Dr.ª Camila, a médica que todos os dias fala com todas as famílias de doentes internados

Assim que viu a pandemia a desenvolver-se percebeu que as famílias seriam tão importantes quanto os doentes que iria tratar. Lançou o desafio aos colegas da unidade onde trabalha, todos aceitaram e organizaram-se. Arranjou telemóveis e tablets. Todos os dias há um telefonema e uma videochamada. Um ano depois, já falou com 190 famílias.
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Em 20 anos de trabalho nos cuidados intensivos, Camila Tapadinhas, ou Dr.ª Camila, como é tratada pelos familiares dos doentes que entram na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa, já deu muitas vezes a "má" notícia, a notícia que ninguém quer ouvir, a de que um familiar morreu, mas é fundamental que a palavra seja usada para que não fique a dúvida. Já o fazia antes da pandemia, mas a verdade é que a "gravidade da doença veio impor uma relação, um compromisso, mais forte", diz.

Percebeu isso assim que começou a ver a covid-19 a avançar em outros países, em Itália, por exemplo, em que as imagens divulgadas já traduziam o reflexo de que as expectativas dos familiares, a morte e a ausência do adeus teriam de ser trabalhados. Era mais um desafio para os profissionais de saúde, meteu mãos à obra. Apresentou um projeto ao coordenador da unidade, Pedro Póvoa, com quem trabalha há mais de 18 anos, que aceitou de imediato, e a equipa também.

O objetivo era haver sempre alguém que diariamente falasse com todas as famílias dos doentes internados para lhes dar a informação clínica, havendo ainda a possibilidade de videochamada. O contacto visual, mesmo com o doente sedado, pode ser importante para todos. A Associação SOS Covid Portugal ajudou-a a arranjar dez telemóveis e dez tablets, junto de algumas empresas, que também distribuiu por outros serviços do hospital.

Ela autonomeou-se para a função do telefonema diário e, ao fim de um ano, já falou com 190 famílias, tantos quantos os doentes que a unidade tratou até ao início de março. Destes, a 29 teve de dar a notícia que ninguém gosta de dar, mas que há muito quis aprender a fazê-lo, porque "na medicina, tanto é importante o curar como o cuidar".

É ao fim de mais um dia de trabalho que Camila Tapadinhas fala com o DN enquanto bebe um chá já na sala de sua casa. Um dia que começou muito antes de entrar no hospital, pelas 07.00, ainda sem ter entrado no hospital, com uma tarefa diário também imposta pela pandemia: "Tenho de enviar toda a estatística dos doentes que entram na UCI, que tiveram alta ou que não resistiram para a ARS". Só depois segue para o Restelo para o resto das funções no hospital. Na unidade, onde há duas equipas sempre a funcionar, uma dentro da UCI a prestar os cuidados e outra numa sala divida por vidros a apoiá-la, todos sabem o que têm a fazer. "A equipa é muito coesa e está muito bem oleada. Só assim conseguimos avançar com este projeto das famílias."

A manhã passa a correr. Pelas 13.00 chega o momento em que sabe que vai ter de se dirigir à sala habitual, onde tem o seu computador, sentar-se e procurar o silêncio para começar a tarefa diária que abraçou: telefonar a todas as famílias dos doentes internados, sejam seis, oito, dez ou mais. Uns dias é mais difícil do que outros, mas ao longo do tempo as próprias famílias, só pelo tom de voz que usa, vão adivinhando se o doente está a melhorar ou a piorar.

"Há uma coisa que digo logo na primeira conversa que tenho com as famílias: "Não vos irei esconder nada, nem em relação ao melhor ou ao pior". Até porque quem está do outro lado também precisa de apoio", diz, acrescentando: "O importante da relação que se vai estabelecendo com as famílias é que elas tornam os doentes pessoas reais para nós, pela forma como os evocam, como falam deles, como nos contam sobre a forma como vivem as suas doenças, se eram cumpridores ou indisciplinados, se são fortes ou mais depressivos, se são calmos ou mais irritados, o que tem importância depois para os acordar. Tudo o que nos dizem tem sido muito importante até para a forma como os tratamos". Mas não só. É importante também até para a forma como se despedem e como se desligam da situação.

Nem todas as relações com familiares são fáceis e nem todas começam logo com grande empatia. Camila Tapadinhas sabe-o bem, por isso defende que é preciso saber comunicar. Diz mesmo ser "um dos desafios que a pandemia trouxe aos profissionais de saúde, porque há técnicas que devem ser usadas, como o protocolo de Buckman, que propõe a existência de um local adequado onde as notícias devem ser dadas e que haja um trabalho de preparação da família para o que pode vir a acontecer".

Na sua unidade, muito antes da pandemia, já a relação com os familiares era valorizada. Hoje, quando chega a hora de pegar no telefone, Camila Tapadinhas sabe que precisa de respirar fundo, que tem de colocar a voz, o tom tem de ser claro, sobretudo porque o contacto não é presencial, porque se o fosse teria de se preocupar ainda com outros pormenores, como um olhar direto, com o não deixar transparecer um ar abatido ou até não aparecer com uma bata que não estivesse completamente limpa. Mas a voz, de uma forma ou de outra, "é sempre muito importante, e à distância o tom tem de ser carinhoso, envolvente, no sentido de transmitir: eu estou aqui e compreendo o seu sofrimento", explica.

Por isso, neste processo há uma frase sagrada para quem está do outro lado: "Estou aqui para apoiar. Se quiser chorar, chore à vontade. Tenha o seu tempo." E o mais incrível, afirma, "é que as pessoas choram e, depois, pedem desculpa e agradecem. Penso que tem a ver com a relação que se estabelece com elas, como usamos a comunicação e o diálogo durante o tempo em que o doente está connosco. Isso faz a diferença".

Para Camila Tapadinhas, 59 anos, médica há 35 anos e há 20 na medicina intensiva, sempre na mesma unidade, no São Francisco Xavier, uma das primeiras preocupações foi o papel das famílias. "Tive a perceção que muito pouco iríamos saber sobre os doentes que nos iriam chegar, porque ou traziam alguma informação sobre doenças anteriores no seu processo ou não saberíamos nada se não falássemos com as famílias".

Ao fim de um ano de pandemia, sabe que tinha razão, mas sublinha: "A ideia pode ter sido minha, mas só a conseguimos pôr em prática porque há toda uma equipa que aceitou o desafio e que tem feito um trabalho extraordinário. O retorno e o feedback que temos tido dos familiares é cada vez maior."

Neste ano, a médica não esquece duas situações. Uma logo no início da doença, outra mais tarde. Da primeira guarda um remorso, o não ter dado as condolências à mulher de um doente; da outra a perceção de que os doentes que entram na unidade conscientes sabem muito o que lhes pode acontecer, e isso, por vezes, pode ser doloroso.

"Logo no início da pandemia tivemos um senhor dos seus 40 anos, na altura era o doente mais jovem que estávamos a tratar, com filhos pequenos, e todos nos identificámo-nos muito com a situação. Ele entrou no hospital com história clínica de sintomas, mas só deu positivo ao fim de algum tempo. A doença evoluiu muito rapidamente e teve de entrar na UCI. Falei sempre com a mulher, todos os dias, e não esqueço o momento em que tive de lhe ligar a dizer que o estado dele tinha agravado e que ia ser transferido para o Hospital São José para fazer ECMO (a máquina que substitui a função cardíaca e renal)", recorda: "Foi num fim de semana, estava em casa e tive de ir para uma varanda fechada, para ter mais silêncio. Disse-lhe tudo sobre o que estava a acontecer, mas com a perceção clara de que ele não iria voltar. Ela chorou e agradeceu o contacto. Ele acabou por morrer. Não fui eu que lhe dei a notícia, não voltei a falar com ela, nem para lhe dar as condolências, e isso hoje ainda me pesa".

Não esquece outro doente. "Um senhor incrível de quem hoje ainda falamos muito e do filho também. Já tinha alguma idade, sempre bem disposto. Esteve consciente durante uns três dias. Viu tudo o que se passava à sua volta e quando lhe dissemos:"Temos de o entubar", ele sabia que podia não acordar. Pediu uma videochamada com o filho. Assim fizemos. Explicámos ao filho o procedimento que íamos fazer e dissemos-lhe que o pai queria falar com ele. No fundo, aquele doente sabia que podia não acordar, e não acordou, mas teve a sua despedida".

Além do telefonema diário da Dr.ª Camila sobre o estado do doente, todas as famílias que querem têm direito a uma videochamada ao final do dia "Algumas até somos nós que propomos que a façam porque pode ser importante para o doente ouvir um familiar". Mas com o passar do tempo, a equipa de UCI do São Francisco Xavier passou também e enviar as condolências. "No início, não o fazíamos, mas agora é o que faz sentido no percurso da ligação que estabelecemos com os familiares".

No início foi ela que durante todos os dias, mesmo ao fim de semana assumia o telefonema diário, mas ao fim de seis meses, o desgaste emocional começou a dar sinais e optou por ficar com a função durante a semana e ao fim de semana ser o elemento de serviço. Embora considere "fundamental serem sempre as mesmas pessoas a fazerem os contactos com as famílias, cria laços, mesmo com as que começam de forma mais desconfiada, depois acabam por aceitar e ficar mais disponíveis para este tipo de comunicação".

Nunca passam 24 horas sem que as famílias estejam sem informação sobre o estado do seu doente. É assim que se vai criando uma relação de confiança com quem está do outro lado. "As pessoas acabam por nos ir conhecendo e, por vezes, são elas próprias que dizem: "Já tinha percebido pela sua voz que hoje as coisas não estão bem ou que estão melhores". Outras vezes, e de forma muito consciente, dizem-nos: "Ó Dr.ª não diga mais nada, deve ter muito que fazer, falamos amanhã".

Neste telefonema, a médica toma nota de todas as famílias que querem videochamada. "Pergunto sempre quem quer. Há quem aceite sempre, há quem diga: "Hoje não", mas também há quem comece por não querer, sobretudo se o doente estiver sedado, ventilado, porque sentem que pode ser muito perturbador, mas depois acabe por aceitar", conta. "Faço uma lista, indico se há alguma situação que deve ser mais prioritária, fotocopio e passo à equipa de enfermagem que vai estar à tarde".

É assim que comunicam com as famílias, um tipo de comunicação que Camila Tapadinhas assume que nem sempre é ensinada nas faculdades. No seu tempo, quando terminou Medicina, em 1985, não era assim. "Os médicos formavam-se e ficavam à mercê de imensas questões sobre o que fazer em determinadas situações", nomeadamente sobre o contacto com os doentes, e "este saber não vinha nos livros, tinha de ser observado pelos mais novos junto dos colegas mais velhos e poderia haver sempre algo que se perdia".

Nos dias de hoje, já há faculdades que se preocupam com a comunicação entre profissional e doente e que começam a abrir o ensino para estas áreas. Camila Tapadinhas é responsável pelos alunos do quinto ano que fazem estágio na unidade onde trabalha e dá aulas a alunos do sexto ano sobre decisões em fim de vida na Faculdade de Ciências Médicas. "Trabalho com o Dr. Pedro Póvoas há muitos anos, ele é professor na FCM e sabe do meu interesse por este lado da medicina, e convidou-me para dar seminários sobre a matéria".

Depois da licenciatura, de dois anos de internato geral e de mais um em Medicina Geral e Familiar, decidiu que queria fazer a especialidade de Medicina Interna. E fez, no Hospital de Torres Vedras, onde trabalhou durante dez a 12 anos. Depois, quis fazer medicina intensiva e seguiu para o São Francisco Xavier, onde ainda está.

"Sempre senti que na minha formação faltava aprofundar um outro lado da medicina, que não é só o curar é também o cuidar, o acompanhar o doente, os seus familiares, o ter empatia e compaixão, duas palavras que para mim são muito importantes, no sentido de perceber que uma pessoa está em sofrimento e que nós temos de nos saber colocar no seu lugar para a acompanhar, estar ao lado dela, mesmo quando, no caso do doente, sabemos que não o vamos conseguir curar, mas no caso dos familiares eles saberem que estamos ali".

Explorou este lado e há 18 anos fez formação em gestão de unidades de saúde e abordou logo questões sobre o stress organizacional e o burnout nos profissionais. Em 2015, o tema da morte e o ter de conviver com esta realidade, com o "deixarmos de ser capazes de curar para passar a cuidar", levaram-na a fazer uma pós graduação em cuidados paliativos no Hospital de Santa Maria. "Havia muitas coisas que já sabia, mas era importante aprender algo mais do ponto de vista da estratégia comunicacional".

Hoje, reforça, que o lado mais humanista da medicina tem de ser um desafio para as faculdades, para os profissionais e para as unidades. "Nas faculdades, ainda se pratica um ensino muito teórico, muito académico, perdendo-se o pendor mais humanista". Aos estagiários por quem é responsável e aos seus alunos tenta sempre passar-lhes a noção de que "nós médicos temos um poder muito grande, temos o poder de, face às nossas atuações, salvar um doente, mas também a responsabilidade de aprender a lidar com a vulnerabilidade da pessoa que está à nossa frente e de decidir como a cuidar", sobretudo em medicina intensiva.

Nesta área, mais do que em outra, "é preciso saber como comunicar as más noticias, mas também saber gerir decisões que temos de tomar em fim de vida". "Quando estamos doentes, todos nós ficamos vulneráveis e a presença do médico que nos está a tratar ou a cuidar impõe uma grande responsabilidade. Penso que quando nos formamos não temos esta noção. Só pensamos que vamos ser capazes de curar. É essa a nossa intenção, mas na realidade isto exige uma grande responsabilidade não só perante o doente mas também perante os familiares", diz, argumentando: "Nós somos um acompanhante do doente e temos de fazer um par com a família para o tratar. E esta temática é muito pouco abordada no ensino e quando se chega ao momento não se está preparado".

A pandemia veio destapar esta realidade e mostrar que este é um lado que tem de constituir um desafio muito grande para os profissionais de saúde. Foi isso a que se propôs a equipa da unidade dos cuidados intensivos do São Francisco Xavier, que ao longo deste ano recebeu 190 doentes, 190 famílias, e só tiveram de dar a "má" notícia a 29. "Tivemos pessoas com mais de 80 anos que sobreviveram e jovens que morreram sem termos percebido porquê", desabafa. Apesar de tudo, "a doença é muito grave e prolongada, mas, felizmente, a taxa de mortalidade não é muito alta. Anda à roda de 16%, quando as taxas em UCI antes da covid-19 eram à volta dos 25%".

A grande maioria dos doentes que entram em UCI não tem um desfecho para o qual não se está à espera. Ou seja, "o doente não morre de repente, há uma progressão no seu estado e a probabilidade de percebermos que vai haver um desfecho grave nas próximas horas é grande. Daí a necessidade de explicarmos tudo às famílias, de as apoiarmos, de as acompanharmos até se preparem quer para o melhor, quer para o pior". Ali o acompanhamento a quem está do outro lado, muitos deles em casa e também infetados, com dúvidas sobre o que fazer, vai desde a medicação, com a prescrição de receitas, à orientação do que deve ser fazer até à gestão das expectativas de quem está em internado e em situação mais grave.

"Tivemos doentes com falámos com as famílias todos os dias durante um e dois meses. A alguns familiares, que ficaram desorientados, tivemos de explicar como era o processo das baixas, ao que tinham direito. Houve outros, em que detetámos estarem a precisar de apoio psicológico, que encaminhámos para serviços de saúde. Aos que iam receber os doentes em casa explicámos todos os passos que tinham de dar para lhes proporcionarem os melhores cuidados, desde a fisioterapia ao apoio psicológico".

Para Camila Tapadinhas, trabalhar o lado humanista da medicina tem sido "um complemento" para a sua personalidade e, apesar do pior lado da pandemia,"o trabalho com as famílias tem-lhe proporcionado "um crescimento emocional enorme". "Tenho o privilégio de trabalhar num serviço que gosto, no qual sinto que há harmonia e união entre toda a equipa. E só isso também faz a diferença", reconhece.

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