O que motivou este projeto de investigação sobre as poeiras do Saara que nos têm visitado com alguma frequência nos últimos tempos? Do ponto de vista científico, isto é um fenómeno descrito em Portugal desde os anos 50. Há um estudo dessa altura em que se mostra a introdução da Doença da Língua Azul em Caprinos no Alentejo. Ou seja, isto não é um fenómeno novo; existe provavelmente há milhares de anos. Mais recentemente tem havido maior atenção e houve interesse em monitorizar um fenómeno já conhecido e avaliar os seus impactos.Na Universidade de Lisboa, e especificamente na Faculdade de Ciências, estamos a trabalhar há vários anos numa agenda para garantir a resiliência nacional, nomeadamente biológica: saúde humana, dos animais e das culturas. Tudo o que é biológico está exposto a riscos, que monitorizamos, mas também a um potencial intrínseco. E este projeto avalia não só os riscos, mas também o potencial associado. As intrusões de poeira do Saara têm tido alguma frequência nos últimos anos. A frequência e a intensidade destes fenómenos estão de facto a aumentar? O que é que mostram os dados?Sim, a frequência e a intensidade têm-se alterado. De uma forma genérica, tem havido várias alterações climáticas nos últimos anos. Uma delas tem a ver com o chapéu de chuva que nos protege, que é o anticiclone dos Açores. E quando este anticiclone está deslocado ou não está no sítio certo, nós ficamos muito mais expostos a vários riscos. Por exemplo, quando houve o acidente da central nuclear de Chernobyl, Portugal não sofreu tanto como outros países os efeitos da radiação exatamente por causa deste anticiclone dos Açores. E sim, como qualquer português tem notado, no verão temos tido mais daqueles dias com umas nuvens acastanhadas no ar e carros cobertos de poeira. E de que forma então é que essas partículas de poeira são relevantes para o nosso território? Que microrganismos é que chegam transportados por essas poeiras? Há uma panóplia deles, na ordem das dezenas de milhares de espécies diferentes. Os desertos antigamente eram florestas e como tal tinham muita matéria orgânica, plantas, animais e microrganismos. E, portanto, muitos destes sedimentos transportam essa matéria orgânica que sobreviveu ao processo de desertificação. Essa matéria orgânica acaba muitas vezes por funcionar também como um adubo natural. E isso pode ser uma mais-valia. Por exemplo, nós temos várias regiões no sul de Portugal, por exemplo na Zona de Palmela ou no Alentejo, zonas vitivinícolas bastante conhecidas, em que o conteúdo de matéria orgânica nos solos é relativamente baixo. E estes microrganismos podem desempenhar um papel relevante na resiliência destes solos.Além disso, como estas partículas vão funcionando um bocadinho como uma esponja, vão absorvendo outros microrganismos que estão no ar durante o seu percurso.Por exemplo, as tempestades vindas da Argélia atravessam o Mediterrâneo, França e Espanha antes de chegar a Portugal. E há também a rota direta de Marrocos para o Algarve e Alentejo. A diversidade destes microrganismos é imensa — bactérias, vírus, fungos. E o que nós fazemos é avaliar não só o risco, mas também o potencial biotecnológico, com interesse particular para o setor agrícola. Que espécies mais surpreendentes ou particularmente relevantes é que têm sido encontradas? É difícil falar nomes, até porque são todos em latim. Mas posso dar um exemplo da tempestade Célia de 2022, que foi um marco pela intensidade e pela grande quantidade de matéria orgânica das partículas. Pelo que sabemos, a tempestade até se iniciou na África Central e atravessou o Saara, trazendo mais matéria orgânica e uma diversidade microbiana brutal. Havia uma espécie de bactéria predominante que não conhecíamos. Avaliámos as características, riscos e mais-valias, e verificámos que não apresentava risco significativo, mas tinha capacidade de fixar azoto atmosférico, aumentando a produtividade das plantas. Foi um excelente exemplo de como a deposição dessas partículas, naquela situação específica, ajudou a aumentar a produtividade, principalmente no setor agroalimentar." E nessa relação risco-benefício conseguimos perceber qual é o prato da balança que pesa mais? Estamos mais expostos a riscos ou a benefícios neste fenómeno? Estamos, efetivamente, expostos a ambos. Temos de mitigar os riscos e potenciar o lado positivo. Resiliência é assumir que as coisas vão acontecer e estarmos preparados para nos adaptarmos.Muitas das bactérias identificadas têm permitido desenvolver novos consórcios microbianos, que estão a ser testados em vinhas para proteção contra pragas e doenças e para aumentar a produtividade no setor agroalimentar. Este tipo de investigação é essencial porque estamos a entrar na fase da agricultura de precisão. Em termos concretos, para as pessoas perceberem do que se trata, que impactos é que foram observados, seja na saúde das plantas, ou na resistência a doenças, ou na qualidade do solo? Vamos imaginar duas fileiras de videiras numa vinha em que numa delas nota-se que as plantas foram expostas muito mais a pragas e doenças e na outra ao lado vê-se que as plantas estão muito mais verdes e resistentes. Ou seja, umas vão produzir muito mais uva e, portanto, mais vinho do que as outras. Em alguns casos, chega a haver um aumento de mais de 30% da capacidade produtiva. Quais as ameaças principais já identificadas?Há vários riscos que variam de tempestade para tempestade. Muitos só se percebem com um delay significativo, meses ou anos depois. Identificar um agente por si não é suficiente: o risco depende da quantidade e do impacto. Há doenças descritas, como a língua azul. Também monitorizamos a peste suína africana, por exemplo, que tem tido grande expansão na Europa e em Espanha. E isto também está relacionado com estas poeiras? De uma forma geral. Inicialmente não era aceite, cientificamente, que os movimentos de aerossóis tivessem papel significativo na transmissão da doença, mas, devido à sua expansão, percebeu-se nos últimos anos que esta também era uma rota de transmissão. Monitorizamos isto no continente e nas regiões, principalmente na Madeira, que está muito exposta às partículas do norte de África. As tecnologias que temos permitem identificar agentes conhecidos e desconhecidos e avaliar o risco para a saúde pública, animal e fitossanitária. Que tecnologias são essas? São tecnologias de sequenciação?Implementamos uma fusão de tecnologias, começando pela colheita dos aerossóis, que é um desafio. A quantidade de ácidos nucleicos no ar é muito reduzida, mas conseguimos isolá-los e sequenciá-los para descodificar a informação e identificar microrganismos e outros elementos. Cá está, nós sabemos, muitas vezes, que as tempestades vêm do leste, em vez de ser do sul, porque começamos a ver DNA que vem de sobreiros, que existem no sul de Espanha e que existem em França. Como falámos no início, estas partículas funcionam como uma esponja. Beneficiamos de uma tecnologia, em colaboração com uma empresa, a MGI, que desenvolve estas máquinas que descodificam o DNA e que têm efetivamente uma sensibilidade bastante grande.. Este projeto é sobretudo focado nos impactos no setor do vinho? O projeto chapéu é muito mais amplo. Este é um dos subprojectos, que acaba por estar focado no setor vitivinícola. E aproveitamos a mesma tecnologia para, além de analisar os bioaerossóis, analisamos também os microrganismos que estão no solo, nas raízes, nas folhas da videira, no fruto, e também, muitas vezes, durante as várias fases de produção do vinho. Estes microrganismos alteram o microbioma do solo e impactam nas características do próprio vinho?. Ou seja, estes fenómenos obrigam a repensar, também, o conceito dos vinhos? Talvez não repensar o conceito dos vinhos. Eu acho que o principal desafio que nós temos é, claramente, as alterações climáticas. Ou seja, não só os fenómenos extremos, que temos mais e com maior intensidade, mas as tendências também têm estado a mudar. A temperatura média tem estado a subir, o conteúdo de matéria orgânica nos solos tem estado a diminuir, a humidade presente nos solos também. E, portanto, isso obriga a que se tenha que ir alterando, aqui e ali, as práticas produtivas. E usar medidas corretivas. Nós já temos vinhas que muitas vezes é necessário regar, adicionar água e não há nenhum vitivinicultor que goste disso, por vários motivos, mas porque isso altera, até, as características organolépticas do vinho. Mas, também, há microrganismos transportados por estas correntes que acabam por ser uma mais-valia. Eu vou-lhe dar um exemplo. Nós temos várias castas em Portugal e, muitas vezes, ouve-se falar, até é um bocadinho moda, das vinhas velhas. Estas são vinhas que existiam antes da filoxera, que foi uma praga que dizimou completamente a capacidade produtiva do país, nomeada na região do Douro. Esta praga, muito provavelmente, também veio do exterior, neste caso de França. Mas o que eu queria focar é que estas vinhas velhas acabam por ter uma resiliência muito maior à secura. Com estas tecnologias percebemos porquê: existiam bactérias nos solos e nas raízes dessas vinhas que aprisionavam humidade em pequenas gotículas, funcionando como reservatório. Isso explica a maior resiliência destas vinhas. Este é um pequeno exemplo. Em relação às poeiras do Saara, presumo que o território mais afetado seja a Sul, em particular o Alentejo. Alguns exemplos de como já foi alterado algum procedimento ou alguma técnica de viticultura devido a este fenómeno? Têm sido feitos vários estudos, principalmente na zona de Palmela, em que, na realidade, o que tem sido feito é o uso de novos consórcios (misturas) microbianos para aumentar a resiliência destas mesmas plantas. Acima de tudo, têm sido implementados programas de monitorização que avaliam não só quais são os microrganismos que estão presentes no solo e nas plantas, como as pragas que ameaçam as vinhas, e, com isto, consegue-se dar um melhor apoio à decisão. Assim conseguem antever quais as doenças que ameaçam a próxima etapa produtiva e tomar medidas profiláticas, como se fossem vacinas, digamos, para mitigar esses riscos. Além disso, também temos já a capacidade de usar microrganismos provenientes de outras fontes, isolá-los e utilizá-los nas plantas para aumentar a sua capacidade de proteção. Podemos esperar mudanças significativas nos nossos ecossistemas agrícolas, mediterrâneos, no futuro próximo? Essa mudança está em andamento. Não só em Portugal, mas inclusive praticamente por toda a Europa. Há já imensos produtores franceses que estão a comprar, por exemplo, terrenos na Geórgia, porque já estão a antever o impacto das alterações climáticas no sul de França, e estão a tentar já ter outras alternativas para a produção. Mas há, do ponto de vista científico, algumas estratégias que sejam já recomendáveis para adotar a nível nacional ou regional para enfrentar este cenário de mudança e de adaptação? Tem que haver estudos. Não é puxar a brasa à nossa sardinha, mas nós temos que cenarizar, perceber o que é que vai acontecer, porque há mudanças que têm que ser feitas com muito tempo de antecedência. O processo de mudança é moroso e complexo. Temos que perceber que vai haver zonas do país onde não será possível determinadas culturas manterem a mesma capacidade produtiva e competitividade económica. Mas estas mudanças também trazem oportunidade para introduzir outras práticas ou produtos agrícolas, como tem acontecido noutros países da Bacia do Mediterrâneo.Portugal tem sido fustigado não só por estas poeiras, mas por várias pragas, tanto na produção animal como na agrícola. Já falámos da filoxera, mas há também a Xylella nas oliveiras, que tem sido uma praga enorme em Portugal e Espanha. Isto tem um impacto muito, muito grande. Arrancar um olival tem impacto de décadas. Por isso é que a monitorização é crucial. Na monitorização desses agentes biológicos trazidos pelas poeiras do Saara, qual ou quais os que fizeram já soar a bandeira vermelha? Temos identificado muitos dos agentes que infelizmente encontramos nas nossas produções, como a filoxera ou a gripe aviária. Especificamente em relação aos agentes que vêm do norte de África, temos a febre aftosa, a doença da língua azul e a febre suína africana. E estamos a monitorizar com muito cuidado a presença de agentes que nós já sabemos que existem, efetivamente, nessa região e estamos a ver se eles estão a ser transportados ou não para Portugal, como a cólera. Marrocos já detetou este agente em reservatórios naturais. Não há perigo para a saúde pública, porque temos sistemas que tratam a água, mas em situações de catástrofe ou em água não destinada a consumo humano pode ser um problema. Estamos a verificar se esses agentes estão ou não a migrar para Portugal através dessas partículas. E estão?Neste momento, em relação à cólera, ainda não identificamos nenhuma amostra positiva.