Ana Jorge "É muito difícil mexer nos hospitais, mas urgências deveriam ser reorganizadas para dar apoio à periferia"

É pediatra, formou-se no Hospital D. Estefânia e dirigiu o serviço do Garcia de Orta, mas foi presidente da ARS de Lisboa e Vale do Tejo (1997-2000) e ministra da Saúde de dois governos do PS (2008 a 2011). Ao DN fala da sua experiência e do novo plano de reorganização das urgências pediátricas apresentado pela Direção Executiva do SNS, sobre o qual diz: "Poderia ter ido mais longe."

Há 23 anos, quando era presidente da ARS de Lisboa e Vale do Tejo, fez alterações nas urgências pediátricas hospitalares. O que motivou a mudança nessa altura?
Vivíamos também um período muito difícil, com grande procura das urgências pediátricas e já com alguma dificuldade na resposta. Na altura, calculava-se que cerca de 70% das crianças que iam à urgência era por situações de doença aguda, mas muitas vezes nem sequer eram de doença aguda. E pensámos que se reduzíssemos a procura, as equipas dos serviços hospitalares estariam muito mais disponíveis para atender as situações graves. O processo envolveu todos os hospitais com urgências pediátricas em Lisboa, que não eram tantos como agora, e os centros de saúde da respetiva zona. Tinha de ser um processo articulado, e a nossa preocupação foi conseguir que os centros de saúde dessem resposta às situações de doença aguda. A criança seria vista nos cuidados primários e só no caso de a situação ultrapassar as competências destes é que era reencaminhada para o hospital. Tínhamos uma espécie de Via Verde.

Foi nesta altura que foi lançada a Linha Dói Dói, Trim Trim, uma linha de atendimento telefónico de rastreio direcionada só para as crianças?
Foi, no dia 8 de março de 2000 e funcionava em simultâneo com a referenciação direta dos centros de saúde para os hospitais. Foi a primeira linha telefónica a funcionar com um algoritmo adaptado à população portuguesa. O atendimento era feito por enfermeiros com formação específica, que rastreavam as situações e orientavam as pessoas no caso de a situação poder ser tratada em casa ou se deveria ir ao centro de saúde ou ao hospital.

Era uma espécie de Linha SNS24?
Foi a Linha Dói Dói, Trim Trim (que tinha o número 808 24 24 00) que, anos mais tarde, passou a ser a Linha Saúde 24. Deixou de ser só para crianças e passou a abranger toda a população.

Mas como resultou a mudança? Foi bem aceite ou teve resistências?
Houve resistências. Acho que a reação maior veio dos hospitais, porque os centros de saúde organizaram-se e os pais aceitaram a referenciação e até começaram a ligar para a Linha Dói Dói, TrimTrim. Na altura, foi feita uma grande campanha de informação e, ao fim de dois a três meses, a procura das urgências hospitalares tinha reduzido bastante, houve locais em que diminuiu cerca de 50%.

Como é que os centros de saúde davam resposta?
Ficavam abertos até mais tarde, e quando um centro de saúde está aberto e dá resposta até determinada hora, como até às 22:00 ou 24:00, era variável em função da zona residencial, os pais não procuravam tanto os hospitais. Todos sabemos que a procura do serviço de urgência pediátrico se faz, fundamentalmente, após a saída dos colégios e ao princípio da noite até às 24:00, o que é normal, porque ter uma criança doente à noite é sempre um fator angustiante. Basta uma criança ter febre, às vezes não é mais do que uma simples infeção viral, para os pais ficarem preocupados, e quem tem uma criança doente não pode estar muito tempo à espera. A febre na criança, principalmente nos pequeninos, também não pode esperar muito, há que a baixar, enquanto o adulto tem outro tipo de tempo. Portanto, os centros de saúde organizaram-se, fizeram-se protocolos entre hospitais e centros de saúde para observação e tratamento de algumas doenças ditas banais - por exemplo, quando uma criança aparece com febre ou com dificuldade respiratória o que se faz em primeiro lugar? E os centros de saúde responderam. Foram equipados com aparelhos de aerossóis iguais aos dos hospitais, para poderem fazer o primeiro tratamento. Se não conseguiam resolver a situação enviavam a informação ao hospital da zona e a criança era vista de imediato, não ficava na sala de espera. Por outro lado, e em relação aos pais das crianças que não ligavam para a Linha Dói Dói, Trim Trim ou que não iam primeiro ao centro saúde, mas diretamente aos hospitais, estava definido que fosse feita uma observação sumária da criança para se perceber se havia alguma gravidade ou não, se não havia a criança era reencaminhada para uma consulta no dia seguinte no centro de saúde.

E isso funcionou?
Nem sempre, esta é a questão a que os hospitais mais resistiram. Nalguns sítios fez-se, noutros não, embora na altura as equipas estivessem organizadas de forma estruturada, com profissionais de vários graus de diferenciação, e com vários profissionais com muita experiência o que permitia assumir este tipo de intervenção, mas houve sempre equipas que tinham receio de alguma situação mais complicada não ser identificada e acabavam por não referenciar a criança para os centros de saúde.

Os médicos de Medicina Geral e Familiar têm preparação, e deveriam mantê-la viva e atualizada, para cuidar das crianças.

Quer dizer que foi um modelo que também não durou muito tempo?
Foi um modelo que entrou em vigor a 8 de março de 2000 e que foi caindo aos poucos, nunca teve um fim oficial. Eu saí da ARS de Lisboa no final de 2008, voltei ao meu hospital, em Almada, ao fim de uns meses assumi a direção do serviço de pediatria, e o hospital manteve sempre este funcionamento. Havia uma grande ligação à Linha Dói Dói,Trim Trim e de grande proximidade com os centros de saúde, o que é muito importante. Havia uma relação de confiança entre os profissionais do hospital e dos centros de saúde, sabíamos quem eram os médicos de família da maior parte das pessoas que iam à urgência, o que dava uma maior confiança aos pais e permitia resolver melhor as situações ou reencaminhá-las. Mas o modelo foi caindo pela resistência de alguns serviços hospitalares, e o pior foi quando a linha Dói Dói, Trim Trim foi integrada na Linha Saúde24. Perdeu-se a relação de proximidade com os pais.

As urgências continuam cheias e há quem defenda o regresso dos pediatras aos centros de saúde. Concorda?
Hoje os hospitais estão mais próximos das pessoas e esta facilidade também gera mais procura. Quanto à ideia de que os centros de saúde deveriam ter pediatras, eu diria que, neste momento, não há nenhuma razão objetiva para defender essa solução. Os médicos de Medicina Geral e Familiar têm preparação, e deveriam mantê-la viva e atualizada, para cuidar das crianças. Se a criança não tem uma doença crónica ou outra de natureza que não seja dita normal, deverá ser acompanhada pelo médico de família, porque nos hospitais devemos atender as situações com grande complexidade. Por exemplo, o que fazíamos em Almada, entre o Garcia de Orta e os centros de saúde da zona, era o correto. Os centros de saúde só drenavam para o hospital quando se justificava, mas tínhamos reuniões e acertos periódicos sobre como avaliar e observar as situações. O que pode ser feito, eventualmente, é envolver os médicos pediatras em processos de consultoria nos centros de saúde, para darem apoio às unidades da sua área às crianças com doenças crónicas e com outros problemas. Já houve um tempo em que isso aconteceu.

Passaram 23 anos e parece que nada mudou. O que se pode fazer?
Há 23 anos tentou-se uma reorganização, mas quando estive no ministério, entre 2008 e 2011, também se tentou nova reorganização das urgências na Grande Lisboa, mas é difícil mexer no funcionamento de grandes hospitais.

Porquê?
Em Lisboa há dois serviços pediátricos centrais, o do Santa Maria, integrado no Centro Hospitalar Lisboa Norte, e o do hospital da Estefânia, dentro do Centro Hospitalar Lisboa Central. São ambos hospitais polivalentes e diferenciados, porque têm cuidados intensivos pediátricos e as outras unidades à volta não, e porque, no caso de Santa Maria, é um centro de tratamento de trauma, quando há uma situação destas é para lá que o INEM leva a criança. E isto tem de funcionar sempre assim. Quando estava no ministério foi posta em cima da mesa a questão de haver duas urgências polivalentes de porta aberta à noite sobretudo para tratar situações banais, porque uma coisa são os cuidados intensivos que têm equipas especializadas e que têm de funcionar a tempo inteiro e estar disponíveis, mesmo que não tenham lá doentes, outra é poder reorganizar-se duas urgências como estas, dentro da cidade de Lisboa tendo em conta que a maioria das situações que recebem são banais. Por isso, quando olhei para o mapa de reorganização agora apresentado (pela Direção Executiva do SNS) achei que poderia ter ido um pouco mais longe nesse sentido.

É muito difícil mexer nas grandes estruturas hospitalares, que se chamam Lisboa Norte e Lisboa Central, mas, eventualmente, poderia pensar-se numa forma de estas duas urgências funcionarem alternadamente durante o período noturno".

Em que sentido concretamente?
No sentido de se repensar as urgências dentro de Lisboa. Por exemplo, São Francisco Xavier já não tem urgência noturna há muitos anos, mas é muito complexo e muito difícil mexer nas grandes estruturas hospitalares, que se chamam Lisboa Norte e Lisboa Central, porque são dois hospitais polivalentes e porque estão acoplados a duas faculdades, e temos de pensar na formação dos profissionais, mas, eventualmente, poderia pensar-se numa forma de estas duas urgências funcionarem alternadamente durante o período noturno. Numa semana um hospital, noutra semana outro, isto iria reduzir a atividade noturna dos profissionais, nomeadamente médicos já que os maiores constrangimentos nas escalas têm a ver com estes profissionais.

Mas o plano agora apresentado mantém em funcionamento as 24 horas, 11 dos 14 serviços na região. Fecham 3 à noite (São Francisco Xavier, que já fechava, Loures e Torres Vedras). Isto justifica-se?
Provavelmente não, o que me preocupa neste plano é olhar para Loures e ver que fecha à noite e que o corredor da Zona Oeste não tem uma única urgência aberta das Caldas da Rainha até Lisboa ou até Vila Franca de Xira. No Oeste temos uma zona norte e uma zona sul. A zona norte tem as Caldas da Rainha, onde chega com alguma facilidade, mas quem está na zona sul, não tendo Torres Vedras deveria ter Loures, onde chegaria em 15 minutos. Loures é um ponto crucial entre as Caldas e Lisboa, o próprio serviço tem condições que o serviço de pediatria de Torres não tem e uma área com muita população jovem e com filhos. E não é funcional pensar-se em enviar as pessoas de Torres para Vila Franca, quem conhece a região sabe que isso não é solução, mas é preciso uma alternativa para a tranquilidade das populações.

E justifica-se três urgências abertas 24 horas na Margem Sul?
Pois. Almada e Setúbal ficam na mesma linha direta e é rápido chegarem a um lado ou ao outro. O problema aqui é o Barreiro, embora esteja perto de Setúbal o acesso é mais difícil. O hospital de Almada tem uma diferenciação maior do ponto de vista da pediatria, que os outros dois não têm e faz de tampão à vinda de casos para Lisboa. Esta é uma realidade. Mas é preciso pensarmos que o fecho de urgências, além das questões técnicas, também coloca questões político-sociais, mais do que de política partidária.

O que me preocupa mais neste plano é Loures estar fechado à noite. Portanto, tentava reorganizar as urgências da cidade de Lisboa para manter Loures a funcionar à noite à custa das equipas de Lisboa.

Então, qual é a solução?
Como disse, o que me preocupa mais neste plano é Loures estar fechado à noite. Portanto, tentava reorganizar as urgências da cidade de Lisboa para manter Loures a funcionar à noite à custa das equipas de Lisboa. É muito difícil fazer isto. Eu sei. Até porque há regras para a mobilização dos profissionais, mas neste momento fazia todo o sentido repensar as urgências de Lisboa à noite para reforçar a periferia. Por exemplo, São Francisco Xavier já fecha à noite e a equipa faz serviço no D. Estefânia é um modelo que pode ser usado noutro local, até entre Loures e Vila Franca. Mas é muito importante que se pense em respostas alternativas para não haver procura hospitalar, porque, como costumo dizer, em pediatria não há falsas urgências, uma criança não pode esperar muito tempo, e as respostas têm de ser pensadas de acordo com as necessidades. Tem de ser uma resposta de proximidade, portanto nestas zonas os centros de saúde não podem fechar às 18:00 nem às 20:00. Não têm de ser todos, mas tem de haver alguns a funcionar até às 22:00 ou 24:00. É preciso pensar nos pais que trabalham, por exemplo, em Lisboa e vivem no concelho de Loures. Chegam a casa às 20:00 ou às 21:00, se têm o filho com febre já não têm onde ir senão ao hospital. E o que os pais querem é saber se no dia seguinte podem levar o filho à escola ou se não podem ir trabalhar. Portanto, há aqui questões que têm de ser analisadas deste ponto de vista de política social.

Numa reorganização das urgências há sempre pressão autárquica. Já foi ministra da Saúde é muto difícil gerir uma decisão destas? É possível manter uma urgência aberta em cada concelho para os autarcas ficarem contentes?

Não, não é possível. Tem de haver diálogo com os autarcas, porque eles estão a defender a sua população. Da experiência que tive no Ministério da Saúde é possível dialogar com os autarcas de forma a que população também perceba o que são as necessidades. Também é preciso que percebam que não se faz omeletes sem ovos. Não basta reivindicar, porque se não há meios não é possível fazer. Em Portugal, há um problema, valorizamos demasiado os hospitais como resposta em cuidados de saúde e isto exige um trabalho que tem de ser feito, nomeadamente com os autarcas e com as populações para entenderem as mudanças Por isto digo também que a reforma das urgências hospitalares não pode ser feita sem se pensar nos cuidados primários. É importante olhar-se para a floresta e tentar reorganizá-la de forma integrada. A manta é curta e se puxamos de um lado destapa-se do outro.

Por fim, ao fim destes anos todos como olha para a especialidade e para a saída de cada vez mais pediatras do SNS?
Ainda há muita procura pela especialidade, mas a fuga dos hospitais do SNS tem a ver com o facto de a pediatria no setor privado ser muito mais tranquila e bem paga. As doenças graves são tratadas nos hospitais públicos, a responsabilidade, o empenhamento e o envolvimento é muito grande e é muito duro. E, hoje, as pessoas fazem opções de vida profissionais e pessoais que é uma vida sem urgências, sem trabalho noturno, no Natal, Ano Novo ou Páscoa - falo destas datas porque são emblemáticas. Portanto, a medicina privada é muito aliciante e dá qualidade de vida e é preciso melhorar e valorizar as carreiras. A carreira como eu a vivi já não tem nada a ver com a carreira que os médicos mais jovens desejam. Tem de se discutir com eles, perceber o que é a carreira para eles e fomentar o gosto pelo trabalho e pelo serviço público. Quando se acaba a especialidade sabe-se tudo o que vem nos livros, mas falta a experiência e o trabalho de equipa. Portanto, é preciso valorizar este trabalho, que tem sido progressivamente desvalorizado. Isto é fundamental para uma boa qualidade da medicina e para a satisfação pessoal.

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