No dia em que se assinala os 50 anos do início do Serviço Médico à Periferia - uma das primeiras medidas pós-revolução de Abril na área da Saúde, com o intuito de levar cuidados a todos os portugueses, fazendo com que os médicos que tinham acabado de se formar fossem até à chamada província, para os lugares mais interiores e recônditos do país -, a antiga ministra da Saúde do PS, Ana Jorge, defende ao DN que “é possível gerir os dinheiros da Saúde com redução de despesa”, mas que a haver cortes, “estes têm de ser cirúrgicos para não afetar a atividade assistencial”. A ex-governante, que iniciou mandato em 2010, sucedendo a António Correia de Campos, considera até que uma eventual redução da despesa do Serviço nacional de Saúde (SNS) poderia começar com a regulação do trabalho tarefeiro, com melhor gestão dos pedidos de exames de diagnóstico e com um combate à fraude mais eficaz. As declarações de Ana Jorge ao DN surgem na sequência da polémica que tem agitado o setor da Saúde, durante esta semana, após ter sido noticiado, pelo jornal Público, que o próprio Diretor Executivo do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS), Álvaro Almeida, terá pedido aos conselhos de administração de hospitais, numa reunião, que no próximo ano reduzam as despesas, mesmo que isso equivala a cortes “em consultas e em cirurgias”. Uma situação que fez com que o próprio primeiro-ministro, Luís Montenegro, viesse de novo a terreiro manifestar apoio a Ana Paula Martins, em resposta ao pedido de demissão da ministra por parte líder do PS, e esclarecer que o que foi recomendado às unidades de saúde não foram “cortes" - "esta não é a palavra correta” -, mas sim “melhor gestão de verbas”..Montenegro nega cortes no SNS: "Não queremos cortar nada. Implica gerir melhor e lutar contra o desperdício". E neste sentido, a médica pediatra, que foi igualmente presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, recorda que no próprio Orçamento do Estado para 2026 (OE2026) para o setor da Saúde, está previsto um corte de 10% na rubrica de aquisição de bens e serviços e que é preciso saber como é que este vai ser feito. Na sua opinião, reforça, ter de haver uma melhor gestão dos dinheiros em saúde pode mesmo significar “um corte no trabalho tarefeiro, cuja despesa não entra na rubrica de recursos humanos, mas precisamente na de aquisição de bens e serviços”. Pelo menos, sublinha, “é a leitura que faço, porque o SNS está a gastar milhões com o trabalho por prestação de serviço, sobretudo em urgências, e considero que esta é uma má prática de gestão”. Em primeiro lugar, porque “os tarefeiros não estão incluídos numa equipa, são contratados para tapar buracos nas escalas das urgências, e muitos deles são médicos sem especialidade, onde pode haver mais insegurança na atividade levando a um aumento de pedido de exames de diagnóstico, o que faz aumentar desde logo a despesa de um serviço”. E justifica: "O que dá segurança no funcionamento de uma urgência são as equipas, e só trabalhando em equipa é possível melhor gestão”. Por isso mesmo, Ana Jorge concorda que “tem de haver uma regulação do trabalho à tarefa”, mas com uma condição: “as regras terão de ser cumpridas por todos as unidades, sem exceção, correndo mesmo o risco de, por vezes, assumirem que vai haver um dia que não vão ter equipas completas ou pessoal suficiente”. Se tal não for feito, “haverá sempre escapes, porque aí os tarefeiros sabem que um hospital não aceita os seus serviços em determinadas condições, mas que outro cede”.Recorde-se que, e como já foi divulgado, o número de médicos tarefeiros duplicou nos últimos anos - de cerca de 400, em 2019, para 4000, em 2025. Só no ano passado, foram gastos mais de 230 milhões com a sua contratação.Melhor gestão de medicamentos e mais diálogoMas no âmbito da redução da despesa, a ex-governante defende ainda que “uma melhor gestão na área dos medicamentos e uma boa negociação relativamente aos seus preços poderia reduzir os custos nesta rubrica de bens e serviços, como é óbvio”. Por outro lado, Ana Jorge destaca uma outra medida que já foi aprovada, que é a criação de uma unidade para combater a fraude. “A meu ver, a fraude está mais relacionada com a aquisição de serviços e de bens e se tivermos um processo de aquisição com regras mais transparentes, mais rígidas e mais rápidas, que tornassem os concursos mais rentáveis, talvez fosse possível conseguirmos mais eficiência no sistema e menos fraude, havendo logo aqui alguma poupança”. Mas, sublinha, “são processos que têm de ser acompanhados para se evitar tais situações [de fraude]”.Para a médica, que já está reformada, o princípio da gestão em saúde deve ser o de “gerir melhor”, mas sem afetar “a atividade assistencial”. Ou seja, sem que os cuidados aos utentes sejam afetados. Pode ser uma “tarefa complexa”, como diz, mas “é fundamental”, reforçando: "A haver cortes, este têm de ser feitos cirurgicamente", pois “não é compreensível, neste momento, em que as listas de espera estão a aumentar, que qualquer poupança ou redução de custos seja feita de forma a afetar os utentes”.A ex-ministra da pasta que agora é tutelada por Ana Paula Martins recorda que no seu tempo, em 2010, “havia um orçamento de dez mil milhões de euros e agora são quase 18 mil milhões. É uma verba muito elevada e tem de ser bem gerida”. Na sua opinião, a gestão dos dinheiros na área da Saúde “não é linear". "Tem muitas variáveis. E quando se pensa em fazer mudanças tem de se pensar no seu conjunto, não se pode apagar fogos aqui e ali, porque a manta é curta. E só se consegue atingir mudanças quando estas são discutidas e têm a participação dos profissionais que estão no terreno. Seria mais fácil se estes também fossem ouvidos, e não encetar medidas que me parecem que estão a ser impostas".A médica Ana Jorge, especialista em pediatria, foi das que fizeram serviço à periferia, tendo depois trabalhado 15 anos no hospital D. Estefânia e tendo sido diretora do Serviço de Pediatria do Garcia de Orta, para depois passar por cargos políticos.