O responsável da Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo da Polícia Judiciária recorda o caso ao DN. “Um caso que nos levou 36 anos”, diz. De acordo com João Oliveira, em 2009, a Polícia Judiciária recuperou um par de pistolas da Casa Real Portuguesa, propriedade do Estado Português, que estavam expostas para venda numa leiloeira e que haviam sido furtadas no ano de 1973 do Museu Militar em Lisboa. Tais armas “de grande valor histórico e cultural” tinham elevada cotação no comércio da especialidade – de valor superior a 100.000 euros. Os exemplares, únicos, haviam sido fabricados em 1817 para uso pessoal do Rei D. Pedro IV pelo mestre armeiro do Arsenal Real de Lisboa, Thomás Jozé de Freitas, que as ornara com embutidos de ouro e prata.O autor do furto havia sido julgado e condenado, alguns anos antes, na sequência da investigação que a Polícia Judiciária então realizou. “Na altura não foi possível recuperar as armas, uma vez que já tinham saído do País, mas anos depois, em 1991, descobrimos que estavam na posse de um cidadão alemão que as colocou para venda na Sotheby´s”, em Londres. . A saga continua. João Oliveira recorda o processo judicial que o Estado português interpôs na justiça britânica e, mais tarde, num tribunal alemão. Processos que perdeu. Muitos anos depois (2009) as armas entraram de novo no círcuito comercial, tendo sido adquiridas por um cidadão português. Que as colocou em leilão. “Foi aí que as detetámos e apreendemos, tendo sido entregues por nós ao Museu Militar”. Quase quatro décadas depois. Mais rápida foi a resolução de um outro caso. No assalto à mão armada ao museu Militar de Elvas, em 2010, o suspeito foi rapidamente identificado e as armas recuperadas. “Dada a próximidade com Espanha, a rapidez foi muito, muito importante”, diz João Oliveira.Museus: cofres vulneráeisEm menos tempo do que demora beber um café, obras de arte incalculáveis e relíquias históricas foram arrancadas das paredes e vitrinas de alguns dos museus mais prestigiados do mundo ao longo dos tempos. Dos passos discretos de um antigo empregado que levou a Mona Lisa em 1911 ao assalto audacioso que, em outubro de 2025, arrancou joias napoleónicas do Louvre em plena luz do dia, estes crimes expõem uma equação cruel: alto valor cultural associado a brechas de segurança é igual a risco permanente. No silêncio dos museus, o som do alarme parece impensável. A ideia de que alguém possa atravessar a penumbra, desligar câmaras, cortar telas, arrancar joias de uma vitrina é quase inconcebível — até acontecer. Vamos então ao mais recente caso, ocorrido no Louvre, o museu mais visitado do mundo. Num golpe executado em poucos minutos, assaltantes usaram equipamento de construção para aceder à galeria de Apolo e levar oito joias históricas pertencentes à coleção nacional francesa, fugindo de seguida em scooters. Tempo mínimo, impacto máximo - o raio de ação é sempre rápido, entre 3 e 10 minutos, com planeamento prévio e saída igualmente cuidada. Os ladrões focam-se em peças fáceis de retirar ou em vitrinas vulneráveis, usando serras, maquinaria de elevação e disruptores de alarmes contra vidro antishatter, sensores redundantes e sistemas de monitorização integrados, tal tem sido a corrida securitária e tecnológica contínua por parte das instituições. .As obras roubadas do Louvre:. Entre o mito e a realidade, os ladrões de museus tornaram-se personagens de fronteira: nem heróis, nem marginais vulgares. Em construções cinematográficas, são um espelho distorcido da própria obsessão humana pela beleza e pela posse. Mas essa imagem do ladrão de arte — o dândi culto e sedutor (veja-se a versão de 1999 de Thomas Crown: A Arte do Crime, filme em que Pierce Brosnan é o gentil bilionário que orquestra uma invasão ao Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque, nos Estados Unidos) — raramente corresponde à realidade. Segundo a Interpol - cuja lista conta com 57 mil itens roubados, sendo que estão apenas registados objetos de arte reportados pelas agências policiais dos respetivos países ou por entidades como a UNESCO -, a grande maioria dos golpes são cometidos por criminosos sem formação artística, integrados em redes com ramificações no tráfico de drogas, armas e falsificação. Trata-se de assaltos planeados com operações logísticas complexas, acertadas ao milímetro, muito longe da mítica aura romântica. Apesar de haver registo de impulsos individuais - seja o colecionador frustrado, que rouba por ganância e desejo de posse; o funcionário desiludido, que conhece as falhas do sistema procurando um momento de poder e glória, ou o militante empenhado em “corrigir” a história e humilhar o estado -, em regra, temos pela frente um profissional frio, que age por contrato. O mito, outro, do milionário excêntrico que compra arte roubada não passa em grande parte disso mesmo. Sobretudo depois do assalto ao Isabella Stewart Gardner Museum, em Boston, em 1990 — de onde dois homens disfarçados de polícias levaram treze obras-primas avaliadas em 500 milhões de dólares —, ficou claro que por detrás de cada roubo há, em regra, um mercado negro tão real quanto impiedoso. As obras roubadas raramente são vendidas como arte; são moeda de troca em negócios ilícitos: resgate de reféns, pagamento de dívidas entre máfias, garantias em transações de drogas. A pandemia, com a diminuição da vigilância nos museus, trouxe nova escala ao tráfico ilícito de património cultural, a nível planetário. Quanto vale este mercado negro não se sabe ao certo. Mas sabe-se que é cada vez mais lucrativo. Portugal está na lista: tem 278 objetos de valor histórico ou cultural listados na aplicação ID-Art da Interpol, que foram roubados do país. Caso português .A brigada de Investigação do Património Cultural da PJ é constituída por seis inspetores e uma inspetora-chefe. “Felizmente para o país, não temos muitos casos de assaltos a museus”, retrata João Oliveira, lembrando que o âmbito da brigada se estende ao roubo de arte sacra, falsificação e assaltos e furtos a residências particulares. O responsável da PJ dá dois exemplos de investigações em curso: o furto, no verão passado, de dois jarrões de elevado valor histórico e pecuniário pertencentes ao espólio do palácio de Monserrate, em Sintra, e o desaparecimento de uma valiosa tapeçaria de um museu de Portalegre . “Trata-se de peças que interessarão a pessoas com grande poder aquisitivo, que serão transicionadas no mercado negro, muito provavelmente para os circuitos atualmente clássicos - Ásia e Arábia." Algumas peças desaparecem por décadas e regressam por acaso — em heranças, inspeções alfandegárias ou confissões tardias. Outras ressurgem disfarçadas: quadros repintados, esculturas restauradas com pequenas alterações, identidades alteradas nos registos digitais de proveniência. A fronteira entre o original e a cópia tornou-se, também, uma forma de crime. As obras raramente surgem em leilões públicos; normalmente circulam por circuitos privados, passam por intermediários ou são desmanteladas (no caso de joias). Bases como a Art Loss Register e a cooperação de agências (INTERPOL, polícias nacionais) aumentam as hipóteses de rastreio, mas a recuperação a longo prazo é rara: muitas obras simplesmente desaparecem do domínio público.O Estado segura-se a si próprioPortugal não figura entre os países com mais roubos de museus, mas partilha a fragilidade de outros Estados com vasto património e o roubo do “Tesouro da Senhora da Oliveira”, em Guimarães (1975), o desaparecimento de uma pintura do Museu Nacional de Arte Antiga (1974) ou o furto das joias do Tesouro Real durante uma exposição na Holanda (2002) mostram que o risco existe e não é apenas interno. Em Lisboa, a diretora do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), Maria de Jesus Monge, é pragmática. “Os museus, tal como os edifícios do Estado, não têm seguro”, diz, com a precisão de quem enuncia uma regra antiga. “À partida pode parecer estranho, mas é assim. O Estado segura-se a si próprio.” O Estado é guardião e único fiador do seu património. “Os valores dos seguros comerciais seriam incomportáveis”, acrescenta a diretora do Museu Nacional de Arte Antiga. É assim em Portugal e na Europa. Nos museus dependentes da administração central, as peças não têm seguros comerciais. São obras sem rede, confiadas à segurança física das paredes e à estabilidade de um sistema de segurança que se quer cada vez mais sofisticado. Apenas quando uma peça sai do museu — para restauro, empréstimo ou exposição — o seguro é acionado. É então feito o chamado seguro de prego a prego: cobertura total desde o momento em que a obra sai “de casa” até regressar ao lugar original. Entre o museu público e o mundo, essa é a única fronteira assegurada. Em caso de acidente ou reparação, o processo envolve técnicos da própria instituição e do Laboratório José de Figueiredo, órgão da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC). Quando o museu envia obras para restauro, entra em cena o mecenato. “Pedimos à nossa mecenas, neste caso a Lusitânia”, explica Monge. “E quando recebemos peças externas, recorremos ao mercado comercial.” O tema desperta inevitavelmente a lembrança de 2002, quando desapareceram, de um museu em Haia, as joias do tesouro real português, nunca recuperadas. A seguradora holandesa pagou a Portugal uma indemnização, mas a questão permaneceu em aberto: o que acontece quando a arte, recuperada anos mais tarde, é recuperada? “Entra-se num processo de negociação com a seguradora”, admite Monge, lembrando que neste caso o Estado português foi compensado. O dilema é económico. Não há orçamento que aguente um seguro permanente, anual, para obras do valor dos Painéis de São Vicente de Fora de Nuno Gonçalves, por exemplo. Nenhum orçamento público suportaria uma apólice que cobrisse a sua perda total. “Temos de jogar na segurança do museu, no cumprimento dos mais altos padrões”, diz Monge. É assim em Portugal, e é assim na maioria dos museus da Europa. “A lógica de o Estado se segurar a si próprio é comum”. A legislação portuguesa é exigente em segurança, definindo um conjunto de meios mecânicos, físicos e eletrónicos que garantem prevenção, vigilância e alarme. Cada museu deve possuir um plano de segurança testado periodicamente, com protocolos claros de prevenção e neutralização de riscos. O texto da lei descreve também o que o visitante raramente imagina: os controlos de entrada, a limitação do uso de câmaras e malas, os detetores de metais discretamente anunciados na receção. De acordo com uma regra básica: a segurança, quando bem feita, é quase invisível, mas a sua ausência vê-se de imediato. Os museus, segundo a lei, podem recusar a entrada a visitantes que tragam objetos de risco ou de valor incompatível com a guarda segura. Dispõem de vigilância presencial, reforçada por câmaras e sensores. E, quando o risco o justifica, cooperam diretamente com as forças de segurança, que têm o dever de participar na elaboração dos planos e na aprovação dos equipamentos. O sistema é, assim, uma teia partilhada: museus, polícia e segurança privada. O museu é obrigado a seguir as recomendações das autoridades, e o dever de sigilo é absoluto. A violação de confidencialidade sobre planos de segurança constitui uma infração que se estende tanto ao pessoal interno como às empresas contratadas. Nos contratos com segurança privada, a cláusula de confidencialidade é obrigatória: não se fala do que protege a arte. A segurança de um museu, como a própria arte, vive entre o visível e o invisível. O visitante vê as câmaras, as cordas, os vigilantes discretos. Mas o que o protege é o que não se vê: o sistema silencioso, o protocolo nunca revelado, a confiança nos técnicos e na lei. Seguradoras: igrejas e joias são um problema Nas instituições privadas, em caso de furto ou roubo, o primeiro ator a entrar em cena não é a polícia — é a seguradora. A fundação EDP, cujo único assalto - um livro furtado por um visitante - não passou de um episódio rapidamente encerrado graças à clareza da filmagem, para além de seguros Ad hoc contra todos os riscos para cada exposição - e tem um outro, genérico, igualmente contra todos os riscos para todos os ativos. A fundação trabalha com a Hiscox, especialista em obras de Arte. Com sede em Londres ,opera em toda a Europa e Estados Unidos. O DN falou com Marta Rezende, responsável da Hiscox Portugal. “Para assegurar qualquer peça, é necessário realizar um estudo individualizado e personalizado, de modo a desenhar uma apólice adaptada às necessidades específicas de cada caso, garantindo assim uma cobertura integral. Para que a apólice seja válida e eficaz, as obras devem estar armazenadas ou expostas em condições de segurança e conservação adequadas”, diz Marta Rezende, que é clara: a Hiscox não segura obras de arte de Igrejas e evita obras de arte de reduzida dimensão, sendo as joias os objetos mais problemáticos para as seguradoras. As seguradoras podem exigir sistemas de proteção física, como alarmes, vigilância constante, cofres especializados ou controlos ambientais que previnam danos por humidade, luz ou temperatura. No caso de exposições temporárias ou empréstimos de obras entre instituições, é igualmente essencial que o transporte, o armazenamento e a manipulação das peças sejam realizados de forma rigorosa, com protocolos claros e supervisão especializada. A falta destas medidas pode comprometer a validade da apólice ou limitar a cobertura em caso de sinistro. Há fatores determinantes na definição da cobertura e no cálculo do seguro. A especialista releva alguns: “Os maiores riscos para obras de arte vão muito além do simples roubo. Incluem também o vandalismo, acidentes durante transporte ou exposição, e danos provocados por condições de conservação inadequadas, como humidade, poeira, mofo ou exposição solar direta. Cada obra apresenta um nível de risco diferente, dependendo do seu tipo, fragilidade, valor histórico ou artístico, frequência de transporte e estado de conservação. Por exemplo, uma joia ou uma pintura histórica extremamente valiosa enfrenta riscos diferentes de uma escultura contemporânea de grande dimensão ou de uma obra digital. Além disso, obras que circulam entre museus ou coleções privadas têm risco acrescido devido ao manuseio e transporte”. Há casos em que o museu recupera a obra, mas é legalmente obrigado a devolver o valor da indemnização. Outros, em que a seguradora paga e depois torna-se proprietária da obra roubada, caso esta venha a ser encontrada. Casos que ficaram na memória pública Mona Lisa, 1911 (Louvre, Paris). O episódio clássico: Vincenzo Peruggia, um antigo empregado, escondeu-se no museu, desmontou a pintura da moldura e saiu disfarçado. O roubo tornou a obra num ícone mundial e expôs como a familiaridade com um lugar pode ser mais perigosa que qualquer arrombamento técnico. Foi recuperada em 1913. . Isabella Stewart Gardner Museum, 1990 (Boston). Em 18 de março de 1990, dois homens vestidos de polícias prenderam os guardas e levaram 13 obras — incluindo de Rembrandt e Vermeer — num dos maiores roubos da história em termos de valor cultural e financeiro. Trinta e cinco anos depois, a maioria das peças continua desaparecida; o caso permanece ativo e a instituição oferece uma recompensa milionária. Green Vault, 2019 (Dresden). Um assalto noturno às joias da antiga coroa saxónica mostrou a sofisticação técnica de grupos criminosos modernos: vitrinas fraturadas, alarmes contornados e fuga coordenada. As peças, de valor incalculável enquanto património, moveram debates sobre a vulnerabilidade de cofres históricos. MASP, 2007 (São Paulo). Em 20 de dezembro de 2007, duas obras — um Picasso e um Portinari — foram levadas em apenas três minutos de um museu que, na altura, não tinha sistema de alarmes eficaz. Ambas foram recuperadas, mas o episódio obrigou a uma revisão prática da segurança em museus na América Latina. Louvre, 2025 (Galeria de Apolo). Num golpe executado em poucos minutos, assaltantes usaram equipamento de construção para aceder a vitrinas e levar joias históricas pertencentes à coleção nacional francesa, num caso que reacendeu o debate público sobre a proteção de peças expostas em grandes instituições.