No último relatório, publicado sexta-feira, dia 3, o Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA) dava conta de que a atividade gripal epidémica registava uma tendência crescente. Mais: a Rede Portuguesa de Laboratórios para o Diagnóstico da Gripe e Outros Vírus Respiratórios dava conta que, na semana 52/2024, foram detetados 750 casos positivos para o vírus da gripe, dos quais 568 do tipo B e 182 do tipo A, sendo o número total de casos de gripe “maior do que relativamente às semanas anteriores”. O cenário, do ponto de vista da doença, parece ser idêntico ao de outras épocas gripais. Isto mesmo também refere ao DN o infecciologista Jaime Nina: “Não tenho números concretos, mas a avaliação que fazem os meus colegas das urgências é que o número de doentes com infeções respiratórias é igual ao de outros anos nesta fase da doença. Nem mais nem menos”. A questão é que, embora ainda nem sequer se tenha atingido o pico da gripe, estes casos já começaram a ter repercussões na resposta das urgências hospitalares do Serviço Nacional de Saúde (SNS), uma vez que alguns destes, sobretudo da região de Lisboa e Vale do Tejo, como o do Beatriz Ângelo, em Loures, o do Fernando da Fonseca, Amadora-Sintra, e um dos maiores do país, o Santa Maria, chegaram a ultrapassar 10, 15 e até 20 horas de espera, até para doentes urgentes. .HMPV. Um vírus conhecido da ciência que está a evocar memórias da covid-19 na China. Para o bastonário dos médicos, “a situação é muito preocupante”. “Não vale a pena estarmos a escamotear o que está acontecer: o trabalho de preparação não foi bem feito, algo falhou no planeamento para o inverno e na resposta às infeções respiratórias. E as novas medidas, como o reforço das linhas telefónicas, o funcionar em rede, os diagnósticos por digitalização, por exemplo, também não estão a funcionar para os utentes, que continuam a ter a sua vida dificultada”, reforça Carlos Cortes. “Se a resposta é esta no início da atividade gripal, então as próximas semanas serão ainda mais difíceis, já que a partir de agora, com o regresso das férias às escolas e aos trabalhos, a probabilidade de difusão da doença é muito maior. E perante isto confesso a minha enorme preocupação sobre o que pode surgir nas próximas semanas”, diz ao DN. O representante dos médicos defende mesmo que, a partir de agora, também “não vale a pena os conselhos de administração virem dizer que têm as equipas suficientes e que estas estão completas, porque a realidade já está a mostrar que o número de médicos por equipa não é suficiente”, argumenta. “Nesta altura, já não há soluções milagrosas, porque estamos em cima do acontecimento”, adverte. O bastonário volta a referir que a resposta das urgências às épocas de picos de afluência têm de ser analisada em “duas dimensões. Uma é o trabalho de preparação e planeamento, que não foi bem feito, porque apesar dos planos de contingência, dos planos estratégicos, da criação de redes entre Unidades Locais de Saúde, a resposta volta a falhar e de uma forma perfeitamente inadmissível. Tivemos locais em que alguns utentes tiveram de esperar mais de 20 horas ou 24 horas para serem atendidos, mesmo com um grau de triagem urgente. Não pode ser”. Nesta dimensão, o bastonário integra um outro motivo, aquele que “já todos sabemos: a falta de pessoal, porque o SNS não tem capacidade competitiva para captar profissionais e continuamos sem médicos. Em cima do acontecimento é muito difícil conseguir dar-se respostas adequadas”. A outra dimensão que enumera tem a ver com a falta de investimento e de aposta na literacia em Saúde, para se aumentar a prevenção da doença e mudar os comportamentos das pessoas. “Se não se investe o suficiente nestas áreas, depois não se pode esperar que respondam de forma diferente quer na prevenção quer na doença” .“Maioria das equipas de urgências gerais já funcionam nos mínimos”, diz FnamA presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), Joana Bordalo e Sá, concorda que o impacto da resposta das urgências tem a ver com o facto de as “equipas de urgência, em geral, não só as de ginecologia-obstetrícia ou as de pediatria, já funcionarem com um número de médicos reduzido”. A médica reforça também: “Mesmo que os conselhos de administração venham dizer que têm um número de especialistas suficientes, a verdade é esta, de norte a sul do país. O número de profissionais não é suficiente e os colegas que trabalham nos serviços de urgência, sobretudo de Medicina Geral, trabalham com muita, muita dificuldade, fazendo muitas vezes das tripas coração”. A dirigente sindical salienta ainda que muitos destes colegas continuam a trabalhar em “exaustão e em burnout. Tudo para conseguirem assegurar esse serviço”. Joana Bordalo e Sá volta a destacar que “a situação de falta de pessoal atinge todas as urgências. Não é só a zona de Lisboa e Vale do Tejo, no Porto há também urgências onde na primeira linha do doente estão médicos prestadores de serviço, muitos nem sequer têm a especialidade completa. O ‘normal’ das urgências é funcionarem de forma extremamente precária, com equipas com limites mínimos e os colegas no seu limite também”. Uma situação que a presidente da Fnam diz que, “quando se chega a épocas como o inverno ou o verão e há picos de afluência, neste caso por causa das infecções respiratórias, a resposta é a que se vê. Todos os anos há infecções respiratórias nesta altura do ano e o que deveria acontecer era as equipas que já funcionam nos seus limites serem reforçadas, e deveriam ser reforçadas por médicos do quadro, mas não se consegue fazer isso no dia-a-dia, porque faltam médicos no SNS”, aponta, dizendo mais uma vez que “o responsável é o Ministério da Saúde de Ana Paula Martins, que nada fez para melhorar a situação”. Joana Bordalo e Sá acredita também que a resposta das urgências ainda irá piorar à medida que a circulação do vírus da gripe aumentar. “É claro que pode agravar mais para a frente, pois ainda não estamos no pico da gripe”. Recorde-se que, no lançamento do Plano de Inverno, o diretor executivo do SNS, António Gandra D’Almeida, pediu aos conselhos de administração que tudo fizessem para responder às infeções respiratórias. Nalguns casos, a triagem prévia pela linha SNS24 parece estar a funcionar. O que não se contava, foi o que aconteceu, por exemplo, no Hospital Santa Maria, em Lisboa - “uma enorme afluência de doentes complexos às urgências”, explicaram ao DN, com diagnósticos mais difíceis pelas complicações geradas pela gripe e a necessitar de outras cuidados, como oxigenação e ventilação. Influenza B predomina Outra questão que surge neste primeiro fim-de-semana em que os casos de gripe começam a aumentar é se o vírus em circulação é mais contagioso ou até mais forte, levando ao desenvolvimento de outras complicações. O médico de Saúde Pública, Gustavo Tato Borges, e o infecciologista Jaime Nina consideram que não, já que a monitorização do INSA demonstra que neste momento o vírus predominante é “o Influenza B, um vírus habitual de todos os anos, que, em princípio, não traz riscos acrescidos”, refere Tato Borges. Embora, destaca, “haja mais vírus respiratórios a circular neste momento”, mas os sintomas detetados têm sido os mesmos de qualquer gripe: “uma febre que pode ser baixa e nem chegar aos 38º, dores musculares, cansaço, mal-estar geral e dores de cabeça, os quais depois podem ir avançando para o pingo no nariz e alguma tosse”. No entanto, o médico de Saúde Pública alerta: “É claro que, em relação às pessoas mais vulneráveis, estes sintomas podem agravar e até complicar-se, chegando a uma pneumonia ou a infecção bacteriana, levando a temperatura a subir, mais tosse, mais expectoração, mas, felizmente, para a grande maioria das pessoas são 5 a 7 dias de sintomatologia incomodativa, sem necessidade de cuidados diferenciados”.O médico destaca ainda que, do que sabe, o número casos de infeção respiratória em cuidados intensivos “são poucos”, mas, a verdade “é que estamos numa fase de crescimento do número de casos, o que significa que se não fizermos nada, entretanto, podemos ter um mês de janeiro que pode complicar-se”. Uma coisa é certa, nas próximas semanas “vamos continuar a assistir a um aumento de casos, porque o pico ainda não chegou”. Gustavo Tato Borges diz que ainda não consegue prever quando é que o pico poderá ocorrer, mas quanto a este ser mais forte ou mais fraco tudo dependerá de como as próprias pessoas se comportarem. “Se as pessoas tiverem algum tipo de cuidado nesta fase, cumprindo todas as regras que usamos na pandemia, se calhar poderemos começar a ver uma queda no número de casos ainda durante o mês de janeiro, mas é preciso que haja, de facto, uma alteração comportamental das pessoas”. O infecciologista Jaime Nina reforça que a realidade atual não é diferente do que assistimos no ano passado: “É o habitual para janeiro.” O que está pior, sublinha, “é que há menos médicos, alguns estão a reformar-se e outros estão a sair do SNS. E sem ovos não se fazem omeletes, diz o velho ditado”. Relativamente ao vírus em circulação, Influenza B, Jaime Nina é peremptório também: “Os sintomas não são graves para uma pessoa com 50 anos ou mais novo; para uma com 80 ou 90 são”.