António Guerner Dias, professor na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, não tem dúvidas: “A maneira como ordenamos o território, em Portugal, é um problema. Há muita construção que, efetivamente, está localizada em pleno leito de cheia de um rio”. Isto significa que “a quantidade de água que é transportada pelo rio pode extravasar para o lado desse leito e vai ocupar uma área que se chama o chamado leito de cheia”, que pode não ser preenchido “nos próximos dez invernos”, mas que “no 11.º será”..E como há “muita construção em muitas áreas do território” torna-se “praticamente impossível conseguir evitar que ocorra uma cheia que cause prejuízos nas infraestruturas, nas habitações das pessoas, e até perda de vidas”..Isto pode explicar, em parte, o que aconteceu em Espanha há duas semanas, e que fez mais de 200 mortos em Valência. E é um dos principais fatores de risco também em Portugal, assegura. Pode ainda juntar-se aqui “outro problema”: não só foi um “evento extremo” como também é uma “área impermeabilizada”, o que significa que a chuva, quando chega à superfície terrestre, não se consegue infiltrar no solo e fica acumulada. Essa “terá sido uma das causas daquilo que aconteceu”, explica António Guerner Dias. E deve ser uma das prioridades em qualquer plano de ordenamento de território..É por isso importante que, quando se constrói, passe a ser considerada a “possibilidade de haver pequenas áreas proporcionais àquilo que se chama a pegada do edifício que vai ser construído”, de modo a permitir a infiltração da chuva nos solos. Isto é garantido, por exemplo, “com jardins ou espaços verdes”, que servem como uma bacia de retenção..De acordo com o investigador, em Portugal já existe algum trabalho feito no que toca à prevenção de cheias e inundações. No entanto, “as condições climáticas têm evoluído de maneira muito acelerada” e “as respostas, se calhar, já não são as mais eficazes na prevenção, mas apenas as mais adequadas”..Há um exemplo que António Guerner Dias destaca como sendo “muito eficaz”, ainda que “pouco consensual”: a construção de barragens. “Não evitam 100% das cheias, mas permitem um controlo muito eficaz. Quer isto dizer que se não houvesse barragens, por exemplo, no Rio Douro, seguramente que as cheias seriam muito mais severas e muito mais frequentes do que aquilo que são na atualidade”, explica, sublinhando porém que, quando há acontecimentos “extremos”, como a queda de muita chuva num curto espaço temporal, estes mecanismos deixam de ser eficazes..APA referencia 63 zonas críticas no risco de cheia.De acordo com a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), existem 63 zonas críticas no território continental (ver mapa). Destas. a maioria são de origem fluvial (47) e as restantes, de origem costeira (16). Nestas áreas, diz a APA, habitarão 102.905 pessoas, divididas por 102 municípios. Só na região do Tejo e ribeiras do Oeste estão em risco 41.140 pessoas..Foi aprovado, em Conselho de Ministros, a 22 de abril deste ano, um conjunto de Planos de Gestão dos Riscos de Inundações (PGRI), utilizados para cumprir a Diretiva Europeia da Avaliação e Gestão dos Riscos de Inundações, que alargam o critério de área de identificação das zonas críticas..O objetivo é que cada um dos 102 municípios em risco possa utilizar as mais de 600 medidas que pretendem reduzir os efeitos das inundações na vida dos cidadãos, bem como proteger serviços e património. Estas medidas dividem-se em quatro áreas principais: preparação, prevenção, proteção e recuperação e aprendizagem..Espera-se que, entre 2022 e 2027, se gastem 200 milhões de euros na execução destes planos de gestão. O DN tentou saber junto da APA se os planos já estão em execução, mas não obteve respostas..Lisboa e Porto já têm planos a ser implementados.Uma destas zonas de risco de cheia de origem fluvial abrange o Rio Tejo e, consequentemente, a cidade de Lisboa. Para enfrentar esta questão, a autarquia avançou com o Plano Geral de Drenagem, numa obra avaliada em cerca de 250 milhões de euros, com um período de implementação de 15 anos. Este plano materializa-se, sobretudo, em quatro eixos: construção de bacias de retenção/infiltração e trincheiras drenantes, no transvase de bacias, ou seja, na construção de dois túneis (entre Monsanto e Santa Apolónia e entre Chelas e Beato) com diâmetro interno de 5,5 metros e extensão total de cerca de 6km..Além disso, está ainda previsto um reforço da rede de saneamento (esgotos domésticos e águas da chuva), bem como a melhoria do conhecimento da rede de saneamento de Lisboa e do seu funcionamento..Será isto suficiente para atenuar os efeitos de uma eventual cheia catastrófica? José Carlos Ferreira, investigador no Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE) da Universidade Nova de Lisboa, diz que “os engenheiros que o fizeram acham que é”. Contudo, aponta, é necessário voltar a tornar os solos mais permeáveis. “Não é preciso fazer nenhum drama”, diz, basta “mudar os materiais, como o asfalto, substituindo-o por alcatrão permeável, que já existe”. “Por outro lado, é preciso construir um conjunto de bacias de retenção, na parte alta da cidade.”.Esta estratégia está a ser adotada pela cidade do Porto, que, diz fonte da autarquia ao DN, vai transformar o jardim Paulo Vallada numa “esponja”, criando para isso “pequenas bacias de retenção e o rebaixamento do campo de futebol do jardim” Assim, “será possível acomodar cerca de 2500m3 de água pluvial com um investimento de cerca de meio milhão de euros”. Espera-se que esta obra fique concluída em 2025..Além disso, a autarquia destaca que “num contexto de valorização dos recursos hídricos, está também prevista a reabilitação da Ribeira da Granja, entre a Estrada da Circunvalação e a Rua de Requesende, na qual serão aplicadas soluções de base natural para a estabilização do leito e margens da linha de água, permitindo a valorização dos habitats ribeirinhos”..Esta intervenção “tem uma estimativa orçamental de cerca de 1 milhão de euros e deverá decorrer ao longo do ano de 2025”. E para estudar e “identificar as zonas mais vulneráveis e definir os projetos e os montantes necessários ao aumento da resiliência hídrica”, a cidade criou o projeto “Porto+Permeável”.