Francisco tem 14 anos e é dependente de videojogos. De dia para dia, o número de horas passadas em frente ao ecrã aumenta. Com uma perturbação do espetro do autismo, a dependência atinge um pico: 23 horas seguidas a jogar. Ao longo desse período, a mãe leva-lhe as refeições ao quarto e coloca um balde ao lado da secretária, destinado às necessidades fisiológicas. Francisco tem deficiências ao nível da sociabilização e uma experiência escolar traumática. .Outro Francisco (vamos chamar-lhe F.F.) inicia o absentismo escolar aos 15 anos. Chega às mãos do terapeuta aos 23, com o 12.º ano por completar. Não está sequer matriculado - vive preso a um ensino secundário que nunca mais termina. Pertence a um conjunto de dependentes com crenças absolutistas: tem de completar o jogo na totalidade. F.F. define a sua personalidade pelo videojogo. Nos manuais, isso tem nome: é um completador. A atividade é dominante e exclusiva. .Tomé, 21 anos. Anda há dois anos na faculdade com absoluto insucesso. Encobre faltas e resultados. Tem pais muito críticos. .Rodrigo, 17 anos. Tal como Tomé, joga para se sentir competente. À medida que os resultados escolares pioram, aumenta a necessidade de jogar. Procura no jogo a validação da competência. .Francisco C., 13 anos. Não joga todos os dias, mas quando o faz, não consegue parar. Os conflitos familiares, sobretudo com a mãe, tornaram-se muito intensos. .Gambling e gaming - adição a jogo a dinheiro e a videojogos, respetivamente. São as duas únicas dependências online classificadas pela Organização Mundial de Saúde e a consequência mais grave promovida pela exposição desregulada à internet. Em ambos os casos, procura-se a sensação de autonomia e de autodeterminação - “mando em mim” -, a recompensa ou a validação de competências: “Sou bom nisto”. .Porém, outros casos se assemelham cada vez mais a dependências severas. J., 50 anos, tem sinais de burnout. Na consulta, o terapeuta percebe que passa noite após noite a acompanhar as Bolsas, em privação de sono, apesar de não ser jogador. Ou P., de 71 anos, que mesmo com amigos, ou em aniversários de familiares, janta com o telemóvel no colo, escondido debaixo do guardanapo. .“Não diria que esses dois casos tipificam dependências. Pode tratar-se de experiências de intensíssima ansiedade” diz ao DN João Nuno Faria, psicólogo especialista em adições, remetendo antes para a FOMO - “fear of missing out”. “A FOMO é o medo de não saber o que outras pessoas estão a fazer a cada momento, gerando isso um sentimento de perda. Teme-se estar a perder algo de muito importante” acrescenta. .Para lá do gaming e do gambling, há especialistas que falam declaradamente em comportamento aditivo do uso da internet, incluindo a utilização das redes sociais. Trata-se, defendem, “da incapacidade de controlar a utilização das redes, o que provoca dificuldades psicológicas, sociais, escolares, laborais”. Especialistas referem a nomofobia (não conseguir estar longe do telemóvel), a síndrome do toque fantasma (sensação de sentir o telemóvel a vibrar no bolso das calças ou na mochila, sem que haja nenhuma chamada), náuseas digitais (a sensação que algumas pessoas possuem ao interagirem com ambientes digitais, provocando desorientação ou vertigem), o transtorno de dependência da internet (vontade compulsiva em aceder à internet sem um fim específico) ou o efeito Google - é a tendência que afeta o cérebro humano em reter menos informações, pois sabe que as respostas estão ao alcance de alguns cliques..Em “Scroll. Logo Existo!: Comportamentos aditivos no uso dos ecrãs e das redes sociais”, investigação de 2023 assinada por Joaquim Fidalgo, Inês Casquilho Martins, Lourdes Caraça e Andreia Oliveira para o Instituto Lusíada e que contou com 1704 participantes, apurou-se que 79,2% dos participantes com menos de 24 anos utilizou a internet como forma de escape ou para aliviar o seu estado psicológico, sendo este o grupo mais propenso à dependência de ecrãs. Dados da Organização Mundial de Saúde relativos a 2022 referem que 11% dos adolescentes (13% das raparigas e 9% dos rapazes) mostraram sinais de utilização problemática das redes sociais, em comparação com apenas 7% quatro anos antes, de acordo com dados obtidos junto de 280 mil jovens com 11, 13 e 15 anos de 44 países da Europa, Ásia Central e Canadá, sendo que um terço dos adolescentes joga jogos em linha diariamente e 22% destes durante pelo menos quatro horas. “É essencial que tomemos medidas para proteger os jovens”, avisa a OMS..Abstinência parcial.Numa percentagem esmagadora, o paciente chega ao terapeuta de forma involuntária. Vai quase sempre pela mão de familiares ou amigos, iniciando-se aí um longo processo de tratamento. “Os mecanismos cerebrais de uma adição sem substâncias são iguais aos da adição com substâncias, porém, a intervenção é diferente. Se nas adições com substâncias há forma de conseguir o absentismo total, retirando os pacientes de um contexto que facilite o consumo, no caso do gambling ou do gaming cortar esse acesso é bastante mais difícil. A supervisão, em casa, ou a vigilância, na escola, podem ficar comprometidas num recreio”, diz João Nuno Faria. “Há sempre um telemóvel disponível, e daí a estratégia comummente adotada ser a da abstinência parcial”. .São várias as fases do tratamento - Pré-contemplação (o paciente não admite que tem um problema); Contemplação (já se apercebeu de que tem um problema); Preparação (o papel da família é muito importante, preparando-se a família e o paciente para as mudanças que serão necessárias); Ação (aplicação das estratégias). .A psicóloga Ivone Patrão sintetiza: “Este problema não existe sozinho. Está ligado a outras comorbidades, quer do foro psicológico, quer do foro psiquiátrico”. A intervenção é por isso obrigatoriamente multidisciplinar, ao mesmo tempo que a família é chamada a um papel importante: a supervisão, promovendo o acesso restringido ao computador ou aos telemóveis, que passam ser utilizados apenas sob vigilância. Para a psicóloga, a vertente fundamental é a da prevenção no âmbito familiar e em contexto escolar. No Geração Cordão, projeto dedicado às dependências online do qual Patrão é coordenadora, avaliam-se, em consultas da especialidade, a dependência emocional dos ecrãs e a dificuldade na autorregulação do comportamento e no processo de autonomia. “Temos um duplo desafio: lançar o cordão com a família e gerir o cordão de ligação ao mundo digital”, diz ao DN..O projeto criou um teste que permite avaliar o risco de um jovem estar dependente online. Está à disposição de pais, educadores e professores, “de maneira a que o jovem fique referenciado”. Patrão, que é também investigadora do ISPA, traçou o perfil do utilizador de internet com dependência: jovem entre os 16 e 21 anos de idade, do sexo masculino, com frequência do ensino secundário e com rendimento escolar fraco. Começou a atividade online aos 8 anos, está mais de seis horas online, mostra baixa empatia e tem pais mais permissivos. .“Amostras de hoje dizem-nos que 10 a 15 por cento dos jovens tem dependência severa. Não é muito. Mas começa a ser preocupante se acrescentarmos que há 50% em risco”, alerta Patrão. .A cetamina.A combinação entre psicoterapia e cetamina, aplicada numa sequência de sessões, está na moda. A cetamina é uma substância psicadélica usualmente utilizada para induzir e manter estados anestésicos. O tratamento prevê uma avaliação médica inicial para verificar a elegibilidade e as sessões decorrem em ambiente clínico. “É seguro e controlado, estimula uma abordagem diferente, feita a partir de dentro e com base numa renovada consciência de si”, refere ao DN Carla Mariz, psicóloga clínica especializada em psicoterapia e neuropsicologia. De acordo com esta terapeuta, a cetamina tem efeito nas ligações do cérebro “e abre caminho para uma experiência mais intensa e pessoal na mente”. Quando em associação com o trabalho de proximidade dos psicoterapeutas especializados, “promove um programa mais seguro e eficaz”. .O paciente tem de ter mais de 18 anos. Depois da avaliação médica inicial, seguem-se as sessões de preparação e de administração gradual da substância. O uso de psicadélicos não é ainda consensual. “Apesar de promissores, ainda não há evidência científica suficiente para uma estratégia de protocolo de intervenção ser considerada”, diz João Nuno Faria. “Nas doses usadas, e ministradas em ambiente clínico, são substância seguríssimas, com níveis de toxicidade baixíssimos”, defende Mariz. .Os CRI.O Serviço Nacional de Saúde dá resposta ao problema da adição sem substâncias através dos Centros de Respostas Integradas (CRI), vinte e duas estruturas locais espalhadas pelo país, dispondo de equipas técnicas especializadas multidisciplinares para as diversas áreas de missão dedicadas ao tratamento, prevenção, reinserção e redução de riscos e minimização de danos das dependências. .De acordo com dados do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD) são cerca de 950 os profissionais afetos a estes serviços, “número que varia quase diariamente porque estamos em vários processos de contratação”, dizem ao DN. .Este instituto público trabalha “com um modelo integrado, em que as equipas são multidisciplinares e comportam desde médicos psiquiatras a psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros e outro pessoal, agindo sob cinco áreas de missão: prevenção, tratamento, redução de riscos e minimização de danos, reinserção e dissuasão. Aos Centros de Respostas Integradas (CRI) acrescentam-se as Unidades de Desabituação (4) e as Comunidades Terapêuticas (3), sempre em regime de ambulatório. .“A resposta pública ainda está aquém do desejado”, diz ao DN João Reis, responsável pela consulta de Dependências Comportamentais da Unidade de Alcoologia e Novas Dependências do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Tanto mais que “a procura existe”. .Salientando a importância do papel do SNS na prevenção, o psiquiatra alerta para a exposição de crianças e jovens à publicidade sobre jogo online. “Há aí muito a fazer pela parte do poder político e da regulação. A publicidade que existe dá claramente a entender que a pessoa está a perder a possibilidade de ficar milionário, quando na verdade é exatamente o contrário”. .Último recurso: abstinência total.Quando as estratégias de ambulatório falham, a solução passa pelo internamento, que terá sempre de ser voluntário. O Serviço Nacional de Saúde trabalha em rede com algumas IPSS (Instituição Particular de Solidariedade Social). É o caso da Farol, criada em 1995. Com alguns comparticipados pelo Estado, já por lá passaram cerca de 2500 pessoas. Sobretudo vocacionada para a adição com substâncias, a Farol oferece um tratamento dividido em várias fases: encarar o problema, aprender a disfrutar e a reinserção do residente, obrigatoriamente maior de idade. .No setor privado, existem outras clínicas vocacionadas para o tratamento, em abstinência total, das dependências sem substância. O psicólogo Eduardo Silva foi o fundador da Villa Ramadas, onde o tratamento tem a duração mínima de quatro meses. “Trata-se de programas intensivos de ‘desintoxicação’ de internet, após uma primeira entrevista e avaliação multidisciplinar do paciente”. Abstinência total ao longo de um processo “intenso, regular e continuado, com oito horas de terapia por dia”. .A manutenção.Aprender a lidar com os gatilhos é fator essencial para evitar as recaídas. Porém, caso aconteça, há uma regra de ouro: a admissão de que a vontade de voltar ao jogo existe. “A primeira coisa é não tentar afastar a ideia. É aceitar que a vontade existe e que está presente. Só a partir daí é possível desencadear estratégias”, lembra João Nuno Faria. .“Afastar-se dos gatilhos, aprender a identificá-los e a lidar de forma controlada com o craving (desejo)”, são algumas dessas estratégias. Porque, diz o psicólogo, “a recaída faz parte, está presente e acontece muitas vezes”. O tropeção, esse, pode ser maior ou menor. Uma coisa parece ser uma certeza: “A recaída tende a ser cada vez menos impactante”. A terapia pode levar meses ou anos. .Um ano depois, T., de 20 anos, consegue identificar as situações que desencadeiam a sua vontade de jogar: perceber os jogos mais problemáticos, e afastar-se; lidar com a frustração e as dificuldades escolares; gerir a ansiedade face à possibilidade de falhar, e lidar com o insucesso sem recorrer aos videojogos. “Esse é o verdadeiro conceito da abstinência parcial, e frequentemente dá muito bons resultados”, diz João Nuno Faria.