Uma carrinha que sequestra uma criança na volta da escola. Uma emboscada numa rua escura. Estes são cenários presentes na mentalidade social quando se pensa nos casos de violência sexual contra menores. Estes casos existem, mas são, de longe, uma minoria em Portugal. “Em média, só 8% dos casos de abuso sexual de crianças e adolescentes, isto é em média, pode haver variações ao longo do ano, mas da média do levantamento que nós fizemos, só 8% dos casos correspondem a agressores que são totalmente desconhecidos da vítima”, explica ao DN a psicóloga forense Cristina Soeiro, da Polícia Judiciária (PJ). Ou seja, na maior parte dos casos, o perigo está em casa - os abusadores são pais, avôs, tios, padrastos. E vinca: não são “monstros”, como dizem, são homens na sua maioria (as mulheres são menos de 1%).A percentagem referida pela psicóloga forense, que atua nestes casos há mais de 30 anos, ilustra situações divulgadas pela PJ quase que diariamente: “Detenção por abuso sexual de filha menor em Resende”. “Avô abusa de neta e amiga”, “PJ detém homem suspeito de abusar sexualmente da filha”, “Homem viola filha de amigo”. Só este ano foram mais de 25 detenções pelo crime de abuso sexual de menores, de acordo com dados disponibilizados pela Judiciária. Uma das especialidades de Cristina Soeiro, também professora e formadora de polícias, é traçar perfis. Antes de explicar, diz que importa fazer uma diferenciação: abusadores e pedófilos não são, necessariamente, sinónimos. “O abuso sexual de crianças e adolescentes é crime, a pedofilia em si não é crime, pedofilia é uma classificação clínica, é uma perturbação sexual, esta perturbação é depois enquadrada com crime - as pessoas fazem muito esta confusão. Os pedófilos são geralmente um grupo menos representativo, ele existe, mas não explica a maior parte dos casos de abuso sexual em Portugal e na Europa. Portanto, nem todos os abusadores são pedófilos e nem todos os pedófilos são abusadores”, detalha.De acordo com dados do Relatório Anual da Segurança Interna (RASI), foram detidas 85 pessoas por abuso sexual de menores, das quais 81 homens. O escalão etário dos arguidos é dos 31 aos 40 anos. As vítimas, dos oito aos 13 anos.E qual o perfil dos abusadores portugueses, a maioria dos responsáveis por estes crimes? “São geralmente indivíduos com baixa autoestima, com mais limitações na capacidade de competências sociais, mais indicadores de ansiedade, de depressão, e, portanto, torna-os menos competentes na relação com as outras pessoas. E indivíduos com mais dificuldade de ultrapassar problemas sociais. E convencer uma criança a ter sexo é mais fácil do que um adulto”, vinca. A maior parte procura vítimas próximas: filhas, netas, sobrinhas, conhecidas - aqui o género é mesmo o feminino por ser a maioria das vítimas neste tipo de crime no contexto de proximidade. E podem ser pessoas que convivem com as outras no dia a dia, como um colega de trabalho ou um prestador de serviço, das mais variadas idades.Segundo Cristina Soeiro, a estratégia dos agressores em que a vítima é conhecida, passa por estabelecer uma relação com a criança - ou o uso do poder. “O agressor tem um processo ou de poder domínio sobre a vítima, porque é, por exemplo, pai, ou porque é tio, não é? Que pertence à rede social. E as crianças estão habituadas a obedecer aos adultos”, ressalta. E, nesta fase, as crianças “pouco sabem do que é que é certo ou errado numa relação. E aceitam o mundo como lhe é apresentado”.Estes casos, de acordo com a psicóloga, são ainda mais complexos, por envolver a rede familiar. “É uma grande violência o controlo sobre as crianças, tanto que as vítimas dentro da família têm mais dificuldade em fazer a revelação, o impacto traumático é superior dentro da família. Isso leva muitas vezes a criança, mesmo sabendo que tem alguma coisa errada, a não falar”, sublinha. E, de acordo com a profissional, “acontece bastante” a criança ser desacreditada, “até mesmo pelas mães, principalmente nos casos em que o abusador é o padrasto”.Quando o abuso ocorre fora da família, também existe um padrão. “São aqueles indivíduos mais velhos, que são reformados, que perderam a competência sexual, alguns deles já não têm ereção. A agressão sexual é por toques nos genitais e masturbação. Geralmente usam estratégias de sedução para atrair os miúdos, como vizinhos”, detalha.E o que os agressores dizem?De acordo com Cristina Soeiro, existem alguns padrões mais comuns: remeter ao silêncio, a minimização ou a negação. A minimização é assumir que cometeu o ato e a palavra dita logo a seguir é o “mas”. É como a clássica frase sempre encontrada nas caixas de comentários nas redes sociais sobre o assunto. “Estava a pedir”. A mesma “justificação” é usada por alguns destes criminosos - mesmo quando o “estava a pedir” era uma criança de cinco anos, para citar um caso concreto. “Há também aquele discurso socialmente correto, que é dizer, ah, eu pensei que não podia fazer, mas houve um dia que não resisti. E posicionam-se ali um bocadinho no papel de vítimas, que não são, mas tentam”..Detidos nos últimos dias oito homens por abusos contra menores - a maior parte filhas ou familiares.Já a negação não é a negação do crime em si, mas sim de pensar ou verbalizar que não foi um crime. “Uma frase que acontece muito é assim, ‘eu não fiz nada que a criança não aceitasse’, mas a criança não tem capacidade de prestar consentimento, é chamado de inimputabilidade em razão da idade, o adulto é o responsável”. Segundo a especialista, em muitos dos casos em que trabalhou, identificou que este crime está também relacionado com o próprio conceito de sexualidade, em que idade é visto como normal ter sexo. “Muitos deles diziam que a partir dos 11, 12 anos está bom. Porque isto é uma componente cultural também aqui, que é, se a pessoa, se a criança, já tem o período, por exemplo, por que não? Cá, em Portugal, muitas pessoas ainda pensam assim”, afirma.Em relação a nacionalidades, ou melhor, naturalidades, a psicóloga ressalta que a generalidade dos abusos contra crianças e adolescentes é cometida por portugueses. “No caso dos crimes sexuais, a nacionalidade não será a variável explicativa, a cultura talvez, naquelas em que inicia-se a vida sexual mais cedo e não estamos aqui a falar de aspetos culturais, estamos a falar de sexualidade”.Sinais de alertaCristina Soeiro recomenda que os adultos estejam atentos aos sinais das crianças, nomeadamente alterações comportamentais. “As crianças expressam muito o seu mal-estar através de alterações no seu comportamento, ou porque se tornam mais agressivas, mais tristes, isoladas, ou não querem ir à escola, ou não quererem estar com determinada pessoa ou pessoas. As crianças precisam de atenção, de comunicação, para perceber o significado de um determinado comportamento”, aconselha. “Estes crimes causam traumas muito graves e precisam de muito trabalho para que estas vítimas consigam crescer com suas vidas”.Nestes anos todos de investigação, a especialista também identificou que crianças com menor supervisão são vítimas mais potenciais dos abusadores. “Às vezes a criança está carente mesmo de afeto, isso torna uma vítima mais fácil para o abusador, que pode usar táticas como levá-la a passear”, complementa. Outro espaço de atenção é na escola. “As escolas podem contribuir aqui com dar bom conhecimento sobre as questões da sexualidade, sobre o que é o consentimento, sobre a violência, principalmente, mostrar que a violência não é uma solução e a violência sexual faz parte da violência como um todo”, analisa.E foi justamente a partir da escola que a psicóloga recorda o caso mais impactante em que já trabalhou. “Há um caso que me marcou, de uma menina que foi abusada pelo pai desde pequeneninha, a mãe não tinha conhecimento. E, numa aula que foi falado sobre educação sexual, a professora estava a explicar sobre isso e, depois a conversar com os coleguinhas, viu que não era normal e foi falar com alguém, que a trouxe à PJ”. O caso era de uma família “com alguns recursos” e a vítima, que tinha menos de dez anos, foi assistida. “Nós ficamos aqui a pensar ‘tanto tempo até que esta criança seja identificada e ajudada, não é’? E também a importância de ter esse conhecimento na escola, em campanhas públicas, no trabalho de instituições como a Associação de Apoio à Vítima (APAV) e unir famílias e escolas.amanda.lima@dn.pt.Prisão preventiva para homem de 49 anos por suspeita de abuso sexual de quatro menores em Rio de Mouro .Detidos nos últimos dias oito homens por abusos contra menores - a maior parte filhas ou familiares