Há crianças com suspeita de sofrerem de perturbações do neurodesenvolvimento, como espectros de autismo ou hiperatividade, que não estão a ser aceites para as consultas de diagnóstico no Hospital Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra). A denúncia chega ao DN por fontes da própria Unidade de Local de Saúde, que dizem tratar-se de “uma situação grave”. Até porque, neste momento, as crianças estão sem qualquer resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS).“Foram feitos pedidos de consultas para os hospitais São Francisco Xavier e Santa Maria e a resposta também foi negativa, por a residência das crianças não pertencer às suas áreas.” Basicamente, destacam as mesmas fontes, “estas crianças, sobretudo aquelas cujos pais não têm qualquer possibilidade económica de as poder levar para o setor privado, estão condenadas a não ter um diagnóstico e a não poderem iniciar qualquer terapia”. Segundo explicaram ao DN as mesmas fontes, o acesso à consulta de Desenvolvimento do Hospital Fernando da Fonseca foi restringido no início do an,o por falta de pediatras no serviço. “Saíram dois pediatras da Consulta de Desenvolvimento, ficando só um, e os critérios de acesso foram limitados às crianças com menos de 6 anos e às situações graves na adolescência. Percebe-se que o tenham feito, mas estão a deixar uma quantidade de crianças sem resposta”, destacam.A situação foi confirmada ao DN pela administração da Unidade Local de Saúde Amadora-Sintra (ULSASI), que justifica a redução dos critérios para primeiras consultas com a falta de médicos e a necessidade de atender os casos mais graves. No entanto, argumenta, “estas crianças deveriam ser atendidas noutras unidades com maior capacidade de resposta”.A questão é mesmo esta: “As crianças deixaram de ter resposta no SNS. E o problema é que, para terem um diagnóstico de síndrome de Asperger, de outro espectro de autismo ou de hiperatividade ou défice de atenção (PDHA), têm de ser avaliadas, do ponto de vista neurológico e psicológico, por especialistas de um serviço hospitalar com Consulta de Desenvolvimento. Se não o forem, ficam sem diagnóstico e sem acesso à terapia adequada, ao acompanhamento psicológico de que necessitam e aos apoios a que têm direito.”Quanto ao número concreto de crianças da área do Amadora-Sintra que possam estar nesta situação, as mesmas fontes assumem que não o têm. “Isso exigiria um levantamento em todos os centros de saúde da ULS sobre as situações recusadas.” No entanto, “seja uma, duas, três ou mais, estas crianças necessitam de uma resposta e de um diagnóstico”, reforça quem vive a situação no terreno. Por exemplo, “há umas semanas, foram feitos pedidos, pelo menos, para três a quatro crianças, que foram todos recusados, por não integrarem os novos critérios de acesso. Mas ainda há crianças que foram referenciadas antes da redução dos critérios e que ainda nem receberam resposta para marcação de consulta”. Quem fala ao DN sabe que tudo isto acontece pela “falta de recursos humanos, não só no Amadora-Sintra, mas em todo o SNS na área da Pediatria e do Desenvolvimento. E esta escassez não atinge só médicos, mas outros profissionais, como terapeutas ocupacionais, psicólogos, etc. “O problema dos recursos e do acompanhamento a crianças com perturbações no Desenvolvimento é transversal”, dizem-nos. Na Amadora, “a ausência de consultas toma outra proporção por ser uma zona muito carenciada. Os pais têm muito poucos recursos, o que faz com que não possam procurar alternativas para tratar os filhos”.Se antes o problema para estas crianças era, sobretudo, o tempo de espera por uma consulta de diagnóstico, que, segundo contam, “levava cerca de três a quatro meses, embora no ano passado este período tivesse passado para cerca de 12 meses”, agora “o problema é mesmo não terem acesso à consulta nesta unidade, nem nas outras à volta do Amadora-Sintra, como São Francisco Xavier e Santa Maria, por as crianças não serem da área ”. Uma situação que acontece mesmo estando previsto na Constituição Portuguesa e no Estatuto do SNS que o utente até tem direito a escolher o local onde pretende ser acompanhado. Para as fontes do DN, “se antes não se cumpriam tempos máximos de resposta, agora há crianças sem acesso a cuidados. As situações podem não ser tão graves quanto a de outros, mas necessitam de uma resposta”.. Hospitais queixam-se de falta de meios e capacidade esgotadaO DN confrontou a administração da Unidade Local de Saúde Amadora-Sintra (ULSASI), que integra o Hospital Fernando da Fonseca, com a situação e esta confirma-a, tal como os motivos que levaram à redução de critérios. No entanto, destaca na resposta enviada ao nosso jornal: “A redução de especialistas e a necessidade de ajustamento de critérios de acesso à consulta foi comunicada a todos os serviços da ULS Amadora/Sintra” e “o objetivo era o de garantir que as novas referenciações, via ALERT, fossem direcionadas para outras unidades do SNS com maior capacidade de resposta, assegurando assim o acesso dos utentes aos cuidados necessários, mesmo que fora da instituição”.Conforme garantem as fontes do DN, os pedidos feitos a São Francisco Xavier e a Santa Maria foram recusados, deixando assim as crianças sem qualquer resposta no SNS.O DN questionou estes dois hospitais sobre a recusa de consultas a estas crianças e, no caso de São Francisco Xavier, a Unidade Local de Saúde Lisboa Ocidental afirma que “tem vindo a registar um acréscimo de pedidos de Consulta de Desenvolvimento de utentes de outras áreas de residência, procurando dar a resposta mais adequada a cada caso, por vezes ultrapassando os recursos humanos disponíveis”, argumentando ainda que “estes casos beneficiam do acompanhamento em proximidade, nomeadamente pelas equipas de saúde familiar e saúde escolar, devendo ser priorizada a resposta na zona de residência do utente”.Na resposta ao DN, esta ULS destaca ainda que “a articulação da resposta nesta área específica e sensível deveria ser objeto de reflexão no âmbito das redes nacionais de referenciação”. Em relação à ULS Santa Maria a reposta veio no mesmo sentido. “A pressão na resposta assistencial atempada a primeiras Consultas de Neurodesenvolvimento constitui um importante desafio a nível global (nacional e internacional) e em todos os serviços/instituições dotados desta subespecialidade pediátrica”, sobretudo porque “tal situação decorre de múltiplos fatores determinantes, incluindo o aumento de prevalência e de incidência das perturbações do neurodesenvolvimento (por exemplo, entre outros, sequelas de prematuridade extrema). E, em consequência disto, os pedidos para primeiras consultas para o Centro de Neurodesenvolvimento do Serviço de Pediatria da ULS Santa Maria têm vindo a aumentar significativamente - receção de cerca de 50 a 60 novos pedidos por mês, de primeiras consultas, com amplo espectro clínico”.A Unidade de Neurodesenvolvimento da ULSSM explica ainda que atende utentes até aos 15 anos, incluindo os numerosos pedidos para crianças provenientes de outras consultas do Departamento de Pediatria/Centros de Referência de todo o país com doenças crónicas graves /complexas e com repercussão no neurodesenvolvimento, no âmbito de protocolos de seguimento específicos (Unidade Doenças Metabólicas, Unidade Neuropediatria, Serviço de Genética, Serviço de Neonatologia,...), independentemente da área de residência”. Portanto, e tendo em conta “a finitude de meios e o enorme esforço das equipas da ULSSM, a resposta dos hospitais e cuidados de saúde primários das respetivas áreas de residência nas restantes situações é fundamental”.Por sua vez, a ULS Amadora-Sintra assume que “a Consulta de Desenvolvimento está alocada a um pediatra, após a saída de dois elementos em janeiro de 2025 para outra unidade do SNS” e que, neste momento, o Serviço de Pediatria tem 30 especialistas, seis alocados à Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos e quatro ao Serviço de Urgência Pediátrica”. Relativamente à limitação de critérios no acesso a esta consulta, a administração da ULS explica que estes tiveram de ser “temporariamente ajustados para garantir que os casos com maior prioridade clínica sejam acompanhados com a devida atenção e qualidade. Esta medida resultou da necessidade de reorganizar a resposta assistencial, na sequência da saída de dois profissionais da equipa, situação que está a ser acompanhada com vista ao reforço dos recursos disponíveis”.A ULS refere que, neste momento, são acompanhadas cerca de 1500 crianças por ano na área do Desenvolvimento. Anualmente, são referenciadas cerca de 900 novas crianças. Cerca de 800 estavam afetas aos dois profissionais que cessaram funções e que agora estão a ser remarcadas com base em critérios de prioridade clínica”. Mas, mesmo assim, “existe uma lista de espera com um tempo estimado de 14 meses para a primeira consulta”, admite.Questionada pelo DN sobre o que está a ser feito para se resolver a situação destas crianças, a ULS diz que “estão em curso processos de recrutamento de novos profissionais para reforçar a equipa e retomar progressivamente a capacidade de resposta nesta área assistencial. A par disso, está a ser feita uma procura ativa de profissionais, com o objetivo de acelerar a sua integração na equipa”.Direção Executiva não responde sobre recusas de consultas e rede de cuidadosA situação levou o DN a contactar a Direção Executiva do SNS, liderada por Álvaro Almeida, para saber se o organismo que tem a competência de gerir a rede de cuidados estava a par desta situação e se estaria a trabalhar em conjunto com a ULS Amadora-Sintra para a resolver. Mas não obteve qualquer resposta, mesmo depois de insistência nossa.O DN questionou ainda a DE-SNS sobre se é possível outros hospitais, com maior capacidade que o Amadora-Sintra, como São Francisco Xavier e Santa Maria, recusarem consultas de diagnóstico a estas crianças, e com que fundamentação - basta apenas o facto de não serem da área de influência, como foi justificado nos pedidos de consultas enviados a estas unidades? Mas também não teve qualquer esclarecimento. Quanto tempo mais é que o hospital levará a contratar médicos para dar resposta a estas crianças e famílias “não se sabe”, dizem-nos, embora fontes da unidade assegurem que “dois internos terminaram agora a especialidade de Pediatria e apenas aguardam o lançamento dos concursos para novos especialistas para se candidatarem”. O que são transtornos do neurodesenvolvimento?A literatura médica sobre perturbações do neurodesenvolvimento explica que uma Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) se caracteriza por “dificuldades na comunicação e na interação social, associadas a comportamentos repetitivos e/ou interesses marcados por objetos ou temas específicos”, justificando que esta designação foi atribuída pela variabilidade dos sintomas, desde as formas mais leves até às formas mais graves. A estimativa global sobre a prevalência da doença aponta para que uma em cada 132 crianças no mundo possa sofrer de PEA, enquanto que a prevalência na Europa, Ásia e Estados Unidos varia entre 2 a 25 em 1000 (ou de 1 em 40 até uma em cada 500 crianças). Em Portugal, a Federação Portuguesa de Autismo tem vindo a alertar para o facto de esta condição “ter uma dimensão desconhecida”, sendo urgente “uma aposta na intervenção precoce”, afirmou no ano passado no Dia Mundial para a Consciencialização do Autismo à RR. Em relação à hiperatividade ou défice de atenção (PHDA), a mesma literatura define tais perturbações como “transtornos do comportamento e neurodesenvolvimento mais frequentemente diagnosticada nas crianças e jovens em idade escolar”. Trata-se de uma perturbação ou transtorno que “evolui ao longo da vida, verificando-se incidências diferentes dos três sintomas principais (desatenção, hiperatividade e impulsividade) na infância, adolescência e idade adulta”. Quanto à prevalência, estudos recentes apontam para que, a nível mundial, seja de 5% a 7% entre crianças e jovens em idade escolar. Em Portugal, “não existem dados concretos e confiáveis sobre a prevalência e distribuição da PHDA”, refere estudo recente.