São vários nãos, alguns sins, e uma (bizarra) rejeição de uma norma que está em vigor desde 2007. O parecer do Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médica da Ordem dos Médicos (CNEDM), esta terça-feira publicado no respetivo site, referente ao projeto de lei do PS que propugna o alargamento do prazo da interrupção de gravidez por exclusiva decisão da mulher das atuais 10 - o prazo mais curto da União Europeia - para as 12 semanas, manifesta-se genericamente a favor da manutenção da lei em vigor. Mas aceita duas alterações: que deixe de ser exigido o concurso de dois médicos no processo - que faz parte da lei existente - e que a objeção de consciência passe a valer apenas para a interrupção, e não para assistência médica antes ou depois..Quanto à citada rejeição de uma norma que está em vigor, diz respeito à interdição de que médicos objetores participem na consulta prévia - a consulta que tem lugar antes do procedimento propriamente dito, e na qual é prestada a informação necessária e datada a gravidez. Esta norma, que se encontra no número 2 do artigo 6º da lei 16/2007 de 17 de abril, é referida pelo Conselho de Ética da Ordem (CNEDM) como alvo de parecer desfavorável, "porque emite um juízo sobre a capacidade de isenção dos médicos, veiculando a incapacidade de isenção ao médico objetor de consciência e simultaneamente averbando a capacidade de isenção do médico não objetor de consciência". Aparentemente, o Conselho de Ética e Deontologia da Ordem não está a par deste conteúdo da lei em vigor - talvez porque em 2015 a maioria PSD/CDS-PP alterou a lei para permitir que os objetores de consciência passassem a poder participar nas referidas consultas. Mas essa alteração foi revogada em março de 2016 pela maioria resultante das eleições de 4 de outubro de 2015..O tom do parecer da Ordem é desde logo fixado no seu início, quando estabelece que "o CNEDM, como conselho consultivo da Ordem dos Médicos, não pode deixar de sublinhar o verdadeiro conteúdo deste projeto de lei que entra em direto conflito com o dever médico de proteger a vida, consagrado no Código Deontológico da OM". .Assim, objeta ao alargamento do prazo alegando quer com o "estádio de desenvolvimento do embrião, que não pode ser ignorado nesta delicada questão", quer com "dados científicos sobre a gravidez e a saúde da mulher grávida", que afirma serem "claramente favoráveis a uma melhor saúde quanto menor for o tempo de gestação que termina abruptamente, pelo que a ciência médica deverá recomendar a terminação da gravidez o mais precocemente possível e contrariar o alargamento de prazos". Invoca também o facto de "a média de idade gestacional em que se pratica a IVG em Portugal, por opção da grávida, tem-se mantido estável nas sete semanas", pelo que, conclui, "não é científica e deontologicamente sustentável, e face ao panorama atual, a necessidade de alargamento dos prazo.".Objeta também à eliminação do período de reflexão obrigatório de três dias: "O CNEDM é do parecer que deverá ser mantido um período de reflexão após a prestação de informações do profissional de saúde à mulher, para a obtenção de decisão consciente, livre e esclarecida, que deve acompanhar todos os procedimentos médicos irreversíveis de caracter não urgente, cuja duração deve ser, se possível, no mínimo de três dias.".Já no que respeita à objeção de consciência, o CNEDM afirma que se trata de um direito com dignidade igual à do direito à saúde: "Um direito não pode colocar em questão outro direito". E sublinha: "A alegação de que a objeção de consciência pode colocar em risco as vidas de mulheres não é correta, a regulamentação e lei sobre objeção de consciência, na sua formulação atual, já o asseguram, uma vez que não pode ser invocada em situações de urgência/emergência, a menos que exista outro médico disposto a prestar os cuidados em questão.".Recusa também a ideia, constante no projeto de lei do PS, de que o facto de haver muito mais médicos (o triplo) objetores para a interrupção de gravidez até às 10 semanas por decisão exclusiva da mulher que em relação aos outros "motivos" de interrupção (como a malformação fetal, até às 24 semanas, o perigo para a saúde física ou psíquica da mulher, até às 12 semanas, ou crime contra a autodeterminação sexual, até às 16 semanas) signifique que se trata de "uma forma de juízo sobre a consciência da mulher". Reputa a conclusão de "abusiva": "A anuência em praticar IVG noutras situações resultará de uma ponderação de valores que importarão para o médico, sem que isso traduza necessariamente numa tentativa de impedir as mulheres no seu direito à IVG por opção." .Ainda no que respeita à objeção, como já referido, o parecer do Conselho de Ética da Ordem dos Médicos admite uma das normas do projeto de lei do PS (o único que analisa): que a invocação da objeção vale apenas para a interrupção de gravidez em si e não à "assistência médica antes e depois". Esta posição parece ir ao encontro de decisões recentes dos Supremos Tribunais de Itália e Reino Unido, segundo as quais exames médicos como a ecografia de datação da gravidez não estão abrangidas pela objeção. Mas o parecer não dá qualquer exemplo dos cuidados de saúde que considera como fazendo parte da interrupção e dos que exceciona da objeção..Outra apreciação favorável deste parecer da Ordem é relativa à alteração proposta pelo PS de deixar de ser exigida a participação de dois médicos no processo de interrupção de gravidez por exclusiva decisão da mulher. Esta exigência tem levado a situações em que, se num hospital há apenas dois obtetras não objetores, e um deles deixa, por algum motivo, de estar disponível, o hospital não pode continuar a assegurar esse cuidado de saúde (sucedeu no Hospital da Horta, Açores, em 2023, como o DN reportou)..De notar que este parecer não faz qualquer referência, à exceção de um de 2022 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (cujas conclusões subscreve) a outros pareceres técnicos, nomeadamente do Colégio de Obstetrícia e Ginecologia da Ordem dos Médicos, que o DN sabe ter sido elaborado a propósito, precisamente, da proposta de alargamento do prazo para as 12 semanas. O jornal tentou, junto da Ordem dos Médicos, obter este parecer, sem sucesso.."Há impedimento do acesso ao direito à saúde e discriminação" admite CNECV, mas lei não deve mudar.O parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), ao qual o DN teve também acesso esta terça-feira, e que aprecia quer o projeto de lei do PS quer o do BE (que alarga o prazo da IG por decisão exclusiva da mulher para as 14 semanas, à imagem do que fizeram a França e a Espanha), é muito semelhante ao da Ordem dos Médicos, quer nas conclusões quer na argumentação..Como o anterior parecer citado, este, cujas relatoras foram a penalista Inês Godinho e a obstetra Margarida Silvestre, "vota" favoravelmente o fim da exigência de dois médicos no processo relativo à interrupção de gravidez por decisão exclusiva da mulher, "chumbando" o alargamento do prazo e o fim do período de reflexão..Do mesmo modo que para o Conselho de Ética da Ordem dos Médicos, para o CNECV a objeção de consciência por profissionais de saúde é "um direito fundamental" (afirmação que não é fundamentada juridicamente e que entra em choque com a jurisprudência - vinculativa - do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, o qual já apreciou o assunto, deliberando ser lícito, por considerar o direito à saúde como sobrelevando o direito à objeção, que a Suécia restrinja a contratação para o sistema público a profissionais não objetores), que só deve "ceder" em casos de risco de vida ou de grave dano para a saúde. ."A objeção de consciência invocável pelos profissionais de saúde é um direito fundamental, de natureza individual e constitucionalmente acolhido, que em matéria de IVG cede inexoravelmente perante uma situação urgente, sem alternativa disponível e que implique perigo de vida ou grave dano para a saúde da mulher grávida", lê-se no citado parecer. Como o DN já noticiou, o CNECV está a elaborar um parecer sobre objeção de consciência em geral, que deverá ser publicado em breve..Também a rejeição do aumento do prazo é fundamentada pelo CNECV com o facto de "a idade gestacional média em que a interrupção da gravidez por opção da mulher é realizada em Portugal" se ter mantido "estável, ao longo dos anos, nas sete semanas de gestação", e no invocar de "dados científicos existentes" (não referidos) como "claramente favoráveis a uma melhor saúde da grávida quanto menor for o tempo de uma gestação que termina abruptamente"..E se o CNECV admite, a partir dos dados dos primeiros relatórios da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) e Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) sobre o acesso à interrupção de gravidez no Serviço Nacional de Saúde (ambos de 2023), assim como o da Direção Geral de Saúde (DGS) de 2023, que "o número de hospitais que não efetuam Interrupção Voluntária da Gravidez impede, de facto, em várias regiões do território nacional, o exercício desse direito, o que acarreta discriminação socioeconómica e territorial de várias mulheres", isso não leva este órgão de Bioética a considerar que essa obstrução no acesso a um direito consagrado pela lei da República deve ser resolvida através das propostas dos dois projetos de lei em análise.."Não é através da limitação do direito à objeção de consciência, do alargamento de prazos ou da supressão do tempo de reflexão que se deve procurar resolver o problema do direito ao acesso a uma interrupção de gravidez", afirma o CNECV. A solução dever estar antes na "capacitação do Serviço Nacional de Saúde para respeitar a lei e os direitos dos cidadãos"..Como já fora notório no anterior parecer do CNECV sobre o alargamento do prazo da IG por exclusiva decisão da mulher, publicado em 2022, a argumentação e fundamentação nunca menciona as recomendações/guidelines da Organização Mundial de Saúde, que há muito pugna pelo fim do período de reflexão - que reputa de "paternalista" e obstrutivo -, pela restrição do direito à objeção de consciência e por prazos menos restritivos. Do mesmo modo, as deliberações do Comité Europeu dos Direitos Sociais - que por duas vezes condenou a Itália por discriminação no acesso à saúde por permitir que a objeção de consciência dos médicos impeça, em várias regiões do país, o acesso à IVG - e as deliberações do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que como já mencionado deixam claro que o direito à objeção de consciência por parte de profissionais de saúde não está ao mesmo nível que o direito à saúde, são ignoradas por este órgão consultivo da Assembleia da República..Já o facto de a esmagadora maioria dos países europeus terem prazos mais alargados para a IG por vontade da mulher (no mínimo de 12 semanas) é considerado pelo CNECV como não sendo argumento para alterar a lei portuguesa: "O limite instituído em Portugal teve, na sua génese, preocupações de ordem embriológica e ética, pelo que mudar este limite apenas porque os outros países têm limites diferentes não é um argumento suficientemente válido que sustente uma alteração em matéria como esta.".E se admite que existirem agora dados, graças ao relatório da Entidade Reguladora da Saúde, "relativamente às situações em que a IVG não se realiza por ultrapassagem do prazo legalmente estabelecido", considera que não são "suficientes para tirar ilações, visto não especificarem a idade gestacional apresentada à data da consulta prévia, nem o tempo de espera que antecedeu cada consulta". Refira-se que o referido relatório indica, em alguns hospitais, esperas de 14 dias pela primeira consulta, e que numa investigação publicada a partir de fevereiro de 2023 o DN reportou esperas ainda mais longas, incluindo o caso de uma mulher que não conseguiu consulta em tempo e teve de recorrer a uma clínica privada..Mas o CNECV conclui: "Nenhum prazo para IVG – por maior que o seja – é em rigor garantia de inclusão de todos os eventuais pedidos. Haverá sempre pedidos que excedam o prazo legal, a menos que se permita a IVG até à véspera das 24 semanas (viabilidade fetal no mundo ocidental). Por outras palavras, a existência de prazos para a prática da IVG significa, justamente, que não podem ser considerados todos os pedidos de IVG."