Combate inglório contra as redes de tráfico de seres humanos

As sucessivas operações policiais contra as redes de tráfico de pessoas, a avaliar pelos Relatórios Anuais de Segurança Interna, raramente resultam num grande número de detenções.
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Apenas a partir de 2008 as autoridades portuguesas começaram a dar atenção ao tráfico de pessoas, crime associado à imigração ilegal e ao recrutamento sazonal de mão-de-obra para as campanhas agrícolas. As megaoperações executadas pela Polícia Judiciária, através da Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT), como a de ontem, no Baixo Alentejo, são cada vez mais frequentes. Mas raramente resultam na condenação dos verdadeiros empregadores.

O tráfico de pessoas "é um crime complexo e de prova difícil", diz ao DN Manuel Albano, relator nacional para o Tráfico de Seres Humanos. Acontece muitas vezes que os arguidos chegam a tribunal acusados de tráfico de pessoas (crime punido com pena de três a dez anos de prisão) e acabam por ser condenados por simples auxílio à imigração ilegal, delito castigado com uma pena de menos de um a cinco anos.

"É difícil, por exemplo, saber quem é o verdadeiro empregador" desta mão-de-obra em regime de escravatura, diz Manuel Albano. É o empresário a quem as vítimas prestam o serviço ou a pessoa que as contratou diretamente e as coloca a trabalhar seja onde for?

As empresas agrícolas, a maioria do Sul do país e na zona Oeste, contratam mão-de-obra a firmas de trabalho temporário registadas no estrangeiro e em Portugal. Chegam a pagar por trabalhador cerca de 2000 euros/mês. Mas a empresa que os contrata nos países de origem - no Nepal, no Paquistão, no Bangladesh - embolsa a maior parte do dinheiro: recebe 2000 e paga 500 euros, segundo um investigador do antigo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), agora colocado na Polícia Judiciária.

As sucessivas operações policiais contra estas redes de tráfico de seres humanos e de apoio à imigração ilegal, a avaliar pelos Relatórios Anuais de Segurança Interna (RASI), raramente resultam num grande número de detenções. Têm, ainda assim, uma consequência inestimável: libertam da escravidão vítimas do tráfico de seres humanos.

No ano passado, de acordo com o RASI, bateu todos os recordes: foram constituídos 78 arguidos e libertadas 96 vítimas da escravidão. As operações policiais foram levadas a cabo em explorações agrícolas no Alentejo. Os trabalhadores viviam em condições miseráveis, mal alimentados, em locais indignos e de difícil acesso.

As vítimas libertadas não são repatriadas para os seus países de origem. "São acolhidas e apoiadas", segundo Manuel Albano. Muitas dessas pessoas escolhem ficar em Portugal. Outras preferem regressar às suas terras. O Observatório do Tráfico de Seres Humanos dá-lhes uma preciosa ajuda para que não partam à sorte. "Vão com condições e ao cuidado de instituições locais que fazem parte da Organização Internacional para as Migrações", refere Manuel Albano. Ontem, no Alentejo, foram sinalizados cerca de 100 imigrantes que estavam a ser explorados.

Ao longo de 2018, ano em que os relatórios de segurança interna começaram a ter um capítulo dedicado só ao tráfico de pessoas, o Ministério Público constituiu 34 arguidos. Não se sabe quantos foram acusados por auxílio à imigração ilegal ou por tráfico de pessoas. Muito menos se sabe quantos foram condenados e quais foram as medidas das penas. Foram libertadas da escravidão 33 vítimas.

No ano seguinte, as autoridades descobriram um novo truque das redes criminosas dedicadas à colocação de mão-de-obra: os traficantes passaram a obter para as vítimas um número de identificação fiscal, que permitia o registo na Segurança Social e a autorização de residência. As vítimas, de acordo com o RASI, eram maioritariamente oriundas da Roménia, Bulgária, Paquistão, Nepal, Índia e Moldávia. Em 2019, tal como no ano anterior, foram sinalizadas 33 vítimas que eram forçadas a trabalhar.

A Polícia Judiciária detetou, ainda em 2019, um número crescente de mulheres portuguesas que se deslocavam ao estrangeiro para, a troco de dinheiro, contraírem casamentos de conveniência. O matrimónio assegurava ao marido a nacionalidade portuguesa. O esquema só era possível através da corrupção em representações diplomáticas portuguesas. A PJ, através da Operação Visa Branco, acabou com o negócio.

No ano seguinte, foram constituídos 24 arguidos, seis à conta do desmantelamento de uma rede transnacional de apoio à imigração ilegal, de tráfico de pessoas e de falsificação de documentos com ramificações em Portugal, no Brasil, no Canadá, na Holanda, no Reino Unido e no Luxemburgo. Foram acolhidas 23 vítimas.

O ano de 2021 foi de escassa colheita: apenas 18 arguidos. Só uma vítima de trabalhos forçados foi libertada.

manuel.catarino@dn.pt

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