A esmagadora maioria das vítimas de importunação sexual não se queixa -- quer por não ter noção de que pode queixar-se (não sabe que essa conduta é crime), quer por vergonha e/ou por achar que não vai ser levada a sério. Ainda assim, as denúncias aumentaram muito.
A esmagadora maioria das vítimas de importunação sexual não se queixa -- quer por não ter noção de que pode queixar-se (não sabe que essa conduta é crime), quer por vergonha e/ou por achar que não vai ser levada a sério. Ainda assim, as denúncias aumentaram muito. DR

Assédio sexual: queixas e acusações crescem mais de 80% numa década

Criado em 2007, o crime de importunação sexual passou em 2015 a incluir também assédio verbal. A maioria das vítimas não se queixa, mas inquéritos por este crime quase duplicaram desde 2016 - só 11,6% resultaram em acusação, porém.
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Maria tinha 13 anos em julho de 2020, quando, com uma amiga de 14, passou por António, nove anos mais velho, e o ouviu dizer, para um grupo de homens com quem estava: “Ela dá tesão, não dá ?! Tens um belo cu! Dava-te uma foda!”

Em decisão de 20 de fevereiro de 2024, o Tribunal da Relação de Lisboa condenou António pelo crime de importunação sexual -- uma condenação rara por um tipo criminal que, colocado em 2007 no Código Penal (CP) para punir “atos de caráter exibicionista” e “contactos de natureza sexual”, só desde 2015 passou a punir também aquele que na literatura científica sobre violência contra as mulheres é considerado o crime mais corriqueiro: o chamado “assédio sexual verbal”

Na redação do artigo em causa (o 170º do CP, com pena até um ano de prisão), esse assédio verbal é designado como “propostas de teor sexual”. O que poderão constituir tais propostas o acórdão referido, assinado pelas juízas Ana Cláudia Nogueira, Sandra Ferreira e Maria José Machado, faz pedagogicamente questão de explicar, citando o penalista, ex-juiz do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, Paulo Pinto de Albuquerque: “A formulação de propostas de teor sexual inclui palavras ou sons exprimidos ou comunicados pelo agente, tais como piadas, questões, considerações, exprimidas oralmente ou por escrito, bem como expressões ou comunicações do agente que não envolvam palavras ou sons, com por exemplo, expressões faciais, movimentos com as mãos ou símbolos.”

Trata-se de uma criminalização que, frisam as juízas, “rompe com um status quo de tolerância em relação a um certo estereótipo de comportamento essencialmente masculino culturalmente enraizado, em especial nos países latinos, e que choca com os valores adotados pelas sociedades hodiernas da igualdade de género e da luta contra todas as formas de violência sobre as mulheres. (…) A lei criminal, que espelha o sentir da comunidade em relação aos bens jurídicos que merecem essa proteção mais intensa, é indicativa de que este tipo de condutas, que seria noutros tempos tolerada e desvalorizada, deixou de o ser.”

"[A criminalização do assédio sexual verbal] rompe com um status quo de tolerância em relação a um certo estereótipo de comportamento essencialmente masculino culturalmente enraizado, em especial nos países latinos (...). Este tipo de condutas, que seria noutros tempos tolerada e desvalorizada, deixou de o ser".

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa

Trata-se também de um tipo criminal ao qual pouco se tem dado relevo nas análises sobre a evolução da criminalidade, mesmo se será um daqueles em que se verificou, na última década, um maior aumento de queixas: entre 2016 e 2024 o número de inquéritos quase duplicou, passando de 733 para 1335. É uma subida de 82%, sendo 2023 o ano com mais queixas/inquéritos (1362).

Já as acusações relativas ao mesmo crime, ainda que muito menos numerosas que as denúncias — nestes nove anos, só 11,6% dos inquéritos deram origem a acusação —, aumentaram ainda mais no mesmo período: 86,7% (de 75 em 2016 para 140 em 2024). 

O facto de o tipo criminal de importunação incluir três tipos de atos distintos -- como já referido, além do assédio verbal pune também as condutas que constrangem a contactos físicos de natureza sexual (como os “encostos” nos transportes públicos) e o exibicionismo -- não permite, como sublinhou ao DN a PGR, destrinçar quais são responsáveis pelo notável  aumento de denúncias. Não é assim possível saber se a criminalização das “propostas sexuais” teve ou não peso na evolução constatada. 

“Comia-te toda” não era punido até 2015

Sendo as acusações residuais face às denúncias por este crime, são-no ainda mais as condenações. Talvez pela noção da raridade da sua decisão, as três desembargadoras que condenaram António fizeram questão de explicar o porquê da punibilidade do assédio verbal.

“O conteúdo sexual das expressões dirigidas à ofendida, menor de 13 anos de idade, associado ao vernáculo grosseiro usado para a ela se dirigir, além de a objetificarem sexualmente diante uma plateia masculina, com tudo o que tal representa para a pessoa coisificada, no caso uma adolescente – pela Maria foi expressado esse sentimento de desconforto por se sentir objectificada, sendo que nos dias seguintes deixou de vestir calções e roupas curtas, tendo ficado com medo de se encontrar com o arguido --, não deixam margem para dúvidas quanto à satisfação sexual extraída pelo arguido dessa sua abordagem; é significativa a este propósito e muito visual a expressão ‘ela dá tesão, não dá?’ (…) O facto de o arguido estar em simultâneo a dirigir-se (exibir-se) para um público masculino de jovens com os quais se encontrava, em nada interfere com o exposto, antes reforçando a ilicitude da conduta, também pelo grau de humilhação acrescido assim infligido à vítima”, lê-se no acórdão. “Além disso, mesmo não se tendo provado ter o arguido conhecimento da idade da menor, não podia deixar de saber tratar-se de uma jovem que, deste modo, estava a expor publicamente a uma linguagem vernácula sexualizada reveladora dos seus intuitos libidinosos, desrespeitando a liberdade daquela na forma de se determinar sexualmente.”

"O facto de o arguido estar em simultâneo a dirigir-se (exibir-se) para um público masculino de jovens com os quais se encontrava em nada interfere com o exposto, antes reforçando a ilicitude da conduta, também pelo grau de humilhação acrescido assim infligido à vítima.”

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa

Argumentos que contrastam com os de um outro acórdão, esse da Relação de Coimbra, que em setembro de 2016, já após Portugal ter ratificado a Convenção de Istambul/Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (a qual obriga os estados signatários a punir assédio sexual, e de cuja transposição para o ordenamento jurídico português resultou a adição, em agosto de 2015, do assédio verbal ao tipo criminal de importunação sexual), certificou que as palavras “Estás cada vez melhor! Comia-te toda! És toda boa! Pagavas o que me deves!”, dirigidas a uma mulher, frente à praça de táxis de São Pedro do Sul, não tinham “dignidade penal”. 

Queixando-se pelo crime de injúrias -- o caso ocorreu em julho de 2015, um mês antes de a alteração do tipo criminal de importunação sexual entrar em vigor --, a mulher viu o Ministério Público considerar que a factualidade não justificava acusação e o tribunal recusar levar o caso a julgamento. Decisão apoiada pela Relação de Coimbra -- a mesma que em 2006 não regateara o qualificativo de crime ao epíteto “cromo”

Embora admitindo constituirem as expressões em causa “linguagem grosseira, boçal e ordinária, susceptível de ferir a sensibilidade subjectiva da visada”, o acórdão em causa, do qual foi relator o juiz desembargador Jorge França, conclui que “não atingem o patamar mínimo de dignidade ético-penal apto a fazer intervir o tipo de crime de injúria". 

Isto porque, argumenta a decisão, se “o arguido tece considerações a propósito do aspecto físico da pessoa da assistente, considerando-a portadora de atributos físicos susceptíveis de ocasionarem (no arguido) algumas ideias libidinosas”, não são de molde a causar dano na vítima que justifique a intervenção penal: “Pode a assistente julgar-se melindrada e incomodada com tais expressões? Certamente que sim. Que se possa sentir de algum modo diminuída na auto-estima? Obviamente que não.”

Para proteger “todas as Marias”

Esta ideia, de que não se justifica a intervenção penal nas condutas descritas no crime de importunação sexual, foi defendida pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) de cada vez que lhe foi solicitada opinião sobre o mesmo. Quer aquando da criação do crime, em 2007 -- quando se discutiu a penalização dos contactos de natureza sexual forçados --, quer depois pela inclusão do assédio sexual verbal. 

Em 2007, em parecer, este sindicato reputou de “porventura excessivo” penalizar como crime aquilo que considerava “situações desagradáveis, mas de duvidosa gravidade”, como “os ‘encostos’ nos transportes públicos”, tendo um dos autores do parecer dito ao DN que se trataria de atos em relação aos quais existiria “uma certa aceitação cultural”. Em 2015, novo parecer da ASJP opinava: “Nunca se poderá criminalizar condutas de assédio sexual indesejadas que não ultrapassem a grosseria ou má-educação.”

As críticas da ASJP viriam, de resto, a ser citadas num recurso para o Tribunal Constitucional (TC), no qual um homem condenado por importunação sexual por ter apalpado os seios a uma mulher defendia ser a sua conduta uma “bagatela penal”, invocando o “princípio da intervenção mínima” do Direito Penal. Porém, num acórdão de 2013, o TC deliberou o contrário: “O bem jurídico tutelado pelo tipo legal de crime em causa [a importunação sexual na vertente “constrangimento a contacto sexual”] é inquestionavelmente dotado de dignidade bastante para ser merecedor de tutela penal”.

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Assédio sexual: o crime que juízes desvalorizam e que as juízas dizem sofrer
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Um beijo é um ato sexual? E forçá-lo é crime? Os juízes dividem-se
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Violação vista pelos tribunais: princípio do fim da “coutada do macho ibérico”?
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Piropos já são crime e dão pena de prisão até três anos

Tal certificação de dignidade penal do crime não parece ter surtido grande efeito, já que a esmagadora maioria dos casos que chegam aos tribunais superiores -- e dos quais assim se tem notícia, uma vez que só essas decisões são (e não todas) publicadas na internet -- dizem respeito a menores. Ou até, como foi o caso de Maria, a crianças. 

É que António, dando-se o caso de a vítima ter 13 anos, estando abaixo da chamada “idade do consentimento” (que no ordenamento jurídico português se situa nos 14), começou por ser acusado, e julgado, pelo crime de abuso sexual de criança, tipificado no artigo 171º do CP. 

Isto porque este tipo criminal inclui, punindo-as com pena até três anos de prisão, as condutas descritas no artigo 170º quando perpetradas sobre vítima menor de 14. Foi só porque o tribunal de primeira instância decidiu absolver António desse crime, por ter considerado não provado que este soubesse que Maria tinha menos de 14 anos, que entrou em cena o crime de importunação sexual.

Ainda assim, e apesar de condenado a apenas 100 dias de multa, o arguido recorreu da sentença, considerado que quando muito se limitara a formular um “piropo”. Alegou aliás que os próprio pais de Maria, que vinham atrás dela e assistiram à cena, o tinham, ao depor, desculpabilizado -- o pai qualificando o ocorrido como “uma coisa de rapazes” e a mãe dizendo que António “não teria tido o propósito de ofender”.

Negando que a atuação de António fosse “um piropo” (que, diz, “tem no seu significado comum uma natureza elogiosa, e não contempla qualquer ação de natureza sexual sobre a vítima, ainda como mera possibilidade”), o acórdão vinca que a opinião do pai de Maria em nada relevava para “o juízo objetivo a realizar pelo Tribunal”, mas lembra que aquele “não encarou o sucedido como uma qualquer brincadeira inconsequente, tendo, ao contrário, valorizado essa ocorrência, dizendo não querer ‘que aconteça nada ao rapaz’, mas ‘não quero que a minha filha ou outra rapariga passe pelo mesmo’”. E as três desembargadoras concluem: “Não é a Maria destes autos que a incriminação da importunação sexual pretende proteger, mas todas as ‘Marias’ e pessoas em geral, homens e mulheres, que são sujeitas a este tipo de tratamento tipificado como crime”.

Conhecimento e punição do assédio são deficientes

A eficácia dessa proteção é porém posta em causa pelo Conselho da Europa. Em sucessivos relatórios, o grupo de peritos que tem como função avaliar o cumprimento da já citada Convenção de Istambul tem frisado que a atual formulação do crime de importunação sexual é “particularmente restritiva em comparação com o objetivo do artigo 40º da Convenção, que é o de penalizar com sanções criminais ou outras qualquer conduta sexual verbal, não verbal ou física indesejada pela vítima independentemente de se qualificar como ´exibicionista’ ou como ‘proposta’”.

Os peritos também chamam a atenção para a necessidade de conhecimento sobre o fenómeno para além dos inquéritos sobre assédio sexual no âmbito laboral (desde 2009 que o Código de Trabalho proíbe o assédio sexual, considerando-o uma contraordenação “muito grave”). Mas, excluindo os inquéritos sobre violência de género realizados no âmbito da União Europeia, em Portugal não se conhece qualquer iniciativa nesse sentido.

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"É necessário um inquérito nacional sobre assédio sexual no meio académico"
A esmagadora maioria das vítimas de importunação sexual não se queixa -- quer por não ter noção de que pode queixar-se (não sabe que essa conduta é crime), quer por vergonha e/ou por achar que não vai ser levada a sério. Ainda assim, as denúncias aumentaram muito.
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