Carlos Fiolhais esteve mais de quatro décadas dedicado ao ensino e à divulgação científica em Portugal.
Carlos Fiolhais esteve mais de quatro décadas dedicado ao ensino e à divulgação científica em Portugal.Maria João Gala / Global Imagens

Carlos Fiolhais: “Com tantas estrelas e planetas, é provável que haja vida noutros locais”

Reformado desde 2021, após várias décadas dedicadas ao ensino, o físico falou com o DN sobre a ciência em Portugal, o 'boom' da IA e as descobertas do telescópio James Webb. E deixa uma convicção: é preciso conhecer o mundo para podermos viver melhor.
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Como vê a ciência no nosso país?
A ciência em Portugal recomenda-se, mas não está bem. A ciência em Portugal precisava de um impulso talvez semelhante àquele que teve com Mariano Gago há praticamente 30 anos, no final do século passado [foi ministro da Ciência em quatro governos: dois de Guterres (1995-1999 e 1999-2002) e dois de José Sócrates (2005-2009 e 2009-2011)].

Ia abordar esse tema mais à frente. Considera que foi a altura mais ambiciosa no que toca à ciência em Portugal?
Nessa altura havia visão. Neste momento, acho que nos falta. Claro que temos ciência, por isso é que digo que se recomenda. A ciência é uma atividade apaixonante que recomendo a todos. Faz parte da nossa relação com o mundo, que temos de conhecer para podermos viver melhor. Mas é tão simples quanto isto: os países mais ricos são aqueles que têm mais ciência. E vive-se melhor quando se conhece melhor o mundo. Conhecendo-o melhor, podemos intervir e estar mais confortáveis nele. Portugal viveu muito tempo afastado da ciência. Sempre se ensinou, mas era uma ciência que vinha de fora. Não se fazia muita, ou fazia-se com dificuldade. Os séculos XIX e XX não foram bons para a ciência. Tivemos uma boa relação com a ciência logo no início, na altura em que nos aventurámos nos mares, por exemplo. Os valores da ciência, da descoberta, de uma relação próxima com o mundo estiveram lá. Mas depois, veio um período de afastamento e o Estado Novo não foi amigo da ciência.

Devido a quê?
Salazar dizia que queria que Portugal fosse uma espécie de pomar da Europa, defendendo a agricultura. Industrializou-se o país já tarde. Agora, a riqueza vem da ciência e não somos suficientemente ricos. Uma grande razão para isso é não ter havido uma aposta suficiente na ciência. Com o 25 de Abril, as coisas mudaram. Passou-se a investir mais na ciência, em particular após a adesão à União Europeia (UE), que tem na aposta da ciência um dos seus valores. Houve, então, a afirmação da ciência através dessa visão que Mariano Gago teve, que defendia um sistema de ciência ligado a todas as disciplinas e que tivesse relações internacionais. Mariano Gago valorizou coisas como a formação de jovens, os doutoramentos. Mobilizou dinheiros da UE para isso. Isso foi um movimento que nos entusiasmou a todos e que projetou o país. Infelizmente, na última década, houve a intervenção da troika [entre 2011 e 2014]. Uma das vítimas foi precisamente a ciência. Tentou-se fazer uma razia no sistema científico e ainda não se recuperou disso. A nossa posição atual é de estagnação, basta olhar para os números. Atualmente, gastamos em ciência 1,7% do PIB. É uma coisa relativamente pequena - e até engana. A contribuição privada - das empresas - é 1%. A parte pública é 0,7%. E parte desse valor vem da Europa, o que significa que o Orçamento de Estado aloca apenas 0,35%. Há um recuo nítido. É isso que plantamos para depois poder colher frutos.  A média da UE é de investimentos de 2,3% do PIB, o que significa que estamos abaixo da média. Há países mais desenvolvidos, como a Alemanha, a Áustria ou a Finlândia que gastam ainda mais: 3%. Infelizmente, o nosso PIB nos últimos 10 anos também não tem crescido. Ainda assim, estamos muito melhor do que há 50 anos, e um pouco melhores do que há 20/30. Temos este drama: a ciência devia ser uma saída para a falta de desenvolvimento, devíamos apostar nela para nos desenvolvermos, e essa aposta deixou de ser feita. Os governantes falam muito em ciência, mas usam-na como uma flor na lapela. Não estão verdadeiramente interessados. Se estivessem, haveria maior convergência com a Europa.

Carlos Fiolhais: "Falta-nos visão [científica] em Portugal. (...) Seja qual for o Governo, precisamos de um sistema de investigação científica e tecnológica que funcione." (Maria João Gala / Global Imagens)

O que é preciso fazer, então?
São precisas várias coisas. Começando pelas empresas: é preciso maior ligação da ciência a este setor. Não pode ser apenas uma coisa fictícia, tem de ser uma coisa real. Para isso, têm de empregar os jovens. Portugal forma 2300 doutorados por ano. É um ritmo bastante razoável, mas já formámos mais no passado. E também aí recuámos por falta de apoio e de bolsas. Os doutorados  nas empresas são uma percentagem pequeníssima. Quase não os há. O número de doutorados nas empresas que mais investem é insignificante e eles têm de encontrar lugar na indústria. É preciso que as empresas sejam verdadeiramente inovadoras, e a primeira medida da inovação está em incorporar a capacidade criativa dos jovens. São pessoas altamente capazes, nas quais é necessário confiar para se poder inovar. E isso não está a acontecer de maneira nenhuma. Podia haver incentivos fiscais para fazer isso, por exemplo. Há algumas coisas anunciadas, mas é tudo muito tímido. O recente relatório da emigração mostra números que nos devem fazer pensar. Temos um grande número de pessoas altamente qualificadas a irem lá para fora. Ou seja: já lhes damos a preparação, investimos neles e depois os outros é que vão beneficiar disso. É também preciso uma grande renovação do sistema de ensino superior, que não está a incorporar essa gente na medida suficiente. Isso é necessário. Basta olhar para a média etária dos professores. Além disso, grande parte da investigação no ensino superior ainda vive daquele sistema de bolsas e de contratos temporários. Precisamos de dar um futuro às pessoas. Damos-lhes bolsas, mas não lhes estamos a dar vidas. Esta não é uma questão individual, é uma questão coletiva. A nossa vida futura depende daquilo que formos capazes de apostar na vida desses jovens altamente capazes que vão para qualquer lado e que são eles que, digamos, fazem alavancar outras economias. Se queremos ser mais ricos, temos, por um lado, de fazer uma ligação melhor à economia. E, por outro, de renovar as universidades, metendo a ciência mais lá dentro, apesar de, num certo modo, ela já lá estar. A maior parte dos investigadores está nas universidades. Mas não temos um sistema de ensino superior como em Espanha, França, até em Inglaterra, com grandes institutos fora das universidades. Não temos universidades suficientemente competitivas porque não fazemos essa aposta em meter lá mais ciência. Se formos ver o ranking de Xangai, que avalia as universidades, estamos muito longe de lugares cimeiros. Entre os top 500, temos duas ou três. É preciso fortalecer as universidades confiando naquilo que é o valor da ciência.

Devia haver uma maior autonomia da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), por exemplo?
As universidades são financiadas pelo número de alunos que entram. Não deve ser assim. Devemos financiá-las também por aquilo que elas são capazes de fazer, em particular, saber que saídas, que prestação é que têm, e não apenas qual o volume de entrada. Era preciso uma energia extra. Mariano Gago fez esse esforço fora das universidades, mas já foi há 30 anos. Ele soube que era preciso montar um sistema, e criou uma série de instituições privadas, sem fins lucrativos: os centros de investigação. A ideia dele era receber mais rapidamente o dinheiro da UE, desta maneira. As universidades eram instituições públicas, não suficientemente ágeis. É também preciso que os cientistas sejam ouvidos, que estejam próximos do sistema de gestão de ciência. A FCT é um meio, mas, neste momento, parece uma repartição do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, quando devia ter mais autonomia. Fundação significa isso. Devia haver participação da comunidade científica, tal como um roteiro de como nos vamos aproximar dos 3% [do PIB] que é a meta europeia até 2030. Devemos apostar nisso e não viver de tapa-buracos, de expedientes, de burocracia. A FCT tem lá gente muito capaz, mas não chega para as encomendas. Era preciso também a própria máquina da administração autonomizar-se, de algum modo. Seja qual for o Governo que saia das eleições, precisamos de um sistema de investigação científica e tecnológica que funcione. Há ainda uma coisa que me faz alguma confusão, que tem a ver com prioridades. Mariano Gago disse que todas as áreas científicas devem ser consideradas. Concordo: devem sê-lo conforme a sua procura. Essa ciência fundamental que Mariano Gago defendeu é muito importante. Mas não me custa nada também pensar em certas potencialidades que temos, para que haja programas temporários de aposta em certos domínios. Portugal tem algumas especificidades, como o mar ou floresta. Fala-se muito nessas riquezas nacionais, mas os programas de investigação não têm estímulos especiais em medida suficiente para aproveitar aquilo que mais nos caracteriza. Claro que há bons exemplos, também não critico. A aposta nas renováveis é uma coisa boa, por exemplo. Temos condições para ter energia solar e eólica. Isso é uma aposta boa. Portugal aí distingue-se até no panorama internacional na questão do aquecimento global. É evidente que há problemas, mas estamos melhor que muitos outros países para fazer essa transição, que veio dos últimos anos e que deve ser louvada.

Ainda em relação ao ensino. Durante a pandemia, Portugal foi dos países com maior número de vacinados. A população aderiu em massa. Considera que somos um país com elevada literacia científica?
Tivemos, de facto, uma ampla participação, que contrasta com aquilo que se passou em países mais desenvolvidos, como a Alemanha e os Estados Unidos, onde houve movimentos anti vacinas mais expressivos. Significa isto que temos um maior nível de cultura científica? Infelizmente, não. A adesão à vacina resulta de outras circunstâncias. Foi uma coisa boa, mas resulta de outros fatores que não a consciência da adesão à ciência. Os portugueses confiam de maneira vaga na ciência, não a conhecem suficientemente bem. Foi escolhido um oficial de Marinha [Gouveia e Melo] para orientar as coisas. Isso fez com que funcionasse, porque os portugueses ainda têm esta confiança na autoridade.

Carlos Fiolhais: "Não devemos ter medo da inteligência artificial. Não tenho dúvidas de que veio para ficar. Mas tem os seus perigos, claro, como qualquer nova ferramenta. Temos de ter consciência disso e utilizá-la bem." (Maria João Gala / Global Imagens)

Falando numa perspetiva mais global, quero focar-me noutra questão: a inteligência artificial (IA). Devemos ter medo dela?
A minha resposta é categórica: não. O medo é sempre paralisante e tem muitas vezes a ver com a ignorância. Uma pessoa que está num quarto escuro, não entra, acende a luz primeiro. E é isso que temos de fazer com a IA. Há que explicar que é uma ferramenta nova. E não tenho dúvidas nenhumas de que veio para ficar. Mas tem os seus perigos, claro, como qualquer nova ferramenta. Temos de ter consciência disso e utilizá-la bem. No Fórum Económico Mundial, em Davos, Bill Gates [fundador da Microsoft] afirmou que, com recurso à IA, os países do terceiro mundo podem vir a desenvolver-se na educação, na saúde, etc., o  que temos de fazer é permitir que os bons possam fazer coisas muito boas, e impedir que os maus façam coisas muito más. É a tal regulação que está atrasada, e que a UE está a tentar fazer. Há desenvolvimentos nos Estados Unidos. E embora se saiba menos, há também um grande avanço na China. A Europa está muito na defensiva. Então, o que é preciso? Explicar, desmistificar o que é a IA. As pessoas usam, mas temos de ver quais são as limitações. Aquilo dá para umas coisas, para outras tem também erros, mas acima de tudo temos de ter cautela. Claro que há muito a melhorar. Temos de olhar com espírito crítico aquilo que vem dessa ferramenta. Fala-se de vários perigos: um é a questão do desemprego. Com certeza vai afetar os empregos, como qualquer tecnologia do passado. A Revolução Industrial afetou os empregos. E ainda bem, porque havia trabalho escravo. Depois, vieram as máquinas elétricas, a seguir a eletrónica. E tudo isso afetou o emprego.

Não se pode embarcar num ludismo 2.0 [movimento de trabalhadores no século XIX que destruía máquinas como forma de protesto]...
Exatamente. Temos de pensar que há novos empregos, uma reforma do trabalho. Mas vai haver certos trabalhos que desaparecem, claro. A figura do portageiro, por exemplo, está a desaparecer. E ainda bem, não fazia sentido meter um humano ali dentro de uma ‘gaiola’, dia e noite, com uma coisa puramente mecânica. Mas as coisas são como são. Vão existir ajustes na sociedade, haverá também profissões a aparecer, claro. Um desafio que temos perante a IA é procurar aquilo que é mais humano. O que envolver mais os afetos, mais inteligência emocional, vai passar a ter uma valorização maior. Para mim, a questão mais grave é a intoxicação. É o facto de poder haver pessoas mal intencionadas que fazem falsificações para desencadear, do outro lado, um certo tipo de reações que, enfim... O mal nunca está na ferramenta em si, está na reação perante aquilo que a ferramenta dá. Por exemplo, estou atento às eleições que acontecem este ano no mundo todo. E pode haver - já houve - interferências nas campanhas, criando a maior confusão. Não sabemos o que é o futuro. Ninguém sabe. Acho que vamos ter de nos adaptar para evitar o pior. Precisamos ter ética, que não está na ciência, nem na tecnologia. Está em nós.

Falámos da importância em conhecermos quem somos e do impacto que isso pode ter. Estamos há coisa de dois anos com o telescópio James Webb a observar o Universo. Estamos mais perto de sabermos de onde viemos?
O telescópio é um instrumento extraordinário e tem-nos dado coisas extraordinárias. Diria até que tem ultrapassado as expectativas. É um instrumento que nos permite ver mais longe, e está a mudar algumas das ideias que tínhamos sobre o período de formação das estrelas e das galáxias, que se calhar são mais antigas do que pensávamos. É ciência que está a chegar, todos os dias há informação nova, analisada por muitos cientistas do espaço. E comunicada também em excelentes imagens. O processo ainda agora começou. Vamos conhecer melhor o próprio universo e estamos muito interessados nisso, em saber o início de tudo. O James Webb utiliza luz infravermelha, não visível aos nossos olhos. Isso vai permitir acrescentar informação até, por exemplo, sobre a composição de atmosferas de planetas fora do Sistema Solar. Estamos interessados em saber se há água e oxigénio, coisas desse género. Há um grande interesse sobre a origem da vida. Sabemos que aqui existe, mas não sabemos se apareceu aqui ou se veio de fora. É uma dúvida enorme da ciência sobre a origem da vida, e por isso estamos muito interessados em procurar outros planetas. A minha opinião, e trata-se apenas de uma convicção, é que deve haver vida fora da Terra, mas não podemos assegurar isso porque não há observações. O Universo é tão grande, tanto quanto sabemos é infinito. Com tantas estrelas, tantos planetas, é bem possível que haja vida noutros locais. Não necessariamente vida inteligente, mas formas de vida bacteriana, por exemplo. Nós somos a parte que compreende o Universo, a maneira que inventou para se compreender a si próprio. Como disse Carl Sagan: “Somos a consciência do Universo.” Devemos-lhe a nossa existência e a nossa sobrevivência é, também ela, um compromisso com o Universo.

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