De aprender francês com os belgas em Luanda à dificuldade de "vender a França" em Portugal
"Au clair de la Lune, mon ami Pierrot", "C"est la Mère Michel qui a perdu son chat", cantarola Manuela Júdice, recordando os clássicos infantis franceses que aprendeu ainda em Luanda quando tinha 5 ou 6 anos. "Na realidade, o francês é a minha primeira língua estrangeira", explica, sentada à mesa da sua casa de férias em Mexilhoeira Grande, a terra do marido, o poeta Nuno Júdice, ali bem perto de Portimão. E foi precisamente o francês que nos trouxe até aqui, depois de Manuela ter sido nomeada comissária portuguesa da Temporada Cruzada França-Portugal" 2022.
Manuela volta à infância para recordar o disco de 45 rotações com um cone facetado e espelhado no meio que ia projetando as imagens enquanto ela e uma prima ouviam as músicas. "Íamos vendo o gato, a Mère Michel que encontrava finalmente o gato!", ri-se. Nascida em Angola, foi com belgas que Manuela aprendeu as primeiras palavras de francês. Foi aliás através do consulado belga que os seus pais conseguiram fazer vir da União Soviética um antídoto quando ela e o irmão tiveram poliomielite. E Manuela diz recordar como se fosse hoje a chegada dos refugiados aquando da independência do Congo belga. "Estava eu na quarta classe, tenho uma recordação muito viva disso", conta. "Nós deixámos de ter aulas porque a escola foi requisitada para receber as famílias. Eu sempre fiz a escola pública."
A verdade é que se o francês foi a sua primeira língua estrangeira, e se sempre teve muito boas notas a esta disciplina, quando, já em Lisboa, chegou a hora de escolher o curso, em vez de Românicas como todos lhe recomendavam, Manuela preferiu seguir Germânicas. Mesmo se, pelo sim pelo não, foi fazer o sétimo ano de francês.
Estamos a falar do tempo em que o francês era a primeira língua que os alunos podiam escolher - "o inglês só aparecia aos 13 anos", conta Manuela, lembrando que o alemão, esse, só aos 15 e "para quem queria ir para Direito ou para Germânicas". Hoje o francês só surge mais tarde, com muitos alunos a optarem antes pelo espanhol, que imaginam mais fácil.
A também secretária-geral da Casa da América Latina admite que sempre teve facilidade para línguas - "adquiria muito rapidamente os sotaques". E acaba por recordar os tempos em que trabalhou em Berna para a União Postal Universal. "O francês era a língua da diplomacia e das organizações internacionais no século XIX. E a União Postal nasceu no final do século XVIII, início do XIX, com o francês como língua universal. Quando as Nações Unidas foram criadas depois da Segunda Guerra Mundial, tanto a União Postal como a União das Telecomunicações entraram no sistema da ONU como agências especializadas mas sempre garantindo o francês. E ainda hoje a União Postal mantém essa língua."
Durante os sete anos que passou na capital suíça, o alemão era "a língua para ir às compras, para falar com os vizinhos, quando havia barulho..." Aqui não resistimos a brincar com a obsessão dos suíços com os horários, com as regras e com o silêncio, uma realidade nacional com que eu também lidei, tendo vivido na Suíça até aos 13 anos - no meu caso na parte francófona, em Lausanne. E Manuela acaba por contar o "episódio do vidrão", como lhe chama. "Um dia houve um jantar lá em casa e o vinho tinto era Quinta da Pacheca. Ora as garrafas de Quinta da Pacheca não são nem verdes nem castanhas, são de uma cor escura e fosca. No dia seguinte fiquei com duas garrafas na mão, vazias, a olhar para o vidrão e a pensar "meto no verde ou meto no castanho?" É que lá há essa separação. O vidro não é só vidro. Há vidro branco, vidro verde e vidro castanho. Há um senhor que me vê a hesitar e mal eu acabo de pôr as garrafas no verde vem dizer-me: Das ist nicht grün!" Pois! E eu lá disse, "olhe, agora já está em cacos"", remata com uma gargalhada.
O respeito pelas regras era tal que Manuela recorda como "vivíamos de porta aberta. Os miúdos vinham almoçar a casa e a porta ficava só no trinco". Os miúdos são os três filhos de Manuela e Nuno Júdice: a Joana, a Filipa e o André.
Aqui aproveito para perguntar se a paixão pelo francês passou para as gerações seguintes, para os filhos e os netos. Manuela confirma: "Passou para todos." Aliás, em Berna os filhos andavam na École Cantonale de Langue Française, que recebe os filhos dos funcionários federais, mas também dos funcionários internacionais e diplomatas. "Todos me diziam que eles tinham de ir para a escola alemã, mas eu, apesar de ser de Germânicas, não me sentia com capacidade de os ajudar a integrar-se com o alemão. Com o francês era mais fácil."
De volta a Lisboa, e com a filha mais velha a já ir para a universidade, os dois mais novos - um com 13, outro com 14 anos - foram para o Liceu Francês. "Quis que passassem pelo Liceu Francês porque aí tinham Português. E eles em Berna só tinham aulas de Português 50 minutos por semana. Eu não queria que eles fossem para as aulas e em vez de Argélia, dissessem Algérie!", ri-se Manuela.
Joana, a mais velha, "fez Erasmus em Estrasburgo, acabou a ir trabalhar para França , para uma organização francesa em Paris, e por se casar com um francês", conta Manuela, não espantando por isso que a neta tenha feito a escola toda bilingue. O filho mais novo, André, é casado com uma mexicana e só Filipa se casou com um português. Ora numa família tão internacional, Manuela garante que a língua de comunicação entre todos é mesmo o francês! "Mesmo com a nora mexicana. Embora ela e o meu filho falem inglês entre eles porque se conheceram nos Estados Unidos". Os restantes quatro netos frequentaram todos o Liceu Francês, onde os dois mais novos ainda andam.
Já Manuela, mesmo passadas mais de duas décadas, garante que ainda guarda algumas das expressões que aprendeu nos seus tempos de Suíça. "Ainda hoje nas reuniões do comité misto, que são em francês, me saio com essas expressões. E eles divertem-se imenso porque as expressões existem mas já ninguém as usa! E dizem-me: "Isso existe em francês, mas já ninguém usa." Ora, uso eu, vão-se habituando!", conta com uma nova gargalhada.
"Os livros em casa dos meus pais e do meu avô paterno eram livros em francês. Todos aqueles romances sobre a Segunda Guerra Mundial existiam lá em casa em francês. Tirando os escritores brasileiros, que estavam em português, e depois o Camilo e o Eça, tudo o resto se lia em francês. Os alemães liam-se em francês, os ingleses liam-se em francês", recorda Manuela num novo regresso à infância. E explica como "o acesso ao francês escrito foi sempre para mim muito natural. Era o que estava ali à mão".
Então em que momento se dá a viragem dos jovens para o inglês? Segundo Manuela, mais do que com o audiovisual, é possível que tenha sido com a música. "No ano em que em vim para a faculdade, tinha muitos discos, muita música francesa, desta música ié-ié. Assinava as revistas Mademoiselle Âge Tendre e Salut les Copains. E lembro-me de os meus amigos já estarem noutra, de ouvirem Beatles e Rolling Stones."
Anos mais tarde, quando Manuela foi matricular a filha Joana no primeiro ano do ciclo preparatório e escolheu francês como primeira língua, uma amiga que trabalhava nessa escola ligou-lhe a dizer "ouve lá, inscreveste a tua filha em francês?" "Eu disse que sim, que queria que ela tivesse francês. E ela diz-me: "Olha que eu até sou de francês mas tu não faças isso, põe a tua filha em inglês porque as turmas de francês são as turmas dos maus alunos. Inscreve-a em inglês e mete-a na Alliance Française." Que foi o que acabei por fazer", recorda.
E hoje, haverá alguma tendência para um regresso dos mais jovens ao francês, questiono? Manuela admite que não é fácil.
Mesmo se alguns amigos lhe confessaram que os filhos os recriminam por não os terem posto no francês. "Mas não sei se é geral ou se são condições específicas ligadas a determinados meios, ao meio artístico. Não sei." E reconhece que "o francês foi uma coisa que deixou de ter interesse. As pessoas não se interessam. E até têm má vontade. Acham que o inglês é mais fácil. Talvez por a gramática ser mais acessível. Mas muitos acabam por nem falar inglês, falam um patoá qualquer".
Ora esta falta de interesse pelo francês é um dos grandes desafios para Manuela enquanto comissária portuguesa para a Temporada Cruzada França-Portugal 2022. Aqui, a também secretária-geral da Casa da América Latina não pode deixar de fazer a comparação com a Feira do Livro de Guadalajara, no México, em 2018, de que também foi comissária. Embora admitindo que "são coisas diferentes. Guadalajara eram livros e outras artes mas sempre ligadas à literatura".
Já a Saison "é algo que existe há 30 anos", envolvendo sempre França e outro país. Todas as instituições francesas - museus, bibliotecas, festivais, etc. - já se habituaram à sua existência, por isso contam nas suas programações com programas relacionados com o país que estará à l"honneur dessa temporada. "Em Portugal isto não existe", explica Manuela, admitindo que a Temporada Cruzada é pouco conhecida por cá.
A decisão de envolver Portugal nesta iniciativa, conta Manuela, é política, tendo partido do presidente Emmanuel Macron e do primeiro-ministro António Costa, "cuja primeira língua estrangeira é o francês", recorda. Estávamos em 2018, era para decorrer em 2021 mas as coisas acabaram por se arrastar. Pensada para decorrer entre a presidência portuguesa e a presidência francesa do Conselho da UE, esta temporada acabou por atrasar um ano devido à pandemia. Na altura, ficou definido que a iniciativa ia ter três temas: ambiente, igualdade de género (a que os franceses chamam parité) e oceanos - interligando língua francesa e portuguesa e a Europa.
A verdade é que só a 31 de maio deste ano foi convocada uma reunião com todos os ministérios para Manuela Júdice explicar exatamente o que era a Temporada Cruzada e o que estava a ser feito.
Então e como é que chegaram à Manuela para organizar esta saison? A própria diz com humor: "Chegaram a mim como quem chega sempre a mim quando há muito trabalho e não há dinheiro!" Já conhecia a ministra da Cultura, Graça Fonseca, desde os tempos como vereadora (entre 2007 e 2009) na Câmara de Lisboa pelo movimento Cidadãos por Lisboa e foi ela quem lhe ligou a convidá-la. Manuela ainda argumentou que está reformada e "sossegadinha em casa", mas o dever falou mais alto e lá aceitou.
Neste momento, já há mais de cem projetos aprovados, sobretudo nas áreas das artes plásticas e da música, além de "não muitos, mas grandes" projetos na área do teatro. O cinema ainda está um pouco atrasado, mas "tradicionalmente são os últimos a aparecer".
Do lado francês, explica a comissária, o interesse por Portugal é enorme. "Portugal está na moda!", exclama. E França até pediu mesmo a Portugal para ter a primazia na organização de um fórum sobre igualdade de género que vai decorrer em Angers, onde estão os arquivos do feminismo, além de os dois países estarem a trabalhar em conjunto num outro fórum, este sobre os oceanos. "Portugal e França são os dois únicos países da União Europeia a ter um Ministério do Mar", explica Manuela.
Do lado de cá, é tudo mais complicado. "Hoje Paris e França quase só existem para ir tirar uma fotografia frente à Torre Eiffel. Quando eu morava em Paris e as pessoas iam a França - amigos ou conhecidos do Nuno, os tipos do cinema, da literatura -, toda a gente escolhia ficar na zona dos Grands Boulevards e da Madeleine", recorda. E volta a cantarolar: "Les Grands Boulevards, y a tant de choses, y a tant de choses a voir", recordando a canção de Yves Montand. "E depois iam ao Arco de Triunfo e à Torre Eiffel, mas não era esse o objetivo principal", explica.
Neste momento, Manuela só lamenta não ter começado do zero. E, recuperando a experiência da Feira de Guadalajara, reconhece que "é muito mais difícil "vender" a França em Portugal do que "vender" o México". Apesar de uma cada vez maior comunidade francesa em Portugal -"vai abrir uma nova escola francesa, há queijarias francesas, padarias francesas, etc.". Mas não é com ela que Manuela conta para encher as salas, até porque o seu desejo é "mostrar a França aos portugueses". E para isso conta também com uma das grandes atrações da Temporada Cruzada: um autorretrato de Poussin, emprestado pelo Louvre ao Museu Nacional de Arte Antiga.
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