Comunidade judaica portuguesa recorda massacre anti-semita de 1506

Comunidade judaica portuguesa recorda massacre anti-semita de 1506

Na Lisboa manuelina, terra de “muitas e desvairadas gentes” (na expressão de Fernão Lopes), não predominava a tolerância e a aceitação do Outro. Em Abril de 1506, a perseguição aos judeus e conversos causou milhares de mortos.
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Genocídio ou massacre? O termo para definir a matança de judeus e cristãos-novos, ocorrida em Lisboa em Abril de 1506, causando milhares de vítimas, dividiu, na passada quinta-feira, a audiência que assistiu à exibição da curta-metragem 1506-O Genocídio de Lisboa, seguido de debate com um painel de oradores constituído pelos historiadores Jorge Martins e Susana Mateus, pela jornalista Miriam Assor e pela analista de assuntos internacionais, Helena Ferro de Gouveia. 

Iniciativa da Comunidade Judaica do Porto, com realização de Luís Ismael (autor de outros filmes sobre temas judaicos, ou inter-religioso, como O Kaddish da Feira ou 1618) 1506, mais do que um documentário formal, é uma reconstituição histórica dos terríveis acontecimentos verificados às portas do Rossio, junto à atual Igreja (então Mosteiro) de São Domingos, durante três dias de extrema violência ,“facilitados” pelo facto do rei D. Manuel I, e sua família, estar retirado em Avis por causa da peste que grassava na capital. Informado do ocorrido, o monarca não hesitou em aplicar castigo severo aos cabecilhas e retirou a Lisboa o título de “mui nobre e leal cidade”. Recorde-se, porém, que, 30 anos depois, o seu filho e herdeiro, D. João III, conseguiria autorização papal para instalar em Portugal o Tribunal do Santo Ofício.

Por uma questão de rigor, há que dizer que estes acontecimentos nunca foram escamoteados pela historiografia moderna portuguesa. Já em 1921, João Lúcio de Azevedo os abordava, sem punhos de renda, na obra História dos Cristãos Novos Portugueses, recordando que este massacre fora antecedido de outros episódios graves movidos pelo anti-semitismo: “No ano de 1503, a carestia extrema das subsistências deu azo à suspeita de que os hebreus a tinham promovido para auferirem lucros da miséria geral. Em Maio do ano seguinte houve em Lisboa um motim, em que os conversos residentes na Rua Nova, que era o centro do comércio da cidade, foram desacatados e agredidos por gente da populaça.” Posteriormente, estes acontecimentos, quer em Lisboa, quer em Évora (onde em 1505, os motins incluíram a destruição da sinagoga) seriam tratados por historiadores como Túlio Espanca, Maria José Ferro Tavares, António Marques de Almeida, Luís Filipe Barreto, Francisco Bethencourt ou António Borges Coelho, todos com obra publicada sobre o tema. Isto para não falar do exaustivo trabalho académico desenvolvido pela Cátedra Alberto Benveniste da Universidade de Lisboa

A própria Literatura tem-se ocupado do assunto, desde o contemporâneo dos acontecimentos, o humanista Garcia de Resende a Richard Zimler que dá conta do horror em toda a sua extensão no romance O Último Cabalista de Lisboa: “O Rossio abriu-se como uma ferida infectada inçada de enxames de pessoas vociferantes. Apinhavam-se em volta de carruagens enfeitadas, giravam pelas arcadas do Hospital de Todos os Santos, debruçavam-se em risadas das varandas e dos beirais das janelas.” E logo a seguir, acrescenta: “O fogo causava um calor infernal, alimentado pela massa dos corpos dos judeus que lhe tinham sido lançados.” Hoje, no epicentro desse horror (ironia da História, também ele pasto das chamas, num incêndio que, em Agosto de 1959, destruiu completamente o interior da Igreja de São Domingo) está um memorial da tragédia a interpelar quem passa.

Como também foi frisado pelos participantes no debate (e pela assistência), quando se recorda o massacre de 1506, “não se pretende fazer da História um tribunal”, mas perceber se esta mensagem, vital para o combate a qualquer forma de xenofobia e discriminação religiosa, passa para as escolas. 

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