Nos últimos cinco anos - 2020 a 2024 - a Polícia Judiciária (PJ) abriu 4121 inquéritos por suspeitas da prática de crimes de corrupção e conexos. A média de 824 processos por ano é superior em 54% à média anual do quinquénio anterior (2015-2019), que ficou nos 534, está já superior em 63% em relação aos cinco anos antecedentes (2020-2014), com 326 inquéritos, em média, por ano. Esta é uma conclusão retirada de dados oficiais da PJ, a que o DN teve acesso.Outra constatação é também um crescimento dos inquéritos que terminam com proposta de acusação, contribuindo, assim, para uma redução sólida dos casos arquivados. Nos últimos cinco anos, a percentagem de processos em que a PJ propôs ao Ministério Público que deduzisse acusação, por entender que as provas eram fortes, foi de 32%. Na década anterior tinha sido 27%. Nos crimes com maior expressão, essa tendência também se confirmou: das 1080 investigações relacionadas com peculato abertas de 2020 a 2024, mais de metade deram origem a uma acusação (56,2%), quando nos dez anos prévios essa percentagem foi de 46%; em 1395 inquéritos de corrupção ativa investigados, 23% resultaram em acusação, contra 18% anteriormente.Na passada sexta-feira, esta polícia acolheu uma conferência organizada pela Transparência Internacional Portugal.Falando no painel de abertura, o presidente do Mecanismo Nacional de Prevenção da Corrupção (Menac), José Mouraz Lopes, explicou a estratégia desta estrutura. Segundo o responsável, há uma atuação em duas frentes. Por um lado, atua como “agente provocador” na criação de uma cultura de integridade e, depois, assegura o cumprimento das leis - ainda que seja um órgão com o foco na prevenção.No mesmo painel, o secretário de Estado-Adjunto e da Justiça, Gonçalo da Cunha Pires colocou o foco nas medidas do Governo nesta área, garantindo que há a “firme convicção” de que o combate ao enriquecimento ilícito se faz assegurando “que o crime não compensa”. Como? Dando-se “preferência à perda de bens, decretada no âmbito de um processo criminal”, por exemplo.No final, em declarações ao DN, o diretor nacional da PJ, Luís Neves, sintetizou alguma da estratégia que tem levado a esta realidade, destacando que a “prevenção é absolutamente fundamental, e a mais importante é aquela que resulta em condenações efetivas”. Mas, alertou o dirigente, tem de existir “uma mudança da cultura do facilitismo, da cunha, do jeitinho, do clientelismo, das portas giratórias e dos grandes negócios do Estado”. Todavia, o trabalho que a PJ tem feito nesta área não se conseguiu sozinho, contando com o apoio do Governo, sobretudo através da agenda anticorrupção, aprovada há um ano, com “um foco muito especial na questão da condenação efetiva”.Além disso, afirmou ainda Luís Neves, o reforço de meios também desempenhou parte essencial no combate mais ativo à corrupção, ainda que o atraso faça mossa. “Tudo isto a que o país hoje está a assistir, dos atrasos e das enormes pendências, não é de agora. É uma questão estrutural que tem anos e precisa de tempo. Todo o fortalecimento e o ressurgimento da PJ começou por volta de 2020, 2021 e 2022, e temos tido o apoio do anterior e do atual Governo. Vai dar frutos no futuro. Hoje já temos mais gente. Tudo isso vai levar tempo a construir. O grande foco é esse”, explicou, acrescentando que o combate “é estruturado”, o que leva a que não haja resultados mais rápidos.Ainda de acordo com os dados da PJ, no primeiro semestre deste ano, tinham já entrado 360 novos inquéritos, a maior parte dos quais (135) relativos a corrupção ativa. Estes números abrangem todos os crimes de corrupção (ativa, passiva, no setor privado, no desporto, de titulares de cargos públicos, no comércio internacional), favorecimento pessoal, tráfico de influência, participação económica em negócio, recebimento indevido de vantagem e peculato.Com o procurador-Geral da República, Amadeu Guerra, na plateia da conferência, o painel inicial, moderado pela diretora-adjunta do DN, Valentina Marcelino, juntou Vítor Caldeira (antigo presidente do Tribunal de Contas), Ana Carla Almeida (procuradora-Geral-Adjunta, especializada em fraude de fundos europeus) e o economista José Maria Pimentel. Na intervenção que fez, Ana Carla Almeida assinalou que “o caminho seguido até aqui, no âmbito da investigação nesta área da criminalidade, não responde às legítimas expectativas da comunidade”, e que “a complexidade acontece também noutras áreas”.Assumindo que “a morosidade é um aspeto crítico deste tipo de investigação”, a magistrada advertiu para a “grande tendência para apresentar soluções simplistas” para responder a uma “multiplicidade de causas”, a que juntou também outra “grande tendência dos decisores políticos para propostas de alterações legislativas”. Deixou a proposta de criação de um “modelo multidisciplinar”: “Que nos apetrechemos de conhecimento de várias áreas, com diferentes culturas institucionais.”Por sua vez, Vítor Caldeira falou na importância das lideranças: “O exemplo tem de vir de cima. Quem dirige, seja a nível político, seja a nível administrativo, tem a obrigação, ou deve ter a obrigação de cultivar um ambiente onde a ética não seja alguma coisa negociável, onde não se tolerem aqueles pequenos desvios, os pequenos retorces, e onde o rigor seja a regra”, asseverou. “Em segundo lugar, é necessária uma gestão dos riscos eficaz e em terceiro precisamos também de sistemas de controlo eficazes”, completou.Antes, José Maria Pimentel salientara o impacto da corrupção no desvio de investimento e de recursos humanos de qualidade. “Um país que não tem uma qualidade institucional adequada vai receber menos investimentos do que outros países. Isso tem um impacto mais profundo em Portugal. A falta de qualidade das instituições, gera do público uma perceção de desconfiança, que depois pode ter efeito muito pernicioso”, disse. Recordou dados do Eurobarómetro sobre a perceção de corrupção em Portugal: “96% dos portugueses acham que o país é corrupto, versus 68% na UE. No entanto, apenas 1% reportaram ter tido experiência direta com corrupção e na UE 5%. Este paradoxo é explicável, em parte, porque as pessoas entendem que há corrupção com outras, mas não com elas. Quando dou alguma coisa ao médico, claro que estou a dar um tratamento preferencial. Isto se calhar também é corrupção.”"Se calhar as medidas que foram tomadas são as mais fáceis"Questionada pela moderadora do painel sobre o porquê de não terem sido tomadas, até agora, medidas "mais eficazes e fortes" para combater a morosidade dos processos, Ana Carla Almeida não quis responder "diretamente", por não ter "poder decisório". No entanto, a magistrada apontou que "foram tomadas um conjunto de medidas sobretudo legislativas que, se calhar, são as mais fáceis de tomar". "Já me preocupei com isso na minha prática judiciária, e dei o meu pequeno contributo. A solução para esse problema é talvez a implementação do tal modelo multidisciplinar de forma sistemática. Isso podia ser um pequeno exercício", considerou.Já Vítor Caldeira, instado a encontrar paralelismos entre Portugal e outros países, destacou que o país "tem feito uma evolução muito significativa nestes últimos anos", de onde surge o Menac, "uma entidade com responsabilidades muito abrangentes, em matéria de promoção da corrupção e de promoção da integridade". Ao ser criada esta entidade, o Tribunal de Contas deixou de ter sob a sua alçada o Conselho de Prevenção da Corrupção (CPC). No entanto, esta mudança não foi uma perda -- pelo contrário. "O CPC e o Tribunal de Conta não perderam nada. A criação do Menac corresponde a um passo muito importante para haver instrumentos e entidades que se ocupam diretamente com o combate à corrupção. É uma questão de gerações", defendeu. E deu um exemplo: "Premiámos aqui neste sítio uma escola de Braga, cujo nome não me recordo, que fizeram um trabalho muito simples. Com os pais, fizeram uma espécie de rebuçado, e o papel tinha mensagens de alerta à corrupção. Depois foram levar isto ao café da aldeia. Foi uma experiência muito interessante, porque não só envolveu os meninos, envolveu os pais. E teve impacto nas pessoas."Segundo Vítor Caldeira, este "transformar de mentalidade é o que significa que o Menac tem hoje os melhores instrumentos". A situação era mais crítica no passado: "No meu tempo, o CPC tinha poucas pessoas e um orçamento que nunca passou, creio, dos 250 mil euros. Apesar das dificuldades de instalação, o Menac tem um orçamento de 2 milhões de euros. São realidades muito diferentes. Uma entidade destas tem de ter recursos.".Luís Neves destaca reforço do combate à corrupção. "Estratégia de mais meios na PJ vai dar frutos no futuro".Mecanismo Anticorrupção recebeu 152 denúncias em 2024, a maioria ligadas a entidades públicas