Anticorpos e novas drogas para cancro: o futuro a acontecer
No liceu era um "barra" a matemática - "eram sempre as minhas melhores notas", recorda Gonçalo Bernardes -, por isso, na hora de ir para a universidade, escolheu o óbvio: matemática aplicada. Mas só chegou a concluir o primeiro ano. Por casualidade, foi assistir a uma conferência sobre o mais banal dos comprimidos, a aspirina, e apercebeu-se, com grande espanto, de que a forma como ele atua no organismo não estava totalmente esclarecida. Nesse dia, o hoje investigador em cancro descobriu que o que queria mesmo era compreender como se formam - e se quebram - as ligações moleculares de que é feita a vida. Mudou para química, e isso definiu o resto da sua vida.
Hoje, passados quase vinte anos, Gonçalo Bernardes dirige um grupo de investigação que se distribui entre dois centros europeus, separados entre si por mais de dois mil quilómetros de distância. Um deles é o Instituto de Medicina Molecular, da Universidade de Lisboa, e o outro é o que tem o seu próprio nome, o GBernardesLab, na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, onde também é professor de química.
É com essa equipa de quase 30 investigadores, todos jovens, provenientes de várias áreas científicas e de diferentes países, incluindo Portugal e Reino Unido, claro, que Gonçalo Bernardes está a desenvolver uma nova geração de terapias para o cancro que nos próximos anos vão contribuir para que ele se transforme cada vez mais numa doença crónica.
Uma das estratégias centrais do grupo é esta: criar anticorpos para os marcadores específicos que existem apenas nas células tumorais e associá-los a drogas muito tóxicas, de forma a obter um efeito máximo sobre o tumor, sem afetar as células saudáveis. O objetivo é que a droga, que entra no organismo ligada ao anticorpo que reconhece as células tumorais, seja libertada exclusivamente nos tecidos do tumor. E o certo é que a equipa de Gonçalo Bernardes já tem resultados muito promissores.
"Já conseguimos desenvolver um destes produtos, desde a bancada até aos ensaios clínicos", conta, satisfeito, o cientista.
O anticorpo desenvolvido pelo seu grupo reconhece um marcador que existe em excesso nos novos vasos sanguíneos gerados durante a progressão de um tumor. Eles são essenciais para que os tumores se desenvolvam e têm uma estrutura diferente da dos vasos sanguíneos normais, com moléculas que também são expressas de maneira diferente. O anticorpo desenvolvido pelo grupo reconhece-as como o seu alvo. "Com ele conseguimos entregar doses significativas de drogas tóxicas apenas no microambiente do tumor, e as células saudáveis não são danificadas", explica o investigador.
A primeira fase dos ensaios clínicos do novo produto, que se centrou nos estudos de toxicidade e de dosagem, já está concluída, e "correu muito bem", conta Gonçalo Bernardes. Não era sequer esse o objetivo, mas "houve respostas muito boas em pacientes em que não estávamos à espera de qualquer tipo de resposta", sublinha.
Agora segue-se, a partir de novembro, ou dezembro, a segunda fase dos ensaios clínicos, que já englobará algumas centenas de doentes, para testar a eficácia do produto, e a equipa está confiante. Se tudo correr bem, e uma vez que o biomarcador das células tumorais que a equipa escolheu como alvo terapêutico é comum a vários tipos de cancros sólidos, como os do cólon, da mama e outros, este anticorpo, associado à droga capaz de os atacar, poderá ser usado nesses tumores.
No fim, nota Gonçalo Bernardes, "o objetivo é ter um impacto positivo na vida dos doentes", que já começam hoje a beneficiar destes e doutros estudos que vários grupos estão a desenvolver a nível internacional.
"Existem atualmente cerca de 50 anticorpos conjugados com drogas em fases avançadas de ensaios clínicos", adianta o cientista do IMM e de Cambridge, para quem não restam dúvidas de que isso se materializará numa "nova geração de tratamentos". Serão os anticorpos conjugados com drogas, em que "há uma máxima eficácia a localizar o tecido tumoral, em que se conhece o mecanismo de ação da droga, o mecanismo da estabilidade do elo que liga o anticorpo à droga após ser injetado, e em que se consegue fazer a modelação desse elo, para que seja quebrado apenas nas células cancerígenas", detalha o investigador.
Será uma segunda geração de anticorpos associados a drogas, na área do cancro, na qual se inscreverá sem dúvida aquele que o grupo de Gonçalo Bernardes já desenvolveu, e outros em que, usando até abordagens diferentes, está neste momento a trabalhar.