Cirurgiões em teletrabalho gera queixas e mal-estar entre médicos

A resposta à covid-19 levou mais uma vez à suspensão das cirurgias programadas. Os cirurgiões estão desde janeiro com trabalho reduzido. Nalguns hospitais, foram integrados nas equipas covid, noutros tal só aconteceu porque os próprios se voluntariaram e noutros ainda ficaram em teletrabalho. Médicos das especialidades mais sobrecarregadas queixam-se: "Sobra sempre para uns, quando outros ficam em casa".

A 13 de janeiro o Ministério da Saúde emitiu um despacho em que autorizava a suspensão de toda atividade cirúrgica programada. O objetivo era aumentar a resposta à explosão da covid-19 quando os hospitais do país, e sobretudo os da região de Lisboa e Vale do Tejo, atingiam a linha vermelha da sua capacidade. Tal como na primeira vaga, os cirurgiões viram o seu trabalho reduzido ao indispensável. Ou seja, à prática urgente e emergente. Alguns serviços viram mesmo as suas enfermarias transformarem-se em enfermarias covid e as salas de recobro em unidades de cuidados intermédios e de cuidados intensivos para a covid. Quanto a isto, nada a fazer.

A questão é que o combate à pandemia trouxe de novo aos hospitais aquilo que os próprios sindicatos dos médicos reconhecem ser "querelas antigas entre especialidades", como admitiu o presidente do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), ou algumas "queixas informais por parte de colegas das especialidades mais sobrecarregadas", referiu o presidente da FNAM.

Nos hospitais, médicos das especialidades mais sobrecarregadas na luta contra a pandemia, como medicina interna, pneumologia, infecciologia e até medicina intensiva, queixaram-se ao DN da diferença de trabalho entre uns e outros, a maior parte das vezes em surdina, porque, afirmaram vários, "é assunto melindroso entre serviços e equipas". Sobretudo quando nesta terceira vaga Portugal foi obrigado a solicitar apoio a outros países. Vieram médicos e enfermeiros da Alemanha e de França, alguns precisamente para unidades em que cirurgiões e médicos de outras especialidades, como oftalmologia, dermatologia, otorrino, se encontram em teletrabalho ou com atividade muito reduzida.destaque"Os cirurgiões ficaram com trabalho reduzido, uns só com consultas uma vez por semana, sobretudo teleconsultas, outros com duas e uma urgência, outros só a fazer consultas e relatórios."

O assunto é de facto melindroso entre a classe médica e ao DN as mesmas fontes assumem que "não é de agora". "Há sempre muita dificuldade em que as especialidades mais cirúrgicas colaborem com as especialidades médicas ou até com a medicina intensiva." O assunto divide a classe entre especialidades médicas e especialidades médico-cirúrgicas, gera mal-estar entre médicos, equipas, serviços e nas próprias unidades e alguns reconhecem que esta situação de "querelas antigas" até pode ter sido agravada durante a pandemia com a suspensão das cirurgias.

"Os cirurgiões ficaram com trabalho reduzido, alguns só com consultas uma vez por semana, e sobretudo teleconsultas, outros com duas e uma urgência, outros só a fazer consultas e relatórios", explicaram-nos, em vez de "terem sido colocados nas equipas covid e no reforço das atividades em que o seu hospital estava com maior dificuldades de resposta", argumentaram.

Na ronda feita pelo DN junto dos maiores centros hospitalares do país, como São João, no Porto, Lisboa Norte, Lisboa Central, Universitário de Coimbra e ainda no Hospital Garcia de Orta, ficámos a perceber que a distribuição destes profissionais para reforçar quer a resposta à covid quer nas urgências ou outros serviços com maior dificuldade de resposta foi diferente.

HGO tem cirurgiões em casa

Nuns hospitais, os serviços de cirurgia em conjunto com as direções clínicas reorganizaram os serviços e distribuíram os profissionais, moldando este plano à medida das necessidades; outros ficaram-se pelo apelo aos profissionais deixando que a decisão fosse voluntária. Já o Hospital Garcia de Orta, em Almada, colocou-os em casa em teletrabalho.

"Houve uma proposta do diretor de serviço para que uma boa parte dos cirurgiões ficasse em teletrabalho, que foi aceite pela direção clínica", garantem profissionais desta unidade, criticando: "Sobra sempre para uns, outros podem ficar em casa. Somos todos médicos e todos poderíamos estar a trabalhar para o mesmo, apesar das características de cada especialidade."

A situação gerou mal-estar na primeira vaga, durante o desconfinamento e voltou a gerar. "Se a atividade foi suspensa pelo governo, se houve enfermarias de cirurgia recrutadas para a covid é claro que não poderiam operar. A questão é que se pediu aos médicos internos que reforçassem as urgências e as equipas de covid e colocaram-se cirurgiões em teletrabalho a fazer consultas, que tanto os pode ocupar uma vez por semana, ou duas, ou a fazerem relatórios. Isto é incompreensível numa altura em que o hospital recebeu profissionais estrangeiros para apoiarem a resposta à pandemia", sublinharam as mesmas fontes.

"Não foi tudo igual, houve cirurgiões e colegas de outras especialidades que integraram as equipas porque se voluntariaram", reconhecem, referindo não se tratar de uma verdadeira reorganização encetada por parte dos serviços. "O hospital definiu regras para o sistema de teletrabalho. Desde abril do ano passado que todos os profissionais da unidade deviam ter regressado ao trabalho presencial em sistema de prontidão (espelho), mas o que aconteceu é que tais regras, que deveriam ser só exceções, deixaram-no de o ser, e agora há muitas outras situações de teletrabalho autorizadas que não se justificam", criticam. Estes profissionais garantem que no hospital se comenta que "a situação se descontrolou".

"Realidade não é a descrita"

O DN confrontou o Garcia de Orta com todas estas questões, pedindo números que traduzissem o impacto da suspensão da atividade. A resposta foi que no que diz respeito "à realidade do HGO não é a que é descrita. Os cirurgiões foram mobilizados para prestarem cuidados em enfermarias covid e para reforçar as escalas do serviço de urgência geral". No entanto, assumiu o teletrabalho, dizendo que "essa atividade não presencial realizada pelos cirurgiões do HGO realiza-se à semelhança do que é realizado nas restantes especialidade médicas, na vertente de consultas médicas não presenciais".

Ao mesmo tempo sublinhou que os cirurgiões "mantêm a realização de atividade cirúrgica emergente, urgente e ainda muito prioritária a doentes oncológicos". Quanto ao impacto da suspensão de atividade, o HGO disse que, desde o dia 13 de janeiro, foram canceladas 11 cirurgias, das especialidades de cirurgia geral, ginecologia, medicina da dor e urologia", admitindo que "outras cirurgias não chegaram a ser agendadas".

As mesmas fontes garantem que "só foram 11 porque mais nenhuma foi agendada, assim não tinham de ser canceladas". Para estes profissionais é importante que, no futuro, tais respostas não se fiquem pelos critérios de voluntarismo: "Tem de haver uma efetiva reorganização dos recursos. É uma questão ética, independentemente de se ser cirurgião, ortopedista, oftalmologista ou dermatologista."

"Querelas antigas"

Os sindicatos médicos reconhecem que esta disputa entre especialidades não é de agora. O presidente do SIM, Jorge Roque da Cunha, argumentou ao DN que "são querelas antigas que não alimentamos", considerando que "pode ter havido agora algum agravamento com a covid", porque "a medicina interna arca sempre com a maior carga de trabalho", mas a verdade também "é que esta situação foi mais uma vez imposta pelo governo, por já não haver capacidade de resposta à pandemia".

Roque da Cunha sustenta que "o importante é perceber que os direitos e as necessidades dos doentes não covid não foram acautelados", defendendo que "no geral, os cirurgiões querem operar, os internos de cirurgia querem operar, o que é preciso é que seja definida uma reorganização dos recursos tendo em conta as necessidades das unidades e dos doentes".

"São querelas antigas que não alimentamos. Pode ter havido agora algum agravamento com a covid, porque a verdade é que a medicina interna arca sempre com a maior carga de trabalho."

Para o presidente da FNAM, que é cirurgião, a situação que aqui relatamos não aconteceu no hospital em que trabalha, em Lamego, onde os cirurgiões continuam a trabalhar e integraram equipas covid e de urgência para reforçarem a resposta da unidade. Noel Carrilho referiu ainda não ter conhecimento de queixas formais sobre esta questão.

Ao DN, Carlos Robalo Cordeiro, que integra o Gabinete de Crise para a Covid da Ordem dos Médicos, e é também diretor do Serviço de Pneumologia do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, informou que ali, até agora, nada chegou sobre esta situação. Aliás, e dando o exemplo do seu hospital, "todas as especialidade cirúrgicas foram chamadas a dar o seu contributo na covid-19. Tenho pneumologistas que fazem a rotação em espelho com colegas de dermatologia e de otorrino". O diretor de Coimbra sublinha "ser primordial que o combate seja feito pelas especialidades de medicina interna, pneumologia e infecciologia, sendo estas que têm sido mais chamadas para os diversos cenários". "É a gestão natural do processo. Custa-me pensar ou admitir que haja cirurgiões em casa sem fazer nada quando o seu hospital está com necessidade de mão-de-obra. No meu hospital, quando foi solicitado que as pessoas se voluntariassem para as enfermarias ou para as residências, os períodos noturnos ou de de fim de semana, a resposta foi brutal", confessa.

No entanto, Carlos Robalo Cordeiro disse aceitar que esta situação também possa surgir porque "os cirurgiões têm uma especificidade de funções e de procedimentos que, de certa forma, os orienta mais para um certo tipo de atividade e de doentes" e porque "pode ser muito mais crítico um cirurgião estar a gerir doentes com complicações renais, cardíacas ou respiratórias do que estar a fazer o que deveria, recuperar as listas de espera".

Doentes cirúrgicos infetados

O mal-estar entre especialidades não se fez sentir só no HGO. O mesmo aconteceu em outras unidades. No Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central (CHULC) relataram ao DN que "ainda hoje há especialidades que não operam doentes com covid". Segundo nos explicaram, na primeira fase da pandemia, "houve total solidariedade por parte de todas as especialidades". Depois, "com o desconfinamento, e com o voltar da atividade cirúrgica, ficámos com um problema grave. Os cirurgiões não queriam acompanhar os seus doentes infetados com covid. O trabalho voltou a recair em algumas especialidades, mas a grande questão é que estes doentes tinham de ser acompanhados cirurgicamente".

A situação levou a reuniões entre diretores de serviço, que acabaram por chegar a uma solução. "Foi decidido que teria de haver um elemento de cirurgia geral destacado para acompanhar estes doentes em enfermarias covid." As mesmas fontes referem que a integração dos cirurgiões e de outras especialidades no combate à covid foi "muito voluntária", e que em relação aos cirurgiões o estarem ou não integrados "acontece em dimensões diferentes, dependendo dos serviços e dos profissionais".

Desde o dia 12 de janeiro, que no CHULC "foram adiadas 778 cirurgias, das quais 236 por alteração do estado clínico do doente e 171 por adiamento/recusa a pedido do próprio doente, o que ocorreu em todas as especialidades". Na resposta, o hospital acrescentou que a cirurgia urgente e prioritária está a ser realizada, estando a ser dada "primazia aos doentes oncológicos e situações de trauma" e que "os cirurgiões estão a ser integrados em equipas de combate a covid-19".

No Centro Hospitalar São João, a situação de mal-estar parece não se ter colocado: "Os cirurgiões encontram-se em presença física, assegurando quer as atividades de assistência nos seus serviços (consulta externa, hospital de dia, urgência, bloco operatório e internamento), quer integrando equipas multidisciplinares que prestam apoio clínico nas áreas das suas especialidades aos doentes covid."

No Centro Lisboa Norte, fonte da administração explicou que os cirurgiões foram redistribuídos por outras áreas, no reforço das equipas de medicina intensiva, urgências e enfermarias, começando em breve a recuperar a atividade suspensa, numa altura em que a quantidade de novos casos de covid-19 está a baixar em Portugal (ver à direita).

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