Celeste e Guilhermina: a flor do acaso
Falemos então de Celeste. Ou, melhor dizendo, de Celeste Martins Caeiro, mulher de 91 anos, porquanto nasceu em Lisboa, na freguesia do Socorro, aos 2 de Maio de 1933, o ano da Constituição Política do regime do Estado Novo.
Celeste, vida agreste: com raízes na Amareleja, concelho de Moura, que alguns diziam ser, garante ela, a “aldeia mais vermelha do país”, Celeste mal conheceu o seu pai, que a abandonou – e à mãe, de ascendência galega, e aos irmãos mais velhos – era ela ainda criança, muito criança. Sua mãe chamava-se Teodora de Viana Martins Caeiro e, pese ter nascido em Espanha, veio em muito menina morar para a Amareleja, e a seguir para Lisboa, onde teve três filhos, todos confiados a instituições de caridade.
Com apenas 18 meses, Celeste foi internada na Creche do Alto do Pina, na Rua Barão de Sabrosa, dirigida pela Santa Casa, de que hoje tanto se fala. A mãe, de quando em vez, ia visitá-la. Aos 14 anos, transferiram-na para o Asilo 28 de Maio, também conhecido por “Lazareto”, na outra banda do Tejo, outrora dedicado à quarentena dos tripulantes dos navios num espaço imenso que, após o 25 de Abril, seria ocupado por famílias africanas das ex-colónias e, anos volvidos, berço de rappers famosos (cf. a excepcional reportagem sobre Porto Brandão e o Asilo 28 de Maio, de Ana da Cunha et all., na Mensagem de Lisboa, de Agosto de 2023).
No Asilo 28 de Maio, que chegou a albergar mais de 400 raparigas desvalidas na década de 1940, o tempo em que ela por lá andou, Celeste revoltou-se com a aspereza e o rigor das freiras, as quais, não muito depois, a despacharam de regresso a Lisboa, para o Colégio de Santa Clara, da Casa Pia, no largo onde às terças e sábados se faz a Feira da Ladra. Saiu de lá com 20 anos, com estudos de pré-enfermagem que lhe davam equivalência ao 2.º ano do liceu, como nos conta Ana Sofia Fonseca num livro cativante, originalíssimo, Capitãs de Abril. A revolução dos cravos vivida pelas mulheres dos militares (A Esfera dos Livros, 2014). Porém, como tinha problemas pulmonares, nunca pôde seguir aquela profissão (cf. Alexandra Tavares-Teles, “Onde eu estava há 50 anos, por… Celeste Caeiro”, Diário de Notícias, de 23/4/2024).
Entretanto, no decurso de umas férias no Alentejo, por bandas da adolescência, apercebeu-se de que na casa dos tios se faziam reuniões clandestinas, e ficou noites inteiras a matutar naquilo. “Não podes contar nada, Celeste”, disseram-lhe os envolvidos, e ela manteve o segredo. Em Lisboa, ainda jovem, teria a sua iniciação política, posto que módica e incipiente: a tabacaria do Café Patinhas, na Rua da Prata, onde trabalhava, era local de paragem de gente de esquerda, que lhe comprava os livros malditos de José Vilhena. “Ai Celeste, qualquer dia isto vai dar barulho”, dizia-lhe o patrão temeroso, mas ela, confiante, respondia “Deus é grande, não vai nada”, e continuava escondendo as obras proibidas entre os pacotes de tabaco e outros artigos da loja.
Nas tardes de folga, ia assistir aos julgamentos na Boa Hora, um passatempo casto e triste, hoje caído em desuso. Já então se indignava com a opressão: “a gente punha-se na fila e eles empurravam-nos.” Recorda outro episódio, passado com uma amiga, mãe de uma menina pequena. Um dia, quando andavam mãe e filha pelo Camões ao pé de uma sapataria, a miúda perguntou à mãe se os sapatos eram caros. Atrás vinha um agente da PIDE, à paisana, que, à conta daquela inocente pergunta, ameaçou mãe e filha de serem levadas presas (cf. jornal i, de 25/4/2019).
Celeste, que começara a trabalhar numa fábrica de camisas na Avenida Almirante Reis, mais tarde empregou-se na tabacaria do Patinhas, atrás citada, onde conheceu um homem, cliente habitual do café, que lhe pareceu trabalhador e honesto, até porque, diz, numa frase arrepiante, “uma mulher não podia querer mais.” Amigaram-se, foram viver juntos para os lados de Santa Apolónia, no Bairro América, assim chamado em homenagem à entrada dos Estados Unidos na Grande Guerra, e cujos nomes das ruas evocam figuras ligadas ao Novo Mundo (Franklin, Washington, Wilson, Bolívar, Ruy Barbosa, etc.). Por não ser casada, foi alvo de muitas críticas: “diziam-me que eu não era séria, que aquilo era uma pouca-vergonha. Não casávamos, éramos apontados.”. Acabou tendo uma filha daquele homem, que bebia e lhe batia muito. Aguentou até dar, para que a criança não nascesse e fosse registada como filha de “pai incógnito.” Depois, mal pôde, separou-se dele, “por razões que nunca quis contar”, diz a neta, um inferno que Celeste assim descreve: “Passei muito… mas quando a médica disse que a menina estava nervosa por causa do que via, acabou-se.” Acabou-se, saiu de casa, tinha a filha três anos.
A decisão obrigou-a a andar de poiso em poiso: “as donas das casas não gostavam de hóspedes com crianças por causa do choro. Era cá uma vida… Tive de andar a saltar de quarto.” Um dia, em aperto, viu um emprego nas páginas de classificados do Diário de Notícias, o mesmo que agora ledes. Começou a trabalhar no bengaleiro da boîte Marygold, na Rua do Sol ao Rato, que à época diziam ser poiso de homossexuais e de consumo de drogas, alvo de constantes queixas e rusgas da polícia. Por causa de tudo isso, por ser mãe solteira e ter um emprego malvisto, o senhorio despejou-a da casa onde vivia. Uma pessoa amiga disse-lhe para falar com o escritor Luís de Sttau Monteiro, e este arranjou-lhe um advogado que conseguiu adiar por uns tempos a ordem de despejo. Entretanto, mudou de emprego, foi trabalhar para um restaurante que ia abrir na Rua Brancaamp, num edifício esquisito, de ares ultramodernaços, logo apelidado de “Franjinhas”, por causa da série animada francesa “Carrossel Mágico”, estreada na RTP em 1966.
Contado à exaustão, vezes sem conta, o resto é conhecido, e história da nossa História: no dia 25 de Abril de 1974, Celeste foi trabalhar, como sempre, no restaurante Sir, o primeiro self-service de Lisboa, que inaugurara, precisamente há um ano, no “Franjinhas” e que era gerido por umas “tias” da família Franco Falcão, proprietária da moradia onde foi erguido o “mamarracho” de Teotónio Pereira e Braula Reis e que ainda hoje é dona desse edifício (cf. Renata Lima Lobo, “O edifício Franjinhas vai ficar de cara lavada”, Time Out de 21/3/2020). Para assinalar o aniversário do Sir, os patrões queriam engalanar as mesas com flores e oferecer um cálice de Porto aos clientes, gente que trabalhava nos escritórios da zona, entre a Castilho, a Brancaamp e o Salitre. Por isso, mandaram o gerente, o senhor Ramos, comprar flores à praça da Ribeira, de onde regressou o Ramos carregado de muitos ramos de cravos todos vermelhos. “Comprou cravos, podia ter comprado outras flores quaisquer”, contaria Celeste à imprensa, anos volvidos, por certo não se apercebendo da importância do acaso na História, feita de episódios como este. “Porquê cravos? Nunca lhe cheguei a perguntar, talvez por serem mais baratos.”
Na época, Celeste tinha 40 anos e morava com a mãe e a filha para as bandas do Chiado, no nº. 14 da Rua do Sacramento. No emprego, ia ouvindo a rádio, era fiel seguidora do “Simplesmente Maria”, mas, acrescenta, “não tinha telefonia em casa, não tinha nada. Vivia muito bem…”, graceja. À conta disso, não se deu conta do que acontecera em Lisboa, as ruas pejadas de tanques. Às nove da manhã em ponto, chegou ao restaurante, onde já tinha o patrão e os colegas à porta, com cara de caso. Ainda se recorda hoje das palavras do dono, o engenheiro Matos Chaves: “Meus senhores, a casa não vai abrir porque se está a dar uma revolução – ou um golpe de Estado, isso já não recordo bem –. Os senhores vão para casa e depois nós avisamos se der para o bem ou para o mal.”
Desde o primeiro momento que acreditou que iria dar para o bem, mas, conhecendo-lhe o feitio, os colegas tentaram moderar-lhe os ímpetos: “Celeste, ouviste o que o patrão disse, vai para casa para o pé da tua filha e da tua mãe e não te metas em barulhos.”
Depois, foram ao armazém buscar os cravos, para que não murchassem, e Celeste meteu-se no metropolitano, saiu no Rossio, que estava deserto. Só então viu os tanques, a soldadesca na rua. Ficou parada a olhá-los, à esquina da Rua do Carmo, diante da Tabacaria Caravela. Perguntou-lhes onde iam, um deles disse-lhe que estavam ali desde as três da manhã e pediu-lhe um cigarrinho. “Por acaso a senhora não tem um cigarrinho, perguntou-me um. Nunca fumei, não tinha, se calhar é por isso que ainda cá ando”, conta Celeste, 91 anos de vida. “Olhei para todos os lados para ver se havia alguma coisa aberta para lhes arranjar alguma coisa para comer, mas não havia nada.” A seguir, o instante decisivo: “tirei um cravo e dei-lhe. Aceitou, podia não ter aceitado. Pôs no cano da espingarda e achei bonito. Depois tirei outro e dei a outro soldado, que também pôs no cano.”
Com metro e meio de altura, Celeste não se põe em bicos de pés: “As pessoas julgam que fui eu que pus os cravos nas espingardas, mas não, estava muito alto.” De resto, nem eram muitas as flores que ofereceu, uma meia-dúzia, no máximo, ainda assim o suficiente para fazer dela a influencer do dia, responsável pelo lançamento de uma moda que ainda hoje perdura – e que à época fez manchetes nos jornais do mundo inteiro. Diz-se que Carlos Gil captou o instante decisivo, mas, do que conhecemos da obra desse insigne fotógrafo, não se vislumbram rastos de Celeste (cf. Carlos Gil. Um fotógrafo na revolução, Caminho, 2004).
Quando chegou a casa, e contou à mãe o que fizera, foi maternalmente censurada – “Esta rapariga é maluca! Então puseste-te à frente da tropa? Podias ter levado um tiro!” –, mas respondeu com a mesma confiança revolucionária que mostrara perante os colegas de trabalho, dizendo que tudo iria correr bem. À tarde, depois de almoço, desceu à rua sozinha, cirandou entre os populares, viu os tanques e os magalas, estava o Chiado todo alevantado, Lisboa coberta de cravos. Ainda viu ao de longe Sttau Monteiro, de máquina em punho, a fotografar tudo aquilo. Acenou-lhe, recordada do apoio que o autor da Guidinha lhe dera por causa do despejo da casa.
No dia seguinte, quando voltou ao trabalho, já a rádio perguntava de onde nascera a ideia dos cravos, quem fora o génio daquela revolução florida. Acabou contactada pela mídia, sempre cusca, e a primeira entrevista que deu, hoje uma peça da História, foi à revista Crónica Feminina. Todos os anos, por alturas do 25 de Abril, passou a ser dispensada do trabalho, para poder dar entrevistas. Reagia, porém, com desarmante humildade, dizendo: “sou uma pessoa como as outras, não sou mais importante. Aconteceu.”
Escrevendo no jornal República, em 7 de Maio de 1974, numa crónica intitulada “Cravo de Maio, Flor da Liberdade”, António José Saraiva afirmava que “o cravo vermelho da Liberdade não tem autor conhecido, não foi proposto ou programado por qualquer organização. É anónimo e natural como tudo o que é vivo. É por ele, e por tudo o que ele diz sem palavras, que o nosso Primeiro de Maio, improvisado e sem experiência, foi o mais belo do mundo inteiro” (in Filhos de Saturno. Escritos sobre o tempo que passa, Bertrand, 1980, pp. 31-32).
Ao dizer que os cravos não tinham “autor conhecido”, António José Saraiva demonstrava não ler a Crónica Feminina, a qual, como atrás se disse, deu a notícia em primeira mão da “mulher dos cravos”. Celeste, sempre humilde, não dissera nada a ninguém, só às colegas, mas a boa nova, sabe-se lá como, terá chegado ao ouvido sempre alerta do Dr. Artur Varatojo, o célebre “Inspector Varatojo” (que, à conta desse epíteto, seria obrigado, no pós-25 de Abril, a publicar anúncios esclarecendo nunca ter pertencido à PIDE), e este referiu-a na Crónica Feminina.
Eis um episódio ignorado da revolução, que aqui trazemos à luz. No n.º 914, de 30 de Maio de 1974, a Crónica publicava a habitual coluna de Artur Varatojo, “Varatojo conta-lhe…”, que dessa feita tinha o título “O Primeiro Cravo”, e dizia assim, em êxtase de poesia e sonho:
“O cravo transformou-se em poucos dias na flor simbólica dum país.
Alguém escreveu que Deus criou duas coisas maravilhosas: a mulher e a rosa, mas este cravo esquecido sobre passou, sem dúvida, a beleza da rosa para renascer, por direito próprio, com um perfume muito seu, de liberdade, de ternura, de confiança, de altivez, emergindo do cano duma arma, transformado pelo destino.
O povo adoptou-o, os cartazes elegeram-no como panegírico. Os homens votaram-no unanimemente como símbolo duma alegria renascida.
Mas nós queremos mais. Nós gostávamos de saber quem foi a primeira mão que soube colocá-lo ternamente no cano duma espingarda. E atrevemo-nos a imaginar que só pode ter sido uma mulher – e mãe…
Alguém que encontrou nele a força para entupir uma arma criada para a guerra, que ficou subitamente emudecida e envergonhada do seu poder bélico para receber no seio frio do metal negro uma haste verde de esperança, numa paz imorredoura.
Alguém que acreditou na natureza das flores para modificar a natureza dos homens.
Uma mulher – se duma mulher se trata – esse alguém tem direito a uma estátua imortal que simbolize, na frieza do mármore, todo o calor humano do seu gesto, na brandura da pedra toda a candura da paz.
E será uma estátua que ninguém jamais poderá destruir. Ninguém que acredite em Deus ou, simplesmente, na beleza, na alegria, na liberdade e no triunfo da dignidade humana.
O mundo atónito, que não acreditava em nós, rendeu-se perante a evidência dum Portugal diferente que usa como munições cravos em vez de balas.
É preciso que o turista que nos visite num Abril renascido encontre craveiros em todas as janelas do país, e possa apreciar nesta Lisboa admirada uma estátua criada pelo nosso melhor artista e modelada pelos mais hábeis canteiros, duma mulher do povo a colocar um cravo no cano da arma dum soldado desse mesmo povo.
Essa mulher – e eu insisto que só pode ter sido uma mulher portuguesa – tem direito à homenagem permanente de todos aqueles que puderam abrir as suas janelas floridas sem escutarem o ruído da metralha, ou os gritos angustiados dos feridos, sem ouvirem o som da guerra, sem se aperceberem do pó dos edifícios ruindo no estremecimento da derrocada.
Todos os anos, no Dia da Mãe, teremos obrigação de ir depor-lhe aos pés, com o mesmo carinho, o mesmo respeito, a mesma gratidão, um grande ramo de cravos vermelhos.
Ela tem de saber como floriu no peito de cada um de nós… o seu primeiro cravo.”
Quer dizer, e como se vê, em rigor Varatojo não descobriu Celeste, mas pressentiu-lhe o perfume. Na altura, de resto, já outros exploravam o filão do cravo, intuindo a sua potência poética. Noutro número da Crónica Feminina, de 6/6/1974, José Cid dava uma entrevista em que recordava os versos da sua música “Camarada”, de 1972 (“Nasce uma flor no cano de uma espingarda”; cf. Jorge Mangorrinha, “Onde é que eu já ouvi isto, camarada?”, Diário de Notícias, de 7/4/2024). Restava agora saber a identidade daquela a que, noutro texto e contexto, A. J. Cronin chamou “a Dama dos Cravos.” Começava o cherchez la femme, rapidamente concluído, parece, devido a um oportuno contacto das colegas de Celeste com a redacção da Crónica.
Logo depois, a revista, pela mão de Ruth Quaresma, entrevistaria Celeste Caeiro, de permeio com fotonovelas importadas de Espanha, com publicidade à loja de modas Poli e à Terapia Térmica Acelerada (TAT), desenvolvida na Suíça e trazida para Portugal (e graças à qual a “Sr.ª D. Teresa de Sousa Diniz”, uma baleia, tinha conseguido emagrecer 9kg em oito dias), com uma receita de sopa de salsichas e com o horóscopo da princesa Ana de Inglaterra, com o noticiário da programação da RTP, marcado pela transmissão das 24 Horas de Le Mans e pela estreia de “O Sinal do Dragão” (“é uma nova série em que um monge budista, para começar, restitui a fé e a vista a um homem cegado pelos índios”) e com uma reportagem sobre o fim do trabalho aos sábados, coberta por depoimentos de uma estudante, a Zé (“o sábado livre é uma boa ideia, porque assim temos mais tempo para fazermos aquilo que gostamos. A greve dos estudantes levou o Ministério a equiparar-nos aos trabalhadores em geral e foi uma medida popular”), e de um marceneiro, Carlos Alberto Ribeiro (“o sábado para descansar é uma grande coisa. Até para podermos conviver com a família. A minha mulher trabalha no comércio, trabalha sábado de manhã. Ficamos com o sábado estragado. Se assim não fosse, podíamos sair para qualquer lado, lá fico à espera que a minha mulher tenha o sábado todo… Quando é Verão, gosto de aproveitar para fazer campismo, para fugir à cidade, a este ambiente pesado, nada saudável”).
Nessa primeira de muitas aparições mediáticas, Celeste, apresentada como “uma funcionária zelosa e simples dum conceituado estabelecimento da Capital”, contou a história dos cravos, do aniversário do restaurante, do encontro com a soldadesca: “Eu segui-os. Eu queria estar com eles. Perguntei-lhes de onde eram, para onde iam… e disse-lhes emocionada «Vocês são uns grandes HOMENS.» Quis dar-lhes qualquer coisa. Mas o quê, se não tinha nada? Só os cravos vermelhos que trazia abraçados junto com a emoção. Esqueci-me da minha filha e, quase a chorar de alegria, distribuí-os pelos soldados que, rindo, logo os colocaram um a um nos canos das suas espingardas. Fiquei muito feliz. Muito feliz.”
A seguir, explicou porquê: “Sabe, há muito tempo que desejava que isto desse uma volta. Revoltava-me coisas que aconteciam e habituei-me a não ter medo. Um tio do meu cunhado também esteve preso em Caxias. Um ano! E não havia razão para ser preso. O Dr. Salgado Zenha foi o advogado dele. Mais tarde foi absolvido. A partir desta altura em que me apercebi de certas coisas, comecei a interessar-me mais pelos movimentos políticos. Muitas mulheres tinham medo, mas eu não. Até ia assistir ao julgamento dos presos políticos, sempre que podia. Na sala de julgamentos estavam sempre muitos «pides» que nos tratavam mal e, por vezes. Não nos deixavam entrar. Quando se deu esta volta nem sei o que senti…” (cf. Crónica Feminina, n.º 916, de 13/6/1974).
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Os cravos, parece, terão vindo de Tavira, do Posto Agrário, e eram mandados para Lisboa às segundas, quartas e sextas. Os botões que estivessem completamente floridos eram cortados pelo pé, colocados em cestas de cana e enviados no camião que vinha desde Vila Real de Santo António e que depois seguia para o Mercado da Ribeira, em Lisboa, contou há pouco Guilhermina Martins Madeira, outra heroína do caso – e do acaso. Nascida em 1946, aluna da escola de regentes agrícola de Santarém, Guilhermina começou a estagiar no Posto Agrário de Tavira em 1967, sob orientação de José Francisco Pereira de Assunção, e aí permaneceu até 1974 (cf. Ignacio García Pereda, O Posto Agrário de Tavira (1926-1974). Um novo desenvolvimento no contexto agrícola regional e nacional, policop., 2022, p. 123). Ao contrário da história de Celeste Caeiro, mil vezes relatada, a de Guilhermina Madeira só há pouco viu a luz, graças à notável reportagem de Mara Gonçalves, “Cravos de Tavira, o último «segredo de Abril»”, no Público, de 20/4/2024.
A revolução foi numa quinta-feira e, na semana seguinte, logo na segunda-feira, Guilhermina foi chamada às pressas gabinete do engenheiro José Pereira da Assunção. De Lisboa, o senhor Laranjeira, o despachante alfandegário que importava os alporques dos craveiros de Cap d’Antibes, no sul de França, e que era também distribuidor de frutos e de flores no Mercado da Ribeira, ligara com grande urgência, pedindo o máximo de cravos. Dissera que “ele é que fornecia os cravos que foram vendidos no 25 de Abril no Rossio” e pedia que lhe mandassem tudo o que havia nas estufas, pois as floristas de Lisboa tinham “muita encomenda” nas vésperas do 1 de Maio, quarta-feira. Guilhermina sugeriu que adiassem o envio dos cravos para terça-feira, para terem uma colheita de dois dias. Em conformidade, “apanharam tudo e mais alguma coisa” e Guilhermina “ainda se viu grega com o pessoal de Tavira”, a quem recusou vender cravos.
“Foram cravos como podiam ter sido tulipas ou gladíolos. Podia ter sido coisa diferente. Foi aquela.” Uma vez mais, o acaso, numa história tão fértil deles. Vindos de Tavira, os cravos podiam não ter sido cravos, antes tulipas ou gladíolos, o senhor Ramos podia não os ter comprado na Ribeira, Celeste podia não os ter levado para casa, e depois não ter oferecido um ao soldado, e este podia não o ter colocado na espingarda. Mas sobretudo, acima de tudo, o que surpreende e desvanece é o gesto, o gesto simples e tão encantadoramente belo, tão grande e tão pequeno, tão grande porque tão pequeno, dos camaradas daquele soldado, ao colocarem também eles os cravos nas suas espingardas, com isso mostrando às forças do regime e ao povo nas ruas que só em última instância iriam fazer fogo porque aquela era uma revolução que se queria pacífica, sem mortos nem feridos. Mais ainda, colocar os cravos nas espingardas foi um acto espontâneo dos soldados, não resultou de uma ordem dos superiores. Se foram os capitães que comandaram as operações, foram os soldados que as ornaram de flores, num gesto de baixo para cima que sinalizou, nesse preciso instante, a passagem de um golpe a uma revolução.
É também possível e legítimo afirmar que, sem as flores nas espingardas, sem esse sinal de paz, o risco de violência teria sido muito maior, talvez mesmo incontrolável, tendo em conta o sucedido com os mortos na Rua António Maria Cardoso e com as acções de «caça aos pides» nas imediações do Chiado. Será ousado e especulativo, sem dúvida, mas não é de todo infundado dizer-se que, muito provavelmente, os cravos salvaram vidas.
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Do seu observatório do Chiado, Celeste Caeiro assistiria ainda a outro grande acontecimento lisboeta, o incêndio que, em 25 de Agosto de 1988, devorou o coração da cidade. Perdeu tudo na tragédia, foi viver para outro lado, um prédio estreito, de escadas íngremes, na freguesia de Santo António (“há mais de um ano está impedida de entrar porque o senhorio mudou a fechadura do prédio por querer aumentar as rendas”, contou a neta à Lusa: cf. Contacto, de 26/4/2024). Com graves problemas de visão, de audição e de locomoção, Celeste continua a residir perto da Avenida, “numa casa a cair aos bocados”, ainda que outras versões assegurem que vive hoje em casa da filha e da neta, em Alcobaça, “com uma reforma que não lhe permite comprar um aparelho auditivo de que precisa, ou uma cadeira de rodas.” Carolina lançou há pouco uma subscrição pública para comprar um aparelho auditivo para a avó e, segundo me informou o meu amigão Pedro Goulão, mestre nessas coisas do Twitter, conseguiu arrecadar a bela quantia de 3.027 euros e, com isso, devolver a escuta à “Celeste dos Cravos.” Ao agradecer aos beneméritos, entre emojis e corações róseos, Carolina terminou dizendo, num grito grato: “O povo unido jamais será vencido!” É um facto.
Depois de reformada, Celeste aderiu ao PCP e continua a seguir a política (nas últimas legislativas, contudo, foi-se deitar mais cedo, com o argumento “não quero assistir mais a esta miséria”). Em 1999, a poetisa campomaiorense Rosa Guerreiro Dias celebrou-a em verso, assim:
És somente portuguesa
Uma mulher em tantas mil
Mas irás ser com certeza
Mulher dos cravos de Abril
Aos 91 anos, e apesar de doente, “Celeste dos Cravos” participou há pouco no desfile dos 50 anos da revolução, como sempre. Em 2022, por ocasião dos 48 anos do 25 de Abril, a filha e a neta contactaram antecipadamente o Exército, que a homenageou, sendo algo exagerada a afirmação da neta, Carolina Caeiro Fontela, segundo a qual a avó nunca foi devidamente louvada (ainda há pouco, foi evocada num programa da SIC, de 25/4/2024, com João Baião). Recentemente, teve lugar de destaque nas comemorações, ao lado dos militares, pela Avenida abaixo. Antes do desfile, a neta, agoirava “não sei se a saúde dela vai permitir e, para isso, era preciso arranjar uma cadeira de rodas, que ainda ninguém nos arranjou, porque nestes anos todos ninguém fez nada pela minha avó”, mas o facto é que lá arranjaram uma cadeira de rodas e tudo correu pelo melhor. Nesse ensejo, porém, Celeste preferiu dar a palavra à neta, que não se cansa de repor a verdade histórica, esclarecendo que, ao contrário do que muitos ainda pensam, os cravos não foram uma oferta de uma florista da Baixa, mas de sua avó. Esta, de seu lado, também já teve oportunidade de dizer que também havia cravos não-rubros, ou melhor, cravos brancos. Poucos, mas havia.
Outra verdade histórica, que a história de Celeste infirma: ao contrário do que muitos pensaram, e porventura ainda pensam, os cravos não vieram de uma conservatória do registo, onde iriam engalanar um casamento adiado pela revolução; como é um mito urbano afirmar que vieram do aeroporto da Portela, onde estavam prestes a ser enviados para o estrangeiro (cf. Avante!, n.º 1.378, de 27/4/2000).
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Por alturas dos 25 anos de Abril, conta a neta, Celeste foi convertida em estrela, entrevistada por tudo quanto era jornal, revista, TV. Em resultado disso, e como andava numa roda-viva, “ficou com um cansaço extremo”, “logo a seguir teve um AVC”, mas, no dia 26 de Abril, já ninguém queria saber dela.
Queixa-se a neta, mais arisca, de que a avó não foi louvada como devia, lamentando “nunca nenhum organismo lhe ter dado o reconhecimento que ela merece, por nunca ninguém ter querido saber o que ela passou na vida.” Enquanto isso, Rui Tavares propunha, no parlamento, que lhe fosse erguida uma estátua em São Bento e, já antes, a vereação do PCP na edilidade lisboeta alvitrou também um monumento e a condecoração com a Medalha de Mérito da Cidade de Lisboa. “Quando já não estiver cá, fica o símbolo”, diz-nos Celeste com ponta de orgulho. Mas fica mais do que o símbolo, fica a memória, a dela e a nossa. E também a lembrança, essa menos risonha e festiva, de que, ao fim de uma vida de canseiras e trabalhos, recebeu uma pensão de 370 euros/mês. Nunca foi possível apurar a identidade do soldado que primeiro colocou o cravo na espingarda.
*Prova de vida (56) faz parte de uma série de perfis