Sociedade
21 março 2023 às 07h02

Carnaval "intercultural" de Santarém mascara crianças de "cigano" e "africano". "Obviamente racista", diz Teresa Beleza

Sendo "interculturalidade" o tema deste ano no Carnaval de Santarém, escolas decidiram mascarar os alunos de "africanos", "ciganos" e "chineses". Uma mãe que objetou e apresentou queixa à Comissão contra a Discriminação acabou destratada em reunião de Câmara. "Insensibilidade e ignorância", comenta a coordenadora do Observatório contra o Racismo.

Fernanda Câncio

"A escola do meu filhote informou-me por email, em janeiro, de que o meu filho e os restantes da escola teriam que ir mascarados de ciganos para "apoiar" a interculturalidade."

Maria, chamemos-lhe assim - pediu ao jornal para que não a identifiquemos -, tem um filho de quatro anos que frequenta um estabelecimento do ensino pré-escolar pertencente à Santa Casa da Misericórdia de Santarém. A sua reação perante a comunicação recebida, conta ao DN, foi de espanto. "Não me fez qualquer sentido, e decidi que o meu filho não ia participar. Aliás ele nem compreenderia de que era aquele disfarce. Disse isso à educadora e ela disse-me que então ele podia ir "à índio" ou outra coisa que ele quisesse mas preferi que não fosse."

Questionada sobre quais as orientações da escola para a "máscara de cigano", não sabe dizer. "Creio que era como quiséssemos". Os grupos de crianças cujos pais aceitaram a ideia foram, descreve, "todos de preto com colares de ouro e as meninas com saias compridas, por aí." Envia ao DN uma foto do desfile das escolas, ocorrido a 17 de fevereiro, na qual um grupo de crianças se apresenta assim. Se de facto a intenção naquele caso seria a de "representar ciganos" não é possível discernir.

"Isto foi uma coisa de todas as escolas, não foi só a do meu filho", informa esta mãe. "Nas outras eram chineses, africanos e por aí fora. Pelo que percebi foi imposto pela Câmara Municipal."

De facto, no Facebook da autarquia um post colocado após o desfile proclama: "Mais de 2200 crianças das creches, jardins-de-infância e escolas do ensino básico do Concelho desfilaram esta manhã (...). As escolas foram desafiadas a elaborar os trajes carnavalescos, tendo como tema a "Interculturalidade", com o objetivo de dar a conhecer a cultura, o pluralismo e a diversidade cultural ao mesmo [tempo] que promove a convivência e integração de crianças de diferentes nacionalidades e culturas."

Nas fotos que acompanham o post, há grupos de crianças e jovens com caracterizações que incluem caras pintadas de castanho (blackface), assim como cabeleiras "afro" e maquilhagens a imitar olhos orientais. Apesar de uma situação semelhante, ocorrida em 2019 em Matosinhos, ter desencadeado polémica nacional, as escolas de Santarém, como a respetiva autarquia, parecem ter passado à margem desse debate. O que faz alguma confusão a Maria: "Além de achar que o meu filho não perceberia de que era suposto mascará-lo, eu se fosse cigana não ia gostar desta ideia. Não é um disfarce sequer. Não faz mesmo nenhum sentido."

Terá porém havido, assegura, outros pais que como ela objetaram à ideia de mascarar os filhos de "grupos étnicos". Mónica, mãe de um menino de quatro anos a frequentar a mesma instituição, corrobora: "Perguntámos o que se queria passar com a imagem de cigano, qual o objetivo. Porque achamos que se queremos ser inclusivos, devemos respeitar os outros e não caricaturar... Passadas duas semanas, recebemos outro email a dizer que como havia desconforto dos pais e objeções, a escola tinha decidido que cabia aos pais decidir como queriam vestir os filhos." Conclui: "Este Carnaval criou desconforto em muita gente."

Contactada pelo DN, a Santa Casa da Misericórdia da cidade admite isso mesmo: "As/Os Profissionais da Misericórdia escolheram inicialmente como tema "A Comunidade Cigana", no sentido da abertura a um melhor conhecimento dos costumes e manifestações culturais da mesma. Ao percebermos que o tema gerava algumas questões a Encarregados de Educação e que a nossa ação poderia ser descontextualizada, informámos os mesmos que deixávamos ao seu critério os trajes que entendessem, e respeitassem o tema sugerido pela Autarquia, a Interculturalidade. (...) Não existe qualquer tipo de discriminação, nem nunca existiu, na nossa ação. (...) Ao longo dos anos sempre fizemos e fazemos parte de Programas e Projetos que visam a Igualdade e a Inclusão."

A SCM não quis, no entanto, esclarecer se houve crianças daquela escola a participar no desfile "mascaradas de ciganas" e, nesse caso, como foram vestidas e caracterizadas. Do mesmo modo, as perguntas "pensaram na hipótese de haver crianças ciganas entre aquelas que deveriam assim ser "mascaradas"?" e "consideram que a proposta efetuada de uma "máscara de cigano" se coaduna com os princípios constitucionalmente consagrados de igualdade e não discriminação em função da etnia? Se sim, como?" ficaram sem resposta.

A mesma perplexidade manifestada por Maria e Mónica assaltou Rita, mãe de um rapaz de oito anos que frequenta uma escola pública da cidade, quando, durante uma reunião de pais no início de fevereiro, ouviu o anúncio de que os alunos deveriam mascarar-se de "africanos".

"A professora disse que o tema do desfile, escolhido pela autarquia, era "interculturalidade", que cada escola decidia como o representar, e que o decidido naquela era representar a "cultura africana". Então as crianças iam vestir uma saia de palha, pintar a cara e usar collants e camisolas escuros", conta esta munícipe escalabitana. "Fiquei estupefacta. Levantei-me e com toda a calma e educação disse à professora, de quem aliás gosto muito, "desculpe mas sinto-me desconfortável com isto". E ela: "Qual é o seu problema?""

Em resposta, Rita, que é antropóloga de formação, explicou que "não existe "cultura africana", que África é um continente enorme, tem imensas culturas, e decerto não faz sentido nenhum reduzi-las a uma saia de palha, e que considerava aquela uma forma estereotipada e racista de representar outras culturas/povos - isto para não falar da questão do black face [pintar a cara de escuro para representar negros é considerada uma prática racista]. Acrescentei que o meu filho não iria participar naquilo. Mas a professora disse "decidimos, está feito, já estão a ser feitas as saias de palha" E sugeriu que enviasse um email para a direção com as minhas objeções."

A reação da assembleia face ao diálogo, descreve esta encarregada de educação, foi de silêncio e embaraço - "Não sei se por causa da proposta da escola ou pela minha intervenção". Com uma exceção: "Uma das senhoras disse "não vejo onde está o problema. O problema era se fossem com peles como os homens primitivos."

Parêntesis: como se constata no vídeo do desfile ocorrido na terça-feira de Carnaval, patente no Facebook do município, houve um grupo de jovens e crianças ostentando exatamente essa representação da "cultura africana": vestes imitando peles de animais e "ossos" no cabelo à Flintstones, para além dos já citados collants e camisolas escuros e blackface.

Mais um parêntesis: "Desconstrução de estereótipos" é precisamente a primeira alínea do Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025 / Portugal contra o racismo, aprovado em julho de 2021 pelo governo, e do qual fazem parte várias ações junto das comunidades escolares, assim como a publicação de um Guia de recomendações para a prevenção e combate à discriminação nas escola. Guia que esta terça-feira, Dia Nacional e Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, é apresentado pelo governo. No guia, a questão dos estereótipos é abordada na página 31, sob o mote: "E eu, professor/a, o que posso fazer com os meus alunos e alunas?"

Duas das respostas à pergunta são "Que preconceitos posso ter e que estereótipos posso estar a reproduzir junto dos meus alunos e alunas, sobre pessoas de determinados grupos étnicos, culturais ou religiosos?"; "Estar atento/a e identificar estereótipos no currículo e/ou imagens e representações de papéis estereotipados nos manuais escolares." Mais à frente, lê-se outra obrigação dos docentes: "Informar-me sobre o tema do racismo, por forma a obter argumentos e ferramentas para a sua prevenção e o seu combate."

O guia não apresenta qualquer exemplificação desses estereótipos, aparentemente partindo do princípio de que as escolas estão capacitadas para os identificar e combater.

Essa falta de capacitação e de informação por parte da escola e do agrupamento de que esta faz parte foi um dos pontos do email que Rita lhes enviou na sequência daquela reunião. Frisando não acreditar que houvesse má intenção na proposta, apenas uma atitude "pouco refletida", repetiu os seus argumentos: "Representar populações africanas de forma caricaturada cria estereótipos negativos sobre as comunidades negras e racializadas. Tais práticas não são consentâneas com uma escola inclusiva e empenhada em educar cidadãos para o século XX." Lembrou ainda que a escola Sá da Bandeira, sede do agrupamento, "é uma escola associada da UNESCO desde 1994", pelo que o respetivo projeto pedagógico deve espelhar o manual desta instituição sobre diálogo intercultural.

A resposta, também por email e no dia seguinte, não demonstrou qualquer apetência para refletir sobre estereótipos e sua reprodução. Pelo contrário: informava-se que tinham sido convocados os representantes de pais de todas as turmas e a presidente da associação de pais, e se decidira, "por unanimidade", "dar continuidade à atividade nos moldes propostos". Rita foi também convocada para uma reunião, a ter lugar nesse mesmo 10 de fevereiro, com todo o corpo docente, à qual compareceu. Durante duas horas e meia, narra, foi-lhe dito repetidamente, em resposta a tudo o que dizia, que a "atividade nos moldes propostos" era "uma homenagem à cultura africana". Informou então que iria apresentar queixa na Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR).

Ainda nessa noite, a escola envia novo email para os pais, no qual se lê: "Apesar de termos auscultado os representantes dos pais de todas as turmas e de nos terem comunicado seu apoio, foi-nos posteriormente transmitido que não há unanimidade entre todos os pais em relação ao "fato" escolhido para o desfile de Carnaval. Por outro lado, também percebemos que o mesmo não apresenta uma base científica sustentada, podendo suscitar interpretações discriminatórias e diferentes da nossa intenção inicial." A conclusão é de que, face a estes factos, o corpo docente decidira que a escola não ia participar no desfile de 17 de fevereiro, e apenas organizar uma festa no estabelecimento, na qual os alunos se apresentariam com os disfarces que escolhessem.

É sexta-feira, Rita está a jantar em casa com amigos. Na sequência do email da direção da escola, começa a receber mensagens agressivas e até insultuosas no grupo de Whastapp de pais de alunos do qual fazia parte. "Era de "quem se julga" para baixo. O meu filho tinha vindo da escola choroso e agastado porque os miúdos estiveram a chamar nomes à mãe, já estava fragilizada. Foi horrível receber aquelas mensagens. Fiquei muito perturbada." Pouco depois, seria expulsa do grupo.

A decisão da escola de não participar no desfile da cidade viria no entanto a ser revertida. Na segunda-feira 13 de fevereiro, após um comunicado da associação de pais na qual se determina que "não pertence a nenhum encarregado de educação a responsabilidade nem o direito de educar e/ou objetar, quaisquer atividades e conteúdos, em relação aos demais educandos", e, apesar de se afirmar respeito pela "objeção apresentada por uma mãe", se exprime "repúdio veemente" pela "intenção de que essa objeção se constitua como norma para os demais alunos", a escola envia novo email. Neste, anuncia que, na sequência de uma reunião convocada pela associação de pais, afinal iria participar no desfile - mas agora "com uma outra temática". A saber: "no sentido de reaproveitar os adereços já elaborados, optou-se por uma representação alusiva ao Havai".

Rita tem um sorriso na voz: "Foi para aproveitar a saia de palha. É estereótipos em cima de estereótipos." Ainda assim, considerou o assunto encerrado, enviando um email para a CICDR a pedir para arquivarem a queixa, já que a escola desistira das máscaras de "africanos".

A CICDR, no entanto, não arquivou a queixa, como garante ao DN a Alta Comissária para as Migrações, Sónia Pereira. "A Comissão está a acompanhar o caso, tivemos oportunidade de acompanhar esta escola porque houve este alerta. É muito importante que se alimente o questionamento. Procuramos ter uma intervenção pedagógica com as escolas, trabalhar com elas no que respeita a situações relacionadas com estereótipos."

A importância desta intervenção é sublinhada em O lugar da escola na produção e reprodução de racismo e no seu combate, tese de mestrado de 2021 de Joana Simões da Luz Piedade, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. "Os resultados da investigação apontam para a necessidade urgente de desenvolver medidas sistémicas e sistemáticas de combate ao racismo nos sistemas de ensino, que vão para além dos discursos e iniciativas culturalistas (como a música ou os festivais de gastronomia), os quais resultam meramente na exotização das minorias", lê-se neste trabalho académico, que aponta, como exemplo dessa exotização, a festa de Carnaval de Matosinhos, "onde pintaram as caras de preto às crianças mascarando-as, supostamente, de africanas, com o argumento de que seria "uma oportunidade para as crianças terem contacto com outras culturas". O enfoque da diversidade cultural transforma-se demasiadas vezes numa espiral multicultural descendente, terminando esta numa leitura superficial das diferenças e tornando invisíveis as relações de poder, mantendo as normas culturais dominantes onde estão, no campo da sensibilidade cultural adquirida e praticada pelos grupos maioritários."

Confrontada com o facto de em Santarém não se ter tratado apenas da escola em relação à qual foi efetuada a queixa à CICDR, mas de muitas outras, e de não ser a primeira vez que algo assim sucede - significando que as abordagens institucionais não estarão a ser eficazes - a alta comissária Sónia Pereira não dá seguimento à conversa.

Já a coordenadora do recém-criado Observatório contra o Racismo e a Xenofobia, a jurista Teresa Pizarro Beleza, não se exime de qualificar o caso relatado como evidência de "uma séria falta de sensibilidade, de respeito e até talvez de inteligência. Mas é também sinal evidente do nível de incompreensão, que é muito mais comum e generalizado do que muitos supõem ou se dão conta, do caráter provavelmente ofensivo, historicamente explicável, de tais "brincadeiras". Não ocorre, pelos vistos, a essas escolas o sentido obviamente racista desse gesto de "disfarce", provavelmente feito na maior "inocência"? Pois, é por isso mesmo que é preciso perceber de onde vem essa insensibilidade e essa ignorância. E descobrir sobretudo como se podem combater, entendendo as suas raízes, as formas como se reproduzem e transmitem e passam "despercebidas" aos olhos de tanta gente que, suponho, jurará de boa fé não acoitar preconceitos racistas e "até ter amigos de várias cores"."

Uma preocupação - a de "perceber de onde vem essa insensibilidade e essa ignorância" - que claramente não anima o executivo camarário de Santarém. Este, em reunião de 20 de fevereiro, exprimiu a sua indignação face ao ocorrido - mas dirigida a Rita.

Depois de o vereador do Chega, Pedro Frazão, ter lamentado que a escola tivesse "cedido", e chegado mesmo a propor que a encarregada de educação, "se é tão antifascista e tão antirracista e anti não sei mais o quê, deverá tirar o filho dessa escola, porque o edifício é do Estado Novo", o presidente da Câmara, Ricardo Gonçalves, tomou a palavra.

Sem efetuar qualquer referência à atitude desabrida do vereador, este autarca do PSD disse "lamentar sinceramente o que se passou" e achar "um perfeito disparate". Perfeito disparate que terá sido, no entender do social-democrata, a objeção apresentada por Rita: "Não consigo perceber, as crianças... Não lesava em nada, acho que a indução que muitas vezes fazem é que leva a alguns atritos que nem sequer deviam existir. Se a questão é cultural, nós também temos a nossa cultura, e às vezes as mesmas pessoas são também contra aquilo que é nosso, e depois relativamente a outras matérias têm uma exacerbação que não consigo perceber."

Seguiu-se uma intervenção do vereador com o pelouro da Educação, João Leite. Igualmente do PSD, quis ir mais longe que o presidente. "Não consigo qualificar a atitude dessa encarregada de educação. Acho mais do que um disparate. Essa encarregada de educação queria condicionar, com um conceito de liberdade obscuro, um bocadinho estranho e, repito, inqualificável, toda a vida da restante comunidade escolar. Felizmente não conseguiu, houve uma forte indignação por parte dos encarregados de educação."

O DN pediu ao edil de Santarém para explicar o que quis significar com "nossa cultura" e "o que é nosso", e o que entende por "interculturalidade". Até ao fecho deste artigo não houve resposta.

"É tão surreal que uma câmara municipal tenha essa ideia da interculturalidade. Tão absurdo que se tem dificuldade em falar sobre isto. Estou chocada - é o momento em que se procuram palavras." Maria Gil, ativista cigana, atriz, respira fundo.

O que é uma máscara de cigano, pergunta. "A palavra 'rom', de povo rom, quer dizer humano, pessoa humana. Nós somos daqui e estamos aqui. Essa proposta de mascarar as crianças 'de ciganos' coloca as pessoas ciganas no lugar do outro. Diz às crianças ciganas que a escola não é o lugar delas, porque estarão sempre no lugar do outro. É de uma violência, de uma desumanização. E uma irresponsabilidade imensa pôr escolas a fazer uma promoção dessas em nome da interculturalidade."

Pensa no que quereria dizer ao responsável da autarquia, hesita. "Sinceramente, mais do que uma afirmação, era uma questão: como é que em 2023 ele, um presidente de câmara, acha que não nos deve uma explicação? Temos ainda de perder tempo a estar a ensinar-lhe que isto é uma violência? O que queria era que ele me explicasse como é que sujeita cidadãos portugueses a tal violência. Porque tem o dever de estar informado e de prevenir violência. Sobretudo tendo em conta que se trata de formação e de educação de crianças."

Também a escritora e colunista do Público Luísa Semedo, como Maria Gil ativista antirracista, se confessa "parva" com o ocorrido em Santarém.

Imigrante radicada em França, Luísa propõe "imaginar o que seria os franceses mascararem-se de português. Já seria ridículo, não é? Agora imagine-se o que é mascararem-se de um continente. E a nossa cor de pele ser uma máscara. A ideia de que a cor da pele é uma coisa falsa, suja, que vais lavar a seguir. Nem posso imaginar o que é para crianças negras estarem a a assistir a isso."

Suspira. "Como comentar? Ser cigano, ser negro não é uma máscara. Esta ideia de mascarar é a ideia de que o negro é o exterior, o extravagante, o exótico. É um pouco o princípio dos zoos humanos, como se fazia no século XX em exposições imperiais como a do Mundo Português: as pessoas iam ver o espetáculo dos selvagens. E claro que podes ter ainda hoje tribos que se vestem de uma determinada forma. A questão é que isso num desfile de Carnaval é mostrado de forma jocosa - está ali para o riso. Tal como te vestes de palhaço, vestes-te de africano: é a ideia de cómico, de inferioridade, numa caricatura de povos."

A minha etnia não é uma fantasia de Carnaval, escreveu em 2019 no Público Cristiana Xia Wu. Filha de imigrantes chineses, reagiu no texto a imagens do desfile de Carnaval de Marco de Canavezes, com pessoas "aparentemente vestidas de chineses" e empunhando cartazes nos quais se liam frases como "os chineses são espertos, apesar de terem olhos em bico".

Contando que desde que tinha começado a estudar no Reino Unido, e tendo conhecimento das experiências da irmã que estuda nos Estados Unidos, se apercebera de que "Portugal tem um problema muito sério em relação ao racismo", e de que esse racismo "está tão interiorizado que atos que deviam ser considerados como sendo tal, não são. Tudo é considerado uma pura brincadeira", Cristiana exortava: "Temos que acordar a sociedade e promover a consciencialização sobre o racismo que está presente em Portugal. Não vale a pena negar mais."

Foi há quatro anos. No desfile de Santarém, há inúmeras imagens de crianças e adultos "mascarados de chineses". Mais uma vez, a justificação é, além da brincadeira e da folia, aquilo que no discurso da autarquia se refere como "promoção do diálogo intercultural" e forma de combater "as causas e formas de discriminação, racismo e xenofobia".

Luísa Semedo sorri. "Dizem: "Estamos a fazer isso pelo antirracismo". Sentem que há uma necessidade de um discurso que querem antirracista, mas ao mesmo tempo não sabem fazer."

A menção de Ricardo Gonçalves, o presidente da Câmara de Santarém, a uma "nossa cultura" que seria atacada por quem, como aquela encarregada de educaçã, objeta a a "máscaras de africanos" e as considera racistas, surge a esta doutorada em Filosofia pela Sorbonne como ingenuidade. "Deixa-me perplexa que em 2023 seja tudo ainda tão sincero. O senhor está a ser perfeitamente honesto em relação ao que é a cultura do racismo. É a ideia "nós fomos lá para fazer o diálogo entre os povos". O que é a identidade portuguesa para tanta gente? Justamente isso da 'conquista' e do 'dar novos mundos ao mundo'. E depois há essa reação: Eh pá não, qual é o problema? Nós vemos os africanos - ou chineses, ou outro povo - assim, qual é o problema?"

Que tenha havido alguém com coragem para dizer que sim, que é um problema, correndo o risco de represálias sobre si e o seu filho, comove Maria Gil. "Fico muito grata a essa mãe por esse exemplo de justiça e retidão, e espero que tenha retaguarda para esse processo de violência pelo qual está a passar. Ela foi incrível nesse sentido - quis salvaguardar o seu filho, preservá-lo da violência que é aquela ideia. Foi sobretudo uma mãe que defendeu a educação em Portugal. Porque este assunto é de todos, não se pode remeter só para as pessoas racializadas. A causa é de todos e o dever é de todos."

Nota: texto alterado às 14H08 para distinguir os dois desfiles de Carnaval ocorridos em Santarém: o das escolas, a 17 de fevereiro, e o geral, na terça-feira de Carnaval.