As correntes do Atlântico podem estar a parar. Tudo por causa do aquecimento global
Uma equipa de climatologistas está em expedição na Antártida. Uma calota polar parte-se e um deles, Jack, quase cai para a morte. É apenas o primeiro de vários eventos climáticos extremos, entre os quais uma série de tornados violentos em Los Angeles. Os Estados Unidos ‘congelam’. As tempestades em todo o hemisfério norte são visíveis da Estação Espacial Internacional. O cenário - fictício - é a base do filme O Dia Depois de Amanhã (realizado por Roland Emmerich, lançado em 2012).
Com as devidas diferenças e com bastante menos violência, alterações semelhantes ao clima podem vir a acontecer a um ritmo relativamente rápido. O motivo: a possível rutura da Corrente Meridional do Atlântico (AMOC). A preocupação é expressada num artigo publicado na revista científica Science, que fez soar os alarmes na comunidade científica.
Ouvido pelo DN, Álvaro Peliz, professor na Faculdade de Ciências de Lisboa (FCUL), que trabalha na área da oceanografia física, explica que a AMOC “é um sistema de circulação”. Ou seja: “há uma zona no Polo Norte, onde a água passa e arrefece. Com isto, mergulha em profundidade, desloca-se para sul e alimenta a corrente”. Isto significa que, com o aumento das temperaturas no planeta, o gelo das calotas derrete. Com isso, há um aumento no nível médio das águas, reduzindo também a salinidade, o que torna a água menos densa. Quanto mais quentes forem as temperaturas do mar e menos densidade houver nas massas de água, menos circulação existirá.
A descoberta desta “espécie de convecção em larga escala” já tem várias décadas, mas “a monitorização a sério” da AMOC “acontece desde 2005”, porque houve indícios de que a circulação estaria, já aí, a abrandar. Desde então já foi “criado um outro sistema de medição, que começou na região polar, por volta de 2014”. “Portanto, as medições são muito recentes. E, além disso, muitas têm uma visão simplificada, baseada apenas na densidade das águas. Só mais recentemente houve alguns a introduzirem os ventos das regiões, que demonstram uma complexidade maior. O sistema é, de facto, mais complexo e tem de ser estudado tendo em conta os modelos do clima e do oceano”, explica o investigador.
Todos os estudos publicados sobre o tema chegam à mesma conclusão: o final da AMOC acontecerá, eventualmente. A única questão é saber quando. O tema será abordado esta segunda-feira, aliás, numa conferência na Sociedade Portuguesa de Geografia.
Clima e biodiversidade podem ser afetados
Caso a AMOC atinja o ponto crítico que leve à sua rutura, isso pode significar, necessariamente, mudanças ao nível do clima.
Fátima Abrantes, paleoceanografa que trabalha no Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), explica que “se tal acontecer, os limites das áreas climáticas mudarão. Isto significa que haverá temperaturas mais frias em zonas mais a sul”. Afinal, a AMOC é responsável - através da união com outras correntes - pelo clima mais temperado em Portugal e nos países mediterrânicos, por exemplo. “Se chegar a esse ponto, a entrada de massas de ar frio acaba por ficar comprometida. Há dados do passado, através de outros estudos, que ilustram situações semelhantes e que mostram que esse pode ser o resultado dessa rutura. No fundo, poderá haver uma diminuição do gradiente térmico [que pode ser definido como a diminuição da temperatura do ar, em geral 0,6ºC a cada 100 metros]”.
As consequências desta rutura podem verificar-se, também, na biodiversidade. No caso português, traduzir-se-á numa mudança das espécies que habitam as águas nacionais. Conforme explica Emanuel Gonçalves, investigador no MARE - Centro de Ciências do Mar e do Ambiente do ISPA e administrador da Fundação Oceano Azul, “haverá uma tropicalização dos mares, com algumas espécies, como as sardinhas, a migrar para os mares mais a norte porque a água ficará mais quente. Em sentido contrário, algumas outras, como determinados tipos de sargos e de corvinas, podem entrar nas nossas águas”. Mas não só: “Isto implica um reajuste também nas espécies invasoras, algo que adiciona fatores de stress nos ecossistemas.”
Na opinião do investigador, o caminho passa por um combate mais forte às alterações climáticas. “Temos alertado várias vezes para o impacto do mar e dos oceanos no clima. Há que ter uma política de descarbonização mais forte, com empenho. E, além disso, é também preciso pensar que as zonas de painéis solares, em terra, e de energia eólica offshore [que coloca pás eólicas ao largo da costa] podem afetar os ecossistemas e a sua colocação deve ser pensada de acordo com isso”. O equilíbrio entre sustentabilidade e preservação da vida selvagem “devem ser coisas que atuam sempre em paralelo e nunca a sobreporem-se uma à outra”, conclui Emanuel Gonçalves.