de novo e puderam sentir um bocadinho de liberdade, deve-se àqueles que lá estiveram, fundamentalmente a militares como os portugueses, que são extremamente afáveis e entendem muito bem a cultura local”. No seu caso pessoal, foram cerca de sete meses, numa missão que classifica de muito dura, muito exigente. “Estávamos baseados em Cabul dentro de uma divisão afegã, éramos uma força especial feita à custa, na sua maioria, de paraquedistas, comandos e operações especiais, todos portugueses. Com o meu comandante - foi até há pouco comandante da GNR, o general Correia - estávamos dentro desta divisão e planeávamos as operações contra os talibãs, em Cabul e 100 quilómetros para norte e para sul.”.
No regresso, Nuno começou a escrever a tese do doutoramento em História, Defesa e Relações Internacionais, que defendeu em 2013 no ISCTE. Uma versão saiu em livro com o título Wellington, Spínola e Petraeus: O Comando Holístico da Guerra (Nexo Literário). A obra venceu o Prémio Defesa Nacional em 2014 e foi entretanto traduzida para inglês. E resulta muito do que o militar português viu no Afeganistão: “A raiva com que saí de lá do Afeganistão fazia-me ver que não era assim que se ganhava uma guerra. Não se estava a apostar no desenvolvimento. Havia uma disparidade muito grande entre o investimento que era feito em segurança e a parte que era feita em desenvolvimento. E aquilo que venho defender mais tarde, em Moçambique, é que não há desenvolvimento sem segurança e não há segurança sem desenvolvimento. E o que se passava no Afeganistão é que 90% das verbas internacionais eram para a parte da segurança o que, embora fosse extremamente importante, se não se apostasse nos tribunais, nas escolas, na democracia, não valia a pena. E foi isso que senti, uma grande dessincronização entre a parte de segurança e desenvolvimento e isso levou-me a escrever o comando holístico da guerra. Ou seja, todas as componentes têm de convergir para o mesmo princípio, que é o cidadão, é a pessoa”.
A referência a Moçambique conduz finalmente a conversa para a mais recente experiência de Nuno no estrangeiro, um regresso à antiga colónia portuguesa quase três décadas depois de uma primeira missão: “Por um lado, foi exatamente igual, por outro lado foi completamente diferente. Parece um paradoxo o que estou a dizer, mas a minha primeira grande missão foi em 1995, 1996. Estive um pouco mais de um ano em Moçambique nessa altura, como capitão, jovem, fiz lá os 30 anos e foi uma experiência de vida. Primeiro, o amor que existe, verdadeiro, entre as comunidades da língua portuguesa. As pessoas às vezes pensam que isto é algo abstrato, mas não é, é real, há respeito, um respeito muito elevado. E como oficial do exército, fardado, com a palavra Portugal escrita no ombro esquerdo, era acolhido como um irmão em todas as unidades militares de norte a sul. Tive a ocasião de visitar nessa altura Cabo Delgado, trabalhei cerca de dois meses e meio lá, andei por todo o país. Houve aí uma irmandade que voltei a viver em 2021. Agora, quando fui comandar a primeira missão da União Europeia em Moçambique em 2021 e 2022, quando ali chego, no fundo fui buscar aquilo que tinha aprendido em 1995, que é que não vamos lá ensinar nada, vamos sentar e vamos ouvir. O mote que criámos para a missão foi ‘Estamos Juntos’. E estamos juntos significa que quem manda, quem sabe, quem vive, quem sofre, são os povos. Vamos lá para dar formação às unidades que iam combater. Nós fomos preparar forças de fuzileiros e de comandos. Portugal foi o primeiro país que saiu em ajuda de Moçambique relativamente a Cabo Delgado. E, portanto, fomos bilateralmente. E porquê comandos e porquê fuzileiros? Porque Moçambique sabe, como outros países sabem, a eficácia das nossas forças de reação rápida. Estivemos no Afeganistão e estamos na República Centro-Africana. São forças de uma eficácia, de um alcance, de um prestígio e de um reconhecimento público muito forte. No caso de Moçambique, claro, estamos a falar de uma empatia total e estamos a falar de uma resposta total. A decisão do então ministro da Defesa aqui foi imediata e três meses depois tínhamos cerca de 60 militares dos três Ramos das Forças Armadas, em especial comandos e fuzileiros a aterrar em Maputo, a ir para Catembe e para o Chimoio, que fica a mil quilómetros, a começar a dar formação imediata. E depois a União Europeia também recebeu um pedido de apoio da parte de Moçambique. O que é que fez a União Europeia e o que é que fez Moçambique? Pensaram que o exemplo português é tão bom que não iam inventar a roda e pegaram na missão portuguesa e decidiram expandi-la. E fui nomeado comandante da missão para comandar efetivamente já com 12 países da União Europeia e com outro alcance”.
A conversa aproxima-se do fim. Tenho a tentação de pedir um segundo café, mas avanço com o tema NATO, aliança que faz 75 anos em 2024 e que mereceu o tal livro que Nuno Lemos Pires escreveu com o comodoro João Barreiros. “A NATO é insubstituível. Não há outra igual. Podemos pensar em todo o tipo de organizações que existem no mundo, mas esta, primeiro, é de longe a organização de segurança mais forte que existe no mundo e, em segundo, tem vindo a crescer na sua resiliência e na sua força devido aos princípios que defende, que é o princípio do artigo 5.º, um ataque contra um, é um ataque contra todos. E se não fosse extremamente eficaz, não tinha crescido como cresceu agora para mais dois países. Esperemos que a Suécia entre em breve, mas a Finlândia já entrou. E isto demonstra bem como a segurança é um ato solidário. Ninguém se defende sozinho neste mundo. Precisamos uns dos outros. A nossa segurança não é a fronteira terrestre, não é a fronteira naval de cada país, é a fronteira dos nossos aliados”, sublinha o major-general.
Sobre o apoio da NATO à Ucrânia, invadida pela Rússia em fevereiro de 2022, diz que não podia ser de outra forma, pois “é uma guerra que afeta toda a Europa, mesmo países que ficam longe, como nosso”. E, lembrando que foram os ucranianos que o inspiraram a escrever Os Resistentes, acrescenta que “é notável a quantidade de gente que ficou e a quantidade de gente que regressou, não só para pegarem armas, mas para tentar manter uma vida de normalidade. Esse exemplo que os ucranianos estão a dar, lá está, é a democracia contra a autocracia. O acreditar em princípios e valores fundamentais. É isso que nos faz mover as sociedades. E estamos num momento extremamente complicado. Que é, desistir é fácil. E quem conhece um bocadinho de história militar, sabe que há muitos momentos na história em que as pessoas tentam mandar a toalha ao chão. Se for ver as reportagens, provavelmente o Diário de Notícias de 1941, verá que o mood era para acreditar que a Alemanha ia conquistar a Europa, vamos lá negociar com eles. Em 1941, dois anos depois do início da guerra, havia muita gente com vontade de desistir. E foi a resiliência, o espírito de resistência, os valores, a democracia, que fez com que a população mundial aguentasse até 1945 para inverter este mesmo relato. A Primeira Guerra Mundial é a mesma coisa. Se for ver as notícias de 1916, através do seu jornal , verá que muita gente já estava conformada com aquilo que eram as conquistas alemãs, mas não foi outro o espírito de 1918. Atualmente, e passados dois anos do início desta guerra na Ucrânia, há muita gente já farta, cansada, mas a história deve-nos ensinar que a razão, a emoção e a defesa da dignidade humana é um princípio fundamental e não devemos desistir dele. Porque ao desistir dele, desistimos de nós e de querermos viver como irmãos”.