"As democracias são sempre um trabalho inacabado"
O Conhecimento como Pilar da Democracia é o tema a debate no ciclo de conferências "Desafios da Ciência na Sociedade Contemporânea", organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa. A iniciativa com presença de Alexandre Quintanilha, investigador na área da Física, professor catedrático jubilado, decorre online, via Zoom, amanhã, dia 23, (18h00). O conferencista partilha algumas das reflexões que leva ao encontro.
Na sua intervenção parlamentar de abril deste ano, afirmou que "o maior inimigo da democracia e do conhecimento não é a incerteza, é a mentira". Como avalia a saúde das democracias à luz das suas palavras?
Dois resultados recentes confirmam alguma solidez das democracias, as eleições intercalares nos EUA e as presidenciais no Brasil. Nos EUA, a onda republicana que era anunciada por Trump não se concretizou. Julgo que uma das principais razões foi a enorme motivação das mulheres americanas em resposta à decisão do Supremo Tribunal de Justiça relativamente à reversão da decisão sobre o caso Roe vs Wade respeitante à interrupção voluntária da gravidez. Talvez tão interessante tenha sido o facto de a esmagadora maioria dos candidatos fortemente apoiados por Trump, terem perdido as eleições. O facto de alguns republicanos se quererem afastar de Trump pode ser um sinal positivo, se bem que o seu possível sucessor, o governador da Florida [Ron DeSantis] me pareça ainda mais perigoso. No Brasil, a vitória reconhecida de Lula em eleições altamente participadas, e para já, sem contestação de Bolsonaro, demonstra uma democracia estabelecida nesse país. Mas não podemos ignorar que o mundo ainda está maioritariamente sob o domínio de ditadores e que em muitos países as democracias continuam frágeis. E, que em grande parte essas ditaduras se mantêm baseadas em mentiras, frequentemente disseminadas por meios de comunicação controlados pelos respetivos governos. Como já vários disseram no passado, as democracias são sempre um trabalho inacabado.
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Como podem os governos restabelecer a confiança junto dos cidadãos quando, a montante e, não raras vezes, de forma indeterminada e obscura, a sociedade vive cativa de fake news?
Também muitos já o afirmaram no passado: a confiança leva muito tempo a construir e é extremamente frágil. Não só entre os cidadãos, no seio das famílias, no ambiente de trabalho, mas também entre os cidadãos e os seus representantes políticos. Os níveis de confiança aumentam quando as pessoas percebem que as soluções propostas para os desafios que enfrentam, se baseiam no conhecimento mais aprofundado e robusto de que dispomos. E normalmente exige múltiplos tipos de literacia em vertentes diferentes do conhecimento.
A forma como lidámos com a recente pandemia é disso exemplo?
Neste momento, Portugal é um dos países com níveis mais altos de vacinação contra a covid-19 no mundo. É interessante notar que os negacionistas deixaram de ter voz em Portugal, ou pelo menos deixaram de ter a visibilidade que os meios de comunicação lhes deram no início da pandemia. E, no entanto, ainda sabemos muito pouco sobre os efeitos a longo prazo da covid-19. Mas a maioria da população percebeu rapidamente que os investigadores estavam a trabalhar arduamente para conseguirem obter respostas concretas. E ouviram frequentemente que para muitas das suas perguntas ainda não havia resposta. Mas isso não impediu que percebessem que era necessário que fossem tomadas medidas políticas para lidar com a pandemia e os seus efeitos. Perceberam que a política muitas vezes é forçada a tomar decisões sem ter toda a informação que gostaria de ter. A política não se pode dar a esse "luxo". É a este tipo de literacia a que me referia. Penso que os extensos debates públicos entre os membros do governo, os parlamentares, o Presidente da República e os investigadores durante muitos meses, ajudou a construir essa confiança. Levou tempo e vai continuar a levar tempo.
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Diz-nos que o conhecimento leva tempo, mas a política não tem esse "luxo". Não corremos, nessa perspetiva, o risco de as tomadas de decisão públicas decorrerem mais da urgência e menos do conhecimento?
Sim. E esse risco é tanto maior quanto maior for a "perceção" dessa urgência. Curiosamente são muito mais frequentes os casos em que os diferentes interesses, sobretudo económicos, mas também ideológicos, tentam convencer os cidadãos de que a urgência não é real. Quantas pessoas tiveram de morrer antes que a indústria tabaqueira aceitasse os resultados dos efeitos nocivos do tabaco? E continuam a morrer no denominado "terceiro mundo". Quantas pessoas estão a morrer como resultado das alterações climáticas? Quantas mulheres morrem por esse mundo fora por não terem acesso à interrupção voluntária da gravidez? Curiosamente, enquanto que a maioria dos ecossistemas terrestres e das diferentes espécies animais e vegetais já foram alterados de forma permanente pela nossa necessidade de alimentação, os alimentos OGM, que ainda não mataram ninguém, continuam a ser o alvo das mais variadas ataques, quase sempre baseados naquilo que ainda não sabemos. A forma como cada um de nós lida com o risco é fascinante. A "perceção" que temos dos riscos que enfrentamos depende não só do que sabemos, mas também do que ainda não sabemos. E a nossa vontade de arriscar depende da "visão" que temos do mundo que nos rodeia. Uma "visão" frágil desse mundo, e baixos níveis de confiança, levam-nos a evitar esses riscos, e vice-versa. Neste contexto, vale a pena recordar o velho ditado "quem não arrisca, não petisca".
Uma das questões abordadas por si em momentos anteriores é o "princípio da precaução". Pode exemplificar-nos como esse princípio pode influenciar a implementação de políticas públicas?
Este princípio tem sido invocado quase sempre em relação às "aplicações do novo conhecimento". Considero um princípio importante, relevante e útil. Hoje em dia tem frequentemente a ver com os avanços do conhecimento na área da biologia, mas não só. E surge como resultado da descoberta de experiências feitas em seres humanos, nos EUA, na Inglaterra, na Alemanha, no Japão e vários outros países durante o século passado. Experiências que chocaram o mundo civilizado. O interesse atual por questões de bioética e ética médica é enorme. A virtude de Aristóteles, o dever de Kant e a utilidade de Mill permeiam quase todos os debates. Os ensaios clínicos em humanos são hoje rigorosamente analisados pelas instituições competentes onde o princípio da precaução é um dos critérios dessa análise. Quando olhamos para o universo dos seres vivos percebemos que uma das áreas mais focadas pelo "princípio da precaução" é o da genética e dos genomas. A ideia de que o genoma representa a essência da vida, ou de que é o que define a identidade dos seres vivos, deu origem, como seria de esperar (dada a ênfase que os investigadores lhe deram) a uma "sacralização" desse mesmo genoma. E apesar de sabermos que muitos desses genomas já foram alterados por nós de forma aleatória, a ideia de que possamos vir a modificar ou editar esses mesmos genomas de forma muito mais precisa, fascina e assusta. Atualmente, faz todo o sentido que o "princípio da precaução" seja criteriosamente aplicado quando se trata do genoma humano. Em relação aos nossos alimentos, já não tenho a mesma opinião. Há décadas que muitos alimentos geneticamente modificados são produzidos e consumidos por esse mundo fora e ainda ninguém morreu como resultado do seu consumo. Aliás, a ideia de usar a engenharia genética para aumentar a biodiversidade ainda está em grande parte por explorar.
Defende que a relação das ciências naturais e sociais com as humanidades pode e deve ajudar na construção das políticas públicas. Pode exemplificar?
Esta relação é muito mais frequente do que imaginamos. Mas não é suficientemente valorizada. Em todos os domínios, o conhecimento evolui de forma análoga. Começa sempre com perguntas que refletem a nossa curiosidade. As respostas que damos a essas perguntas dependem da nossa imaginação e capacidade de construir analogias. Acabamos o processo testando essas respostas, o que normalmente dá origem a novas perguntas. E o processo repete-se. As respostas que imaginamos surgem com designações diferentes nos diferentes domínios do conhecimento. A umas chamamos hipóteses (heliocentrismo, tabela periódica dos elementos, eletromagnetismo, evolução biológica, relatividade), a outras chamamos narrativas (liberalismo, comunismo, capitalismo, socialismo, estruturalismo), a outras damos o nome de mitos (paraíso e inferno, a viagem do herói, a queda) e ainda noutras construímos personagens que nos ajudam a perceber não só quem somos, como a riqueza e profundidade do "outro" (Roquentin, Swann, os Joads, Leverkuhn, Moosbrugger, Ana Karenina, Antígona, Lázaro). A forma como as políticas públicas emergem está intimamente ligada a estas "respostas". Textos como Sem Fins Lucrativos de Martha Nussbaum, A Indústria da Felicidade de William Davies, A Tirania do Mérito de Michael Sandel, Uma Breve História da Igualdade de Thomas Piketty, ou ainda A História Esquecida do Liberalismo de Helena Rosenblatt, ilustram amplamente esta constatação. Um exemplo muito claro é a forma como a questão da equidade está a permear todo o debate sobre os efeitos das alterações climáticas.
Siga a conferência aqui:
https://videoconf-colibri.zoom.us/j/92374028924
ID da reunião: 923 7402 8924
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