O que traz à compreensão do fenómeno, e em que medida ajuda a luta contra o flagelo, olhar para a violência em contexto de intimidade pelo lado dos agressores?Na realidade, será sempre uma análise incompleta aquela que se debruçar apenas sobre um dos lados de um contexto relacionar que tem dois atores sociais e não apenas um. A violência no contexto da intimidade tem uma lógica relacional e é na relação vítima/agressor, ou seja, numa lógica biunívoca que ela deve ser compreendida. O estudo da violência pelo prisma da vítima, que é fundamental e que foi o que temos feito mais em Portugal ao longo de 2-3 décadas, tem permitido evoluir em termos de conhecimento científico, mas também na capacidade de a ciência informar e ajudar os decisores políticos a desenharem políticas públicas de proteção às pessoas vítimas que sejam, cada vez mais eficazes. Mas na análise dessa dimensão da vitimação, o crime já foi perpetrado. Por isso, é fundamental perceber e analisar quais são as dinâmicas relacionais e individuais, sociais e culturais do agressor que potenciam a agressão, ou por que é que o agressor sente que é legítimo o uso da violência no contexto da intimidade. É isso que a grande maioria dos estudos nacionais e internacionais demonstram, o uso da violência apenas na esfera da intimidade e no espaço da casa. Se conseguirmos desconstruir cientificamente esses mecanismos, estaremos mais capacitados para intervir no sentido de combater este tipo de violência. Ora, na minha perspetiva, há um fator fundamental que se salienta no uso deste tipo de violência que são as lógicas de poder assimétrico de género.Por que razão há poucos estudos sobre agressores?Creio que a partir da década de 90 e durante grande parte dos anos 2000 apostou-se na coleta de conhecimento partindo do contexto e fundamentalmente das necessidades imediatas das vítimas. Tentou-se ainda compreender o impacto social e económico deste tipo de violência quer nas suas vítimas quer na sociedade em geral. Há aliás estudos feitos pela nossa equipa do Observatório Nacional de Violência e Género que demonstram como fica muito mais caro às sociedades ter de investir na proteção do que na prevenção. E, por isso, é verdade que até recentemente, havia poucos estudos sobre os agressores. Mas foi precisamente na compreensão de que este fenómeno só se combate com um conhecimento profundo das suas lógicas relacionais, que a ciência começou a tentar analisar a génese deste tipo de crime que é a agressão. Através das minhas investigações, tanto com vítimas como com agressores, tendo a afastar-me de uma visão que entende que na génese da agressão estão dimensões de uma personalidade com dificuldades de gestão de emoções ou de perfis com algum tipo de perturbação de personalidade, porque é para mim muito claro que a maioria dos agressores se sente empoderado pelos seus modelos e valores de uma masculinidade exacerbada que entende a parceira íntima como algo sob o qual tem o controlo e poder.Quais as falhas principais desses programas de intervenção?Sou da opinião, e era desde há muito tempo, de que estes programas de intervenção são fundamentais. Quando falamos de prevenção, também estamos a falar disto: a capacidade de intervirmos junto de agressores para que não reincidam num crime com elevadas taxas de reincidência. E, por isso mesmo, estes programas são importantes por isso. Mas reconheço que há muitas pessoas que estudam e que trabalham no terreno este tipo de violência que têm, sobre estes programas, muitas questões. Desde logo o tipo de intervenção que é feita no decurso dos 18 meses (no PAVD por exemplo), onde a lógica psicoeducacional da intervenção tende a ver a violência doméstica como o resultado de um défice de competências ou de traços de personalidade disfuncionais. Não me aproximo desta visão. É na desconstrução dos modelos de masculinidade exacerbados, que reforçam o domínio do masculino sobre o feminino e que utilizam a violência como meio para o exercício desse domínio, que reside, no meu entender, a chave para a eficácia destes programas de intervenção. .Violência doméstica. Programas para agressores atingiram em 2024 o número mais alto de frequentadores. Sobre essa eficácia. Há poucos indicadores estatísticos, quer qualitativos, quer quantitativos. Por que razão acha que isso acontece?Não tenho uma resposta concreta. Apenas algumas hipóteses. Mas há uma coisa de que tenho a certeza: todos os envolvidos neste tipo de trabalho, desde a própria DGRSP como os seus técnicos, académicos e a sociedade em geral, têm interesse em saber o verdadeiro impacto e eficácia da intervenção, porque, como lhe disse, vejo-a como fundamental. Mas também é fundamental perceber se está a funcionar. Está a diminuir a reincidência? Se sim, por que continua o crime de Violência Doméstica (VD) a ser dos que os seus perpetradores mais reincidem? Porque é que, ano após ano, as denúncias deste crime não baixam consistentemente? Teremos, por ano 28 mil a 30 mil novos perpetradores? Ou alguns desses são reincidentes e já passaram pelos programas de intervenção?O sistema ainda é preconceituoso? É. Creio que o crime de VD, apesar da enorme consciência social que tem levantado e apesar de ser o crime contra as pessoas mais praticado, continua a ser considerado um crime de menor importância. Há acórdãos de juízes que revelam como existe, por vezes, uma desculpabilização do agressor, um branqueamento do uso da violência e, por vezes, até uma culpabilização da vítima. Temos muito que pensar enquanto sociedade.Ao fim de vários anos a estudar estas problemáticas, é uma otimista?Testemunhei o rápido e exemplar percurso que Portugal tem vindo a percorrer em matérias de igualdade de género e de combate às múltiplas violências de género. Portugal é visto como um exemplo na Europa, até entre alguns países nórdicos, que são vistos como um bom exemplo em matérias de igualdade de género. Este trabalho foi árduo e foi preciso vencer muitas barreiras e resistências. Temos mulheres e homens, que passaram pelos nossos Governos, que encabeçaram bem essa luta. No entanto, ano após ano, continuamos sempre a debater os mesmos crimes que afetam desproporcionalmente as mulheres. Parece que temos avançado muito mas, por vezes, com pouco efeito prático e, para mim, isso deve-se a uma menor aposta na prevenção. É fundamental formar as nossas crianças e jovens para a igualdade e para o respeito pela liberdade e autonomia do outro. Isso não tem sido feito de forma eficaz. Os números da violência no namoro devem preocupar e envergonhar a todos e todas. Fico ainda mais preocupada quando oiço e vejo o atual Governo vir dizer que é preciso repensar os manuais escolares para a cidadania e igualdade de género.