Assédio na Faculdade de Direito. “Explosão” de queixas terá incluído “exageros”, admite diretor
O escândalo de alegações de assédio sexual e moral na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa — que rebentou em abril de 2022 e levou o Conselho Pedagógico da instituição a falar em “problemas sérios e reiterados de assédio sexual e moral perpetrados por docentes da faculdade” — não resultou até hoje em quaisquer processos judiciais e deu origem a escassos processos disciplinares que acabaram arquivados. Significa que as dezenas de denúncias anónimas reveladas há quase dois anos e que provocaram certo alarme social não correspondiam a factos passíveis de penalização criminal ou disciplinar por estarem mal fundamentadas ou por serem falsas.
Eduardo Vera-Cruz Pinto — que tomou posse como diretor da faculdade a 28 de dezembro, sucedendo a Paula Vaz Freire, em cujo mandato tinha rebentado o escândalo de assédio na instituição — admitiu esta semana ao DN que a “explosão de casos” em 2022 pode ter incluído “exageros” ou ter sido fruto de guerras internas na instituição.
“Houve uma explosão que talvez tenha combinado exageros e pessoas com sede de protagonismo. É normal, faz parte da sociedade. Apareceram pessoas com protagonismos, umas ficaram na escola e outras saíram, umas mantêm-se com um grau de militância mais atenuado e surgiram outros graus de militância maior. É preciso distinguir militantes e representantes. Os militantes assumem causas, os representantes são eleitos. Por vezes, os eleitos incorporam as causas nos seus projetos eleitorais. É a dinâmica da sociedade”, comentou Eduardo Vera-Cruz Pinto, sem querer apontar nomes.
“Neste momento o ambiente é este: a escola acha que as questões de assédio moral e sexual e outros problemas de abuso devem ser prevenidos. A minha primeira preocupação é a prevenção”, afirmou o diretor, mostrando-se comprometido com a criação de uma “comissão independente” para propor regras e novas práticas relativas a assédio e abuso na faculdade, tal como DN noticiou nesta quinta-feira.
O caso começou com a Associação de Estudantes da Faculdade de Direito, apoiada pelo então professor assistente conviado Miguel Lemos, a promover um inquérito durante 11 dias, entre 14 e 25 de março de 2022. Neste curto espaço de tempo registaram-se 70 queixas, das quais 50 foram consideradas credíveis: 29 de assédio moral e 22 de assédio sexual de professores sobre alunos, sobretudo do sexo feminino, além de denúncias de alegadas práticas de sexismo, xenofobia, racismo e homofobia.
Depois da divulgação do resultado do inquérito, o Conselho Pedagógico da Faculdade de Direito, no qual têm assento 10 professores e 10 alunos, escolheu seis dos seus elementos para redigirem um relatório com base nas queixas, concluindo pela existência de “problemas sérios e reiterados de assédio sexual e moral perpetrados por docentes da faculdade”. O relatório foi remetido ao Ministério Público, que abriu um inquérito. Um ano depois, as queixas foram arquivadas, pelo que nem chegaram a tribunal.
A conclusão do despacho de arquivamento foi noticiada em abril de 2023 pela agência Lusa, que citava uma fonte do gabinete de imprensa da Faculdade de Direito e não o conteúdo do despacho. O DN teve agora acesso ao documento, que data de 23 de novembro de 2022. A procuradora Maria José Magalhães, da 5.ª secção do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, concluiu que “dos autos não resultam quaisquer elementos que permitam a realização de diligências com vista a identificar as vítimas/denunciantes”. Apontou a magistrada que algumas das alegações poderiam revestir-se de “natureza grave e inaceitável”, mas “não se mostra possível prosseguir” a investigação devido à “ausência de identificação das vítimas/ofendidos e da concretização no espaço e no tempo da ocorrência dos factos”. As alegações eram fortes, mas nunca se demonstrou que correspondessem a factos reais.
A adensar a conclusão de que as 50 queixas de abril de 2022 não tinham substância está também o facto de a direção da Faculdade de Direito ter criado nas semanas seguintes um Gabinete de Apoio à Vítima, que esteve a funcionar durante meses sem que qualquer estudante se dirigisse a ele para aconselhamento ou apoio. A faculdade contratou para este gabinete o advogado e antigo bastonário Rogério Alves e a psicóloga Susana Lourenço, nomeados para a tarefa pelas respetivas ordens profissionais. O gabinete está atualmente “em inércia”, segundo a aluna Raquel Oliveira, presidente do Núcleo Feminista da faculdade.
Alunos envolvidos na reivindicação de que o Gabinete de Apoio à Vítima não oferece garantias de confidencialidade, o que terá motivado a falta de adesão, alegam agora que o assédio sexual nunca foi o principal problema, e sim o assédio moral de professores sobre estudantes.
A direção de Paula Vaz Freire criou igualmente um endereço de correio eletrónico (queixas@fd.ulisboa.pt), que recebeu 10 queixas de presmuível assédio nos primeiros meses de funcionamento, mas nenhuma dessas imputações resultou em penalizações para os supostos prevaricadores. “Não há neste momento qualquer processo disciplinar pendente relativo assédio”, disse ao DN o diretor da faculdade.
Foi noticiado que o professor João Freitas Mendes, que supostamente assediava alunas através de redes sociais da internet, pediu para sair da instituição em abril de 2022, e não regressou. O professor Guilherme Waldemar de Oliveira Martins, ex-secretário de Estado das Infraestruturas do primeiro Governo de António Costa, foi denunciado como assediador dois anos antes desta vaga de queixas e teve um processo disciplinar. Sanou o ilícito através de um pedido de desculpas às queixosas, o que de facto aconteceu, segundo várias fontes.
“Temos de encontrar um ponto de equilíbrio, não podemos ficar parados perante estas questões nem podemos ter posições extremadas”, comentou Eduardo Vera-Cruz Pinto. “Ninguém pode dizer que sabe exatamente o que é para fazer. A Faculdade de Direito tem o dever de ouvir as pessoas que consideram errados comportamentos que poderiam ser tolerados há algumas décadas e que hoje não são. Não podemos achar que tudo é ofensivo, mas queremos que os membros da faculdade tenham comportamentos adequados aos valores da sociedade portuguesa atual”.