Uma criança vítima de abuso sexual é sujeita a recontar a sua história pelo menos oito vezes, o que resulta numa "revitimização absolutamente inaceitável", avisaram esta sexta-feira especialistas, que alertaram para as consequências "gravíssimas" entre a minoria que denuncia..Esta sexta-feira assinala-se o Dia Europeu para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual e o tema foi debatido durante a manhã, na Assembleia da República, onde os especialistas lembraram que, em média, uma em cada cinco crianças é ou foi vítima de abusos sexuais..Além deste dado, esteve também em destaque o facto de estas crianças e jovens serem vítimas do próprio sistema, desde a escola, às policias, passando pelos meios de investigação e acabando nos tribunais, que as obrigam a contar uma e outra vez a situação pela qual passaram..Segundo a vice-presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ) "está também comprovado que as crianças vítimas de abusos sexuais têm de contar a sua história oito vezes".."Isto é uma revitimização daquela criança que é absolutamente inaceitável e, por isso, todos os mecanismos que consigamos adotar e desenvolver são muito bem-vindos", defendeu Maria João Fernandes..Maria João Fernandes revelou que em 2022 foram já comunicadas às comissões de proteção de crianças e jovens (CPCJ) 856 situações que envolviam casos de abusos sexuais ou exploração sexual, um valor "muito significativo", depois de no ano passado terem sido 919..O psicólogo clínico Paulo Pelixo deu conta da sua experiência profissional, que durante nove anos foi de trabalho numa equipa especializada em intervenção em abuso sexual, para revelar que o que mais o inquietou - "mais dos que as próprias revelações de abusos" - foi a constatação de que o sistema está "pouco preparado" para responder às necessidades daquelas crianças.."Agimos de forma desarticulada e não estou a dizer que não há práticas de excelências porque as há, em todos os setores. A questão em Portugal, como noutros países, traduz-se muito na forma como estamos organizados ou desorganizados", criticou..Lembrou que é sabido que "as crianças que revelam [os abusos sexuais] são uma minoria das crianças vítimas", salientando que "é preciso uma coragem imensa para revelar uma situação de abuso quando se confrontam com todas as perdas que a sua revelação implicou", desde, por exemplo, a quebra de contactos com a família, o abandono da escola e afastamento dos amigos ou quando era "novamente perguntado o que é que aconteceu" e a criança tinha de voltar a recordar a situação de abuso.."Sentia que, de facto, nós, sistema, muitas vezes revitimizávamos as crianças vítimas de abuso", apontou..Segundo o especialista, "muitas vezes as intervenções são mais traumáticas do que as situações de abuso em si", explicando que "uma intervenção mal desenhada, que não é bem articulada, pode ser muito traumática para aquela criança"..Revelou também que, no âmbito do seu papel como formador na área, tem-se confrontado com a "enorme diversidade de práticas e procedimentos" em todo o país, que "às vezes correm muito mal para as crianças"..Ainda sobre o tempo que demora para uma criança vítima denunciar, a coordenadora do gabinete médico-legal e forense da Grande Lisboa Norte demonstrou, com base num estudo espanhol, que em mais de 71% dos casos demorou mais de um ano entre a ocorrência e a denúncia.."Reparem que isto é brutal, o sofrimento latente", destacou Anabela Pereira Neves, acrescentando que a denúncia foi feita ou à família, à polícia, mas também aos serviços de saúde..Com base neste último dado, a responsável defendeu que os médicos de família deveriam ser "muito bem treinados".."A MGF [Medicina Geral e Familiar] deveria ter uma unidade de medicina legal e ciências forenses porque isto é muito importante e eles são os primeiros que levam o embate", apontou..Por outro lado, o coordenador da secção de investigação de crimes sexuais da Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo da Polícia Judiciária demonstrou que o evitar da vitimização secundária é uma preocupação daquele órgão de policia criminal, existindo salas para audição de crianças vítimas de abusos sexuais, num projeto criado em parceria com a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima..De acordo com José Matos, a PJ de Lisboa tem já três dessas salas, estando a ser criada uma quarta sala na Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo "precisamente para ser mais confortável e melhor para as vítimas".."Nestas salas, que são salas duplas, com vidros unidirecionais, em que só se vê de um lado, já fizemos duas memórias futuras nas nossas instalações e para evitar ter sete ou oito pessoas novas perante a criança que vai verbalizar um facto traumático, estava apenas a criança, a técnica e a juíza", revelou..Disse ainda que é objetivo, no futuro, além de criar a quarta sala, melhorar o sistema de som e imagem para os tribunais que trabalham na zona metropolitana de Lisboa poderem recorrer a estes espaços para gravação de declaração para memória futura.