Um em cada três portugueses morre de doença cardiovascular. São 35 mil por ano, de acordo com os dados da Direção-Geral da Saúde, o que faz desta a principal causa de morte em Portugal - mata mais do que todos os tipos de cancro juntos, por exemplo. Um quadro preocupante agravado pela pandemia de Covid-19, que fez aumentar o número de doentes com insuficiência cardíaca, e que motivou um grupo de especialistas a reunir-se para discutir estratégias: como podemos começar a melhorar a saúde do coração e reduzir a mortalidade cardiovascular em Portugal? E as respostas vão desde uma melhor prevenção a novas terapêuticas, ou à necessidade de criar um sistema integrado de saúde que facilite um acompanhamento multidisciplinar do doente.."Antes de mais, é preciso consciencializar a população para isso, porque nem toda a gente sabe que esta é a primeira causa de morte em Portugal e no mundo. É importante fazer passar a mensagem que mesmo após a covid, a doença cardio e cérebro-vascular continua a ser a que mais mata", refere ao DN a cardiologista Ana Abreu, coordenadora do Grupo de Estudo do Risco e Prevenção Cardiovascular da Sociedade Portuguesa de Cardiologia e uma das especialistas que se juntaram num Workshop dedicado à Prevenção Cardiovascular, que reuniu profissionais de saúde de diferentes especialidades na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL)..Sendo a maioria das mortes por doença cardiovascular evitáveis com uma correta prevenção ou diagnóstico atempado, Ana Abreu diz que prevenir é mesmo o melhor remédio e aponta a educação em Saúde como um elemento-chave de qualquer estratégia para combater os fatores de risco associados e já devidamente identificados - como o tabagismo, a obesidade, o colesterol elevado, a diabetes, hipertensão arterial, o stress, o sedentarismo e os maus hábitos alimentares.."Continuamos a falhar ainda num aspeto fundamental, que é consciencializar as pessoas de que são as principais responsáveis pela sua saúde. Temos de fazer chegar-lhes essa mensagem de forma simples e eficaz. E de que devem preocupar-se com isso desde cedo, de forma a adoecerem o mais tarde possível. A mensagem-chave é mesmo essa: a sua saúde depende de si", diz a diretora do Instituto de Medicina Preventiva & Saúde Pública da FMUL..Uma mensagem ainda mais importante quanto é sabido, hoje, que muitos desses fatores de risco estão associados a múltiplas outras doenças, como cancros ou doenças respiratórias. "Apesar da redução da mortalidade cardiovascular [em cerca de 20% na última década] devido às novas terapêuticas, é importante perceber que as pessoas morrem mais tarde mas vivem mais tempo doentes. A partir dos 65 anos temos uma grande percentagem da população que além de ter doença cardiovascular tem outras doenças crónicas. E esta multimorbilidade está associada não só a mortalidade como a grande incapacidade", refere a cardiologista, sublinhando os "elevados custos" que este "grau de incapacidade e de doença" da população tem para o sistema nacional de saúde..Por isso, defende Ana Abreu, é fundamental um investimento na educação para a Saúde, promovida "desde cedo, nas escolas, logo no pré-escolar", com "mensagens-chave simples" que promovam hábitos saudáveis. Só assim se pode impedir a sobrecarga do sistema, a médio e longo prazo, ainda para mais sabendo-se que, "hoje em dia, há outro aspeto importante que começa a ser valorizado, que são os chamados determinantes sociais de saúde e que nos mostram que países com baixa literacia e baixo-médio rendimento económico têm muito mais multimorbilidade, e mais cedo, do que países de alto rendimento económico. E a diferença pode ser de 20 anos", nota..Outro aspeto debatido pelo grupo de especialistas foi a necessidade de criar um sistema integrado de saúde que facilite o acesso do doente a novas terapêuticas e a um acompanhamento multidisciplinar por parte de profissionais de saúde - da cardiologia à medicina geral e familiar, no acompanhamento constante que deve ser realizado com doentes que tenham sofrido enfarte ou que apresentem risco elevado de sofrer uma complicação cardiovascular.."Isso está nas recomendações e todos os médicos têm que saber: um doente, depois de ter um enfarte, passa a ter medicação obrigatória para o resto da vida, se não provavelmente irá ter outro enfarte, vai entupir outra vez uma artéria", diz Ana Abreu. O abandono da terapêutica é mesmo um dos grandes problemas que urge combater, considera a cardiologista, destacando que "muitos doentes, mesmo ao fim de um mês, já pararam a medicação". "Na minha prática, mais de metade dos doentes param algum medicamento, com pretextos vários, seja porque acham que um medicamento lhes está a fazer "nódoas negras" ou porque não têm colesterol alto e pensam que não precisam do remédio para o colesterol, entre outros.".Para ajudar neste campo, emergiu nos últimos anos uma solução terapêutica que, segundo um estudo recente, pode ajudar a reduzir a mortalidade em cerca de 33%, revela a diretora do Instituto de Medicina Preventiva & Saúde Pública da FMUL. Trata-se da chamada polypill, uma espécie de supercomprimido que conjuga "três fármacos imprescindíveis para conseguir os objetivos grandes que nós queremos alcançar: que a artéria não entupa, baixar o colesterol e desinflamar as placas, e melhorar a pressão arterial e a função cardíaca", descreve. "Com esta polypill, é mais difícil os doentes abandonarem a terapêutica. Até porque não podem abandonar só um. Quando abandonam, abandonam tudo", salienta Ana Abreu..A criação de novos rastreios junto da população surge também como uma das medidas que é importante implementar, segundo os especialistas. Ana Abreu destaca a necessidade de "conhecer a população portuguesa e as suas características". "As pessoas que têm ou não médico de família, cujo acompanhamento é feito no setor público ou privado, o seu historial, a sua evolução através de sistemas de informação do Serviço Nacional de Saúde, são dados cruciais para controlar a doença e melhorar a intervenção e o tempo e qualidade de resposta", acrescenta, realçando ainda a importância de alargar os rastreios a outros grupos alvo. "Por exemplo, é importante alargar rastreios de colesterol também a pessoas jovens para identificar o problema da hipercolesterolemia familiar, um problema gravíssimo que afeta jovens e crianças e de que as pessoas muitas vezes não têm conhecimento porque normalmente os jovens não fazem análises. Também nos doentes fumadores, outro exemplo, é importantíssimo saber se têm colesterol alto, se têm diabetes, porque os vários fatores de risco se potenciam. E pode ser mais uma motivação para uma pessoa deixar de fumar, se souber que mais fatores de risco.".A eficácia dos rastreios é fundamental para um diagnóstico atempado, até porque este é geralmente um "assassino silencioso", com metade dos enfartes do miocárdio e de morte súbita a ocorrerem sem previamente terem dado sintomas premonitórios..Quanto ao impacto de três anos de pandemia de covid-19, os dados ainda não estão completamente esclarecidos, uma vez que muitos doentes não recorreram às unidades de saúde ou a profissionais, mas Ana Abreu perspetiva que "este impacto poderá ser muito negativo, o que reforça a necessidade de agir rapidamente". E há uma consequência que está já bem identificada: um aumento de doentes com insuficiência cardíaca. "São doentes que se cansam, que têm uma alteração da qualidade de vida, têm de fazer uma quantidade grande de medicação, têm de ser vigiados. Uns são mais graves outros menos, depende da extensão do músculo afetado", descreve a cardiologista.."Muitas pessoas tinham medo de ir ao hospital, sentiam dores no peito mas ficavam em casa: Muitas morreram em casa. Outras não morreram, mas o enfarte seguiu o seu trajeto e perderam uma parte da função de bomba do coração, houve uma parte do músculo cardíaco que morreu. Essas pessoas hoje são doentes cardíacos e se não tivesse havido Covid podiam ter ido ao hospital ser tratados atempadamente", relata. Além disso, lembra, a insuficiência cardíaca "também pode ser causada por uma miocardite, por exemplo, que foi uma consequência comum em muitos doentes com covid"..Para Ana Abreu, os doentes que tiveram Covid, "de uma maneira geral, deviam ser estudados do ponto de vista cardiovascular e respiratório. Se o doente voltou à sua vida normal, não se cansa, não nota qualquer alteração, não precisa de fazer exames. Agora, se nota que a sua vida se alterou de alguma forma, sente alguma fadiga que não sentia antes, esse doente tem de ser estudado". Estimativas apresentadas pela Associação de de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca indicam que esta doença afeta atualmente entre 500 a 600 mil pessoas em Portugal, sendo responsável por cerca de 5.000 mortes por ano. A insuficiência cardíaca é já a terceira causa de internamento das pessoas com mais de 65 anos e, ao fim de cinco anos, cerca de 40% das pessoas com esta doença acabam por morrer..Os números não enganam: "é urgente" um plano "mais eficaz" em matéria cardiovascular. E é esse contributo que este grupo de especialistas pretende dar, aproveitando o trabalho desta reunião realizada na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa para fazer chegar um conjunto de "propostas estratégicas à DGS, ao ministério da Saúde e ao coordenador para as doenças cardiovasculares"..rui.frias@dn.pt