Ana Ferreira oordenou o projeto UPFLOW, implicado no estudo da formação de sismos e vulcões no interior da Terra.
Ana Ferreira oordenou o projeto UPFLOW, implicado no estudo da formação de sismos e vulcões no interior da Terra.

Ana Ferreira: “A música e a sismologia têm muitas semelhanças”

“Sismos – onde a ciência encontra a sociedade” intitula o ciclo de conferências da Academia das Ciências de Lisboa que propõe o debate alargado sobre este fenómeno com grande impacto social. O primeiro encontro, online e de acesso livre, decorre hoje. Oportunidade para conversarmos com a sismóloga Ana Ferreira.
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A madrugada de 26 de agosto último reacendeu o debate em torno de um fenómeno moderadamente frequente no território português. O sismo de magnitude 5.3 na escala de Richter e com epicentro a 60 km a oeste de Sines, não causou danos materiais ou pessoais, mas abalou muitas certezas sobre a natureza, intensidade e perigosidade destes fenómenos. O Instituto Português do Mar e da Atmosfera informou posteriormente “tratar-se do 10.º maior sismo ocorrido desde o século XVI”.

Sismos recentes de grande impacto têm ocorrido na Turquia e noutras zonas da Europa e do Mundo. Nos próximos meses, o Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa (ACL) convida todos os interessados a juntarem-se-lhe num ciclo de conferências online, de acesso livre e gratuito, subordinado ao tema “Sismos – onde a ciência encontra a sociedade”. Os encontros, a decorrerem sempre à quarta-feira, entre as 18.00 e as 19.30 na plataforma Zoom, pretendem, de acordo com a entidade promotora, “chamar a atenção sobre os progressos científicos e tecnológicos dos últimos anos, confrontando-os, nomeadamente, com práticas diárias do mundo da construção. Não menos importante é o conhecimento de medidas de atuação por parte da população que lhe permitam prevenir para a eventualidade de ocorrência e reagir em caso de emergência”. 

As conferências coordenadas por membros da ACL (Carlos Sousa Oliveira, Miguel Miranda e Maria Salomé Pais) vão abordar com particular detalhe a importância das políticas públicas de atuação imediata em situações de catástrofe de modo a reduzir, tanto quanto possível, a gravidade das perdas humanas e materiais.

Todas as conferências “contarão com a presença de especialistas conceituados que nos transmitirão os avanços recentes nas diferentes temáticas desta área. Por isso, constituirá uma oportunidade de transmissão de conhecimento rigoroso sobre a matéria, permitindo aumentar a literacia na Sociedade portuguesa e contribuir para o conhecimento de medidas preventivas e de reação em caso de catástrofe”, sublinha a ACL na página que anuncia os trabalhos.

A culminar o ciclo de conferências, a ACL propõe-se organizar um dia de portas abertas, a 9 de novembro, momento para a exibição do filme sobre o Terramoto de 1775: O Melhor dos Mundos, seguido da conferência: “Recuperação e identificação de vítimas em contextos de catástrofe”. Um dia que vai privilegiar visitas guiadas ao edifício da ACL, nomeadamente ao Museu Maynense (área do terramoto de 1755) e sepulturas no claustro.

O ciclo “Sismos – onde a ciência encontra a sociedade” tem o seu primeiro momento a 2 de outubro com a presença da sismóloga Ana Ferreira, professora catedrática na University College London (UCL), instituição onde é docente desde 2013. Ali dirige uma equipa de investigação em sismologia global. A especialista vai subordinar a sua intervenção ao tema “Sondando o interior da Terra”. Oportunidade para conversarmos com a investigadora que coordenou o projeto UPFLOW, implicado no estudo da formação de sismos e vulcões no interior da Terra. 

A sua intervenção no Ciclo organizado pela Academia das Ciências de Lisboa detém-se no tema “Sondando o interior da Terra”. Quer, brevemente, indicar-nos como vai contextualizar esta abordagem?

Nos últimos anos houve um aumento fenomenal da quantidade de dados sísmicos disponíveis à escala global do nosso planeta, nomeadamente de dados de fundo oceânico. Proponho-me fazer uma breve apresentação sobre esses dados, os métodos que usamos para estudá-los, o que inclui as técnicas de inteligência artificial, e os resultados muito inovadores que estamos a obter. Esses resultados serão exemplificados através de imagens do interior da Terra, desde a superfície até cerca de 3000 km de profundidade.

O Ciclo “Sismos – Onde a Ciência encontra a Sociedade” tem um objetivo claro: “Pretende chamar a atenção sobre os progressos científicos e tecnológicos dos últimos anos”. Neste sentido, o dos avanços para a ciência, como se enquadra o trabalho que vem a realizar?

Temos desenvolvido novas técnicas para melhorar a qualidade das imagens do interior do nosso planeta, explorando certos aspetos dos dados que tinham sido pouco estudados até recentemente. Recolhemos, também, e pela primeira vez, dados sísmicos de alta qualidade de fundo do mar ao longo de 14 meses na região dos Açores, Madeira e Canárias, sem os quais não é possível um conhecimento aprofundado da geodinâmica da região. Finalmente, temos efetuado trabalho interdisciplinar com várias disciplinas das Ciências da Terra. Esta abordagem é essencial para compreender de forma completa os processos físicos fundamentais no interior do nosso planeta.

Em particular, propõe-se abordar a tomografia global. O leigo está familiarizado com o termo tomografia numa dimensão médica. No seu caso, como nos pode explicar esta tomografia global?

Na verdade, as técnicas que usamos são muito semelhantes às técnicas de imagiologia médica. A diferença principal é que usamos dados sísmicos globais. Assim sendo, somos uma espécie de médicos do planeta para diagnósticos, escutamos o seu pulso e visualizamos o seu interior sem ter de recorrer a cirurgias.

O território continental de Portugal, embora menos ativo que os Açores, enfrenta o risco sísmico. De que forma grandes projetos de sismologia global podem contribuir para a avaliação e mitigação do risco sísmico no nosso país?

A sismologia global não contribui diretamente para a avaliação e mitigação do risco sísmico no nosso país. No entanto, as técnicas que desenvolvemos em tomografia global podem ser adaptadas à escala regional e até local, para construir imagens sísmicas de alta resolução nessas regiões, assim como para compreender os tipos de movimento do solo previstos para futuros sismos. Já fizemos esse tipo de análise no Chile, a qual funcionou muito bem.

Está ligada ao projeto UPFLOW a decorrer na região dos Açores-Madeira-Canárias. Quer explicar-nos sucintamente do que se trata e de que forma os resultados “terão um grande impacto muito além das regiões de estudo e em todas as Ciências da Terra”? 

Os movimentos ascendentes de rochas do manto, os quais podem dar origem a ilhas vulcânicas, erupções vulcânicas e podem afetar o clima e a vida no nosso planeta, são essencialmente desconhecidos na grande maioria das regiões do nosso planeta. Nesse sentido, esperamos que o que estamos a aprender ao estudar a região dos Açores, Madeira e Canárias seja aplicável a outras regiões com ilhas vulcânicas nos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico. Estes movimentos ascendentes têm muitas implicações em termos de processos geológicos, geodinâmicos, geoquímicos, petrológicos, climáticos e biológicos. Assim sendo, o seu estudo detalhado tem necessariamente implicações para as áreas principais das Ciências da Terra.

Há uma informação interessante que retiramos do site do projeto atrás referido. Estão em contacto com o compositor de jazz e pianista Liam Noble. O que podemos esperar dessa colaboração?

Esperamos construir novas composições musicais com base nos sons das expedições marítimas do projeto UPFLOW e realizar um concerto ao vivo com base nessas composições. Já concorremos a várias fontes de financiamento para esse efeito, para já sem sucesso, mas vamos tentando.

Em momentos anteriores defendeu a importância de envolver a comunidade científica e não-científica nos seus projetos, inclusivamente a associação desta ciência a contextos inesperados. O que nos pode dizer em abono da sismologia que capte a atenção de futuras gerações de investigadores?

O diálogo com o Liam Noble, mas também com outros artistas, nomeadamente a portuguesa Paula Dias, que fez alguns estudos de pintura com base no meu relato das expedições do projeto UPFLOW, são extremamente interessantes, ajudando-me a ver o projeto a partir de perspetivas diferentes e muito criativas. Isto estimula novas ideias e direções. A música e a sismologia têm muitas semelhanças.

Porquê?

Porque os dados sísmicos [sismogramas] são, no fundo, como “canções” ou sons vindos do interior da Terra e podemos analisá-los, por exemplo, com aplicações usadas para identificar músicas. Depois, também trabalhámos com crianças de escolas de cinco países, as quais deram nomes aos 50 instrumentos do projeto UPFLOW. Isto deu-nos um sentido de responsabilidade acrescido para garantir boa qualidade dos dados de todos os instrumentos para evitar desilusões.

O ciclo de conferências “Sismos – onde a ciência encontra a sociedade” prossegue a 9 de outubro (18h00) com o tema “Novas Erupções no Atlântico” e a participação da vulcanóloga Teresa Ferreira.

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