Seis meses depois de ter instaurado o processo de inquérito ao médico Miguel Alpalhão do Serviço de Dermatologia do Hospital de Santa Maria, por suspeita de irregularidades na atividade cirúrgica adicional, divulgada em maio deste ano, por este ter auferido em dez sábados mais de 400 mil euros em 2024, a Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) vem dizer que o processo de inquérito foi arquivado do ponto de vista do direito disciplinar. A explicação está no facto de o médico não ter um contrato de regime da Função Pública com a instituição. Segundo refere o relatório final divulgado esta terça-feira, 11 de novembro, e a que o DN teve acesso, “atendendo a que o profissional de saúde visado não é detentor de relação jurídica de emprego público, tendo celebrado um contrato de trabalho regulado pelo Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro; o Inspetor-geral, nos termos da al. i), do n.º 1, do artigo 4,º do Decreto-Lei n.º 33/2012, de 13 de fevereiro, apenas pode “aplicar as penas disciplinares referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 9.º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem Funções Públicas nos processos instruídos ou decididos pela IGAS”.No entanto, na sua conclusão, a IGAS lembra que o Conselho de Administração da Unidade Local de Saúde (ULS) de Santa Maria, que integra o hospital, instaurou um processo disciplinar ao médico “pelo incumprimento das regras de acesso à inscrição de utentes na lista de espera e à realização de cirurgias” e que aguarda que lhe sejam comunicados os resultados. Segundo apurou o DN, este processo de inquérito está em fase de contraditório. Fonte do hospital referiu ainda ao DN que a unidade "não comenta" conclusões da IGAS. Mas em relação ao processo de inquérito à responsabilidade financeira, a IGAS considera existir matéria suficiente para ser investigada pela Justiça e enviou o relatório ao Ministério Público. “O processo de inquérito prossegue, no entanto, para a elaboração de uma informação relacionada com a eventual responsabilidade financeira dos intervenientes nos processos relativos aos pagamentos indevidos, a qual também visará o apuramento exato das diferenças entre os montantes que foram indevidamente remunerados como cirurgia de ambulatório e os que deveriam ter sido pagos pela atividade efetivamente realizada em pequena cirurgia”.E, de acordo com a IGAS, os factos apurados indiciam que há cirurgias que não foram inscritas no sistema de gestão de listas de espera no dia da consulta, que há codificação indevida e ainda falta de controlo de entradas e saídas de profissionais nos dias em que estas eram realizadas. No final, aponta também o dedo em termos de responsabilidade ao diretor de serviço. O relatório já foi enviado à ministra da Saúde e ao conselho de administração da ULS Santa Maria..IGAS deteta codificações “indevidas” nas cirurgiasRecorde-se que a IGAS instaurou este processo a 26 de maio de 2025, para investigar factos relacionados com a atividade cirúrgica realizada em produção adicional, bem como a classificação dos respetivos doentes em grupos de diagnósticos homogéneos (GDH) pelo médico Miguel Alpalhão no Serviço de Dermatologia, no período de 1 de janeiro de 2021 e o final do primeiro trimestre de 2025. A instrução do processo foi feita entre 4 de julho de 22 de setembro e terminado o relatório a 10 de outubro, tendo sido avaliados 511 episódios cirúrgicos, que foi objeto de peritagem por parte de três peritos especialistas, dois da área da codificação clínica e um da especialidade de dermatovenereologia.E nas conclusões a IGAS começa logo por referir que todas as cirurgias da amostra selecionada se enquadravam “no conceito de pequena cirurgia, atendendo a que não estavam reunidos os requisitos cumulativos para serem consideradas cirurgia de ambulatório, conforme previsto na Portaria n.º 207/2017, de 11 de julho, nas circulares normativas n.º 32/2014/DPS/ACSS, de 22 de dezembro, e n.º 15/2022/ACSS, de 27 de setembro, as quais mereceram ainda clarificação por parte da Administração Central do Sistema de Saúde I.P. (ACSS, I.P.)”.No relatório é mesmo referido que foi atribuída “a codificação indevida de diagnósticos adicionais de comorbilidade que levaram ao agrupamento no nível de severidade 2, em pequenas cirurgias que não utilizaram sedação, monitorização anestésica ou estadia em recobro”. Mas não só. Foi ainda atribuído “indevidamente o incentivo da malignidade numa percentagem de 19,7% da amostra considerada, no caso do médico visado, e de 33,3% no caso do Serviço de Dermatologia”, envolvendo assim outros profissionais. Mecanismos de controlo não funcionavamA IGAS detetou também falta de documentação clínica nos casos tratados e também e registos biométricos de entradas e saídas de profissionais de saúde necessários para a realização destes procedimentos. Segundo o relatório, foi detetada a “existência de não conformidades na documentação clínica, em especial a falta de descrição dos diagnósticos e dos procedimentos na inscrição das propostas cirúrgicas, que o Manual do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC) exige. Tendo ainda sido detetado “a inexistência de registos biométricos de entrada e saída nos sistemas de controlo de assiduidade, efetuados pelos profissionais de saúde intervenientes, exigível para a atividade realizada em produção adicional, e para o respetivo pagamento”, conforme está determinado na lei em vigor.No ponto oito das conclusões, “confirmou-se a ineficácia dos mecanismos de controlo interno da cirurgia de ambulatório em produção adicional na Unidade Local de Saúde de Santa Maria, E.P.E., uma vez que não foram identificadas as irregularidades ocorridas, nem foram emitidos alertas aos diferentes órgãos de gestão sobre os elevados valores processados aos profissionais”.IGAS aponta o dedo ao diretor de serviçoPor outro lado, a IGAS aponta também o dedo ao diretor do serviço de dermatologia , Paulo Filipe, - o qual se demitiu em junho deste ano, pouco depois de este caso ter vindo a público -, considerando ter existido “uma delegação informal pelo diretor do Serviço de Dermatologia no médico visado, das tarefas de organização da atividade de cirurgia adicional”, já que lhe cabia a ele, nomeadamente, “fazer as escalas, sempre e apenas aos fins-de-semana e feriados, as quais eram enviadas para a pessoa responsável pela administração da área”.A inspeção recorda que o primeiro alerta de irregularidades surgiu em 2022, “por parte da pessoa responsável pela administração da área, relativamente a desvios na produção cirúrgica adicional no Serviço de Dermatologia”. No entanto, “relativamente à atividade do médico visado não foi efetuado qualquer sinal de alarme, nem à quantidade, nem aos valores pagos e recebidos, embora tal fosse sempre do conhecimento do diretor do serviço”.Mas só em julho de 2024, e na sequência da identificação de um valor elevado pago ao médico visado, “o Conselho de Administração ( já liderado por Carlos Martins) questionou o Serviço de Gestão de Recursos Humanos, que justificou a legalidade do mesmo” - recorde-se antes de fevereiro de 2024 a presidente do Conselho de Administração era a atual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e quem e antes dela estava o gestor Daniel Ferro.Mas a 14 de novembro de 2024, refere o relatório, “o Conselho de Administração, suportado na informação mensal do Serviço de Gestão de Recursos Humanos, relativa aos pagamentos realizados em produção adicional (‘top’ vinte de profissionais de saúde), reportada a outubro de 2024, deliberou considerar para pagamento às equipas cirúrgicas apenas o preço para o nível de severidade 1 do respetivo GDH. As cirurgias em produção adicional foram ainda restringidas às situações oncológicas e o valor pago do GDH à equipa baixou de 55% para 45%”.Cirurgias realizadas não foram inseridas no SIGIC no dia da consulta, o que adulterava listas de esperaDe acordo com o que foi apurado pela IGAS, “os contratos de produção adicional do Serviço de Dermatologia não identificam ou discriminam a tipologia das cirurgias passíveis de realizar em produção adicional e apenas referenciam como critério de seleção o tempo máximo de resposta garantida; assim, não se verifica qualquer diferenciação entre a atividade em produção base e a atividade realizada em produção adicional”. Verificando-se ainda que “as propostas cirúrgicas não foram inseridas no Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGLIC) aquando da realização da consulta, sendo registadas apenas em suporte de papel, o que adulterava a lista de inscritos para cirurgia, uma vez que esta não refletia a antiguidade”.Por outro lado, “não foram efetuadas as validações das propostas cirúrgicas pela direção do serviço, nem obtidos os consentimentos informados, nem elaboradas as respetivas notas de alta”. Não havendo “segregação de funções no processo de gestão do episódio do doente proposto para cirurgia, uma vez que o médico visado intervinha nas seguintes fases: elaboração da proposta cirúrgica, validação da proposta cirúrgica, realização da cirurgia, elaboração do relato cirúrgico e realização da codificação da cirurgia”. Segundo a IGAS, “o médico visado emitiu e aprovou 450 propostas cirúrgicas e emitiu, aprovou e codificou o mesmo ato cirúrgico em 356 episódios”.Numa tentativa de parar com este processo, em 2024, “o Conselho de Administração determinou a cessação da prática de codificação dos próprios processos em todos os serviços, a fim de assegurar a segregação de funções”.Médico auferiu mais de 700 mil euros e marcou consultas para os pais sem referenciaçãoA IGAS chegou confirma ainda nesta averiguação que o médico em causa recebeu 714.176,42 euros com a produção adicional cirurgia realizada fora do horário normal de trabalho, em dias de descanso semanal ou de compensação de feriado. E terá marcado ainda “consultas de dermatologia para os seus pais, sem que existisse uma referenciação prévia, e elaborou as propostas cirúrgicas e realizou as cirurgias; por este motivo foi-lhe instaurado pela Unidade Local de Saúde de Santa Maria, E.P.E. um processo disciplinar que à data se encontra em fase de defesa, estando a IGAS a aguardar o resultado do referido processo.Segundo a IGAS, os atos clínicos analisados na amostra foram “efetivamente realizados; todavia, os procedimentos não podiam ter sido remunerados através do SIGIC, por não terem enquadramento, mas sim através de outra forma de pagamento, como o trabalho suplementar”. Em Atualização.Hospital Santa Maria abre mais quatro inquéritos ao Serviço de Dermatologia