"A vida política durante anos foi talhada por homens e para homens"
Sandra Ribeiro, presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, recusa a ideia de que não existem mulheres interessadas na vida política. Lamenta ainda a "engenharia" dos partidos na elaboração das listas de candidatos e pede mais diversidade.
As eleições legislativas de 2019 e de 2022 foram as primeiras realizadas após a aprovação, pela Assembleia da República, da lei da paridade. Escreve o diploma que deve ser garantida uma representação de 40% de ambos os géneros nas listas de candidatos, um número que ainda não se traduz nas cadeiras ocupadas no hemiciclo. No último exercício democrático, em finais de janeiro, foram eleitas 85 mulheres num total de 230 deputados - contas feitas, o equilíbrio entre elas e eles não vai além dos 37%. Ainda assim, a presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) acredita que "a lei da paridade na constituição das listas partidárias a eleições é uma medida de política pública absolutamente necessária e claramente positiva", não impedindo, porém, que existam melhorias a conquistar.
Relacionados
Desde logo, Sandra Ribeiro aponta aos partidos "alguma engenharia na elaboração das listas que, por vezes, põe em causa a paridade", mas acredita que a origem deste desequilíbrio representativo é "muito mais vasta e complexa". "Para haver mais mulheres com cargos de poder político, há alguns homens que têm de sair desses cargos", observa. E se, como considera, "a vida política durante anos foi talhada por homens e para homens", essa substituição que defende ser necessária torna-se mais difícil de atingir. Porém, identifica obstáculos adicionais que se prendem, sobretudo, com a forma diferente como a sociedade olha para o que é exigido de homens e de mulheres - a "noção equívoca" de que apenas elas precisam de conciliar a vida familiar com a profissional ou o escrutínio público a que estão "muito mais" sujeitas do que eles são disso exemplo. "São claramente circunstâncias inibidoras para muitas mulheres serem candidatas a cargos políticos", justifica Sandra Ribeiro.
Ao mais alto nível do poder público, o grau de representatividade feminina no XXIII governo é, neste Dia Internacional da Mulher, ainda desconhecido. A composição do novo executivo ainda não foi anunciada, mas sabemos, contudo, que a equipa de governação que se prepara para cessar funções contou, desde 2019, com oito ministras num total de 19 ministérios. O género feminino ocupava, assim, 42,1% dos mais altos cargos ministeriais. No entanto, para a presidente da CIG é também importante compreender como se trazem mais candidatas para os corredores da política nacional. "Acredito pouco quando se diz que as listas não integram mais mulheres porque não existem mulheres disponíveis para isso. Há sempre mulheres disponíveis para a vida política, é preciso é procurar onde possam estar e talvez não estejam em alguns círculos mais masculinizados onde normalmente se define quem são os candidatos", analisa a responsável. Sandra Ribeiro lembra que "a igualdade de género não é uma opinião", mas "um direito humano fundamental" que deve ser encarado como algo "natural" e não "como uma mera obrigação legal".
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Desigualdade persistente
O movimento feminista que ao longo dos últimos anos se tem intensificado um pouco por todo o mundo, Portugal incluído, é uma luta antiga que tem dado frutos, mas que também tem registado avanços tímidos se considerarmos a data do I Congresso Feminista e de Educação nacional.
Aconteceu em 1924, organizado pelo Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Porém, 98 anos mais tarde, a desigualdade entre géneros mantém-se e os números comprovam isso mesmo - de acordo com dados compilados pela Pordata, e divulgados a propósito do Dia Internacional da Mulher que hoje se assinala, a disparidade salarial representa a perda de 51 dias de trabalho remunerado para as mulheres. Em Portugal, na Letónia e na Finlândia, esta diferença salarial aumentou em 2019 e 2020, segundo informação publicada pelo Eurostat e que vai ao encontro dos avisos feitos durante a pandemia. "[A lei das quotas] muitas vezes ainda é tratada como a obrigação que tem que se cumprir", assinala Sandra Ribeiro, que chama à atenção para a ainda fraca representatividade feminina nos cargos de liderança nas empresas.
Um estudo recente promovido pela Escolha do Consumidor revela, por exemplo, que os setores de produtos e serviços para o lar, saúde, beleza e bem-estar estão entre os que mais mulheres têm como gestoras de marketing das marcas (entre 20% e 25%). Em sentido oposto, encontram-se as áreas de tecnologia e telecomunicações (2%), automóvel (7%) ou retalho (9%). Numa nota positiva, a Pordata indica que algumas profissões tradicionalmente dominadas pelo sexo masculino têm hoje mais mulheres do que homens - é o caso da medicina (56,3%), advocacia (55%) ou magistratura (61,9%).
Luísa Ribeiro Lopes, responsável pelo programa INCoDe.2030, confirma o que dizem os números - nas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), apenas 22% do total de especialistas no mercado de trabalho são mulheres. "Representa, ainda assim, um passo muito importante se pensarmos que crescemos 4%, ultrapassando a média europeia de 19%", explica ao DN. Enquanto as estudantes universitárias representam 53,6% do total de alunos inscritos no ensino superior, essa percentagem desce drasticamente para 17% nos cursos ligados às TIC. "Se pensarmos nas tecnologias emergentes como inteligência artificial, cibersegurança, cloud ou blockchain, essas áreas são predominantemente escolhidas pelos estudantes do sexo masculino", complementa.
Nos cargos de liderança, o cenário é ainda mais desigual. Entre os CEO da Fortune Global 500, o ranking que inclui as 500 maiores empresas mundiais, apenas 23 organizações são lideradas por mulheres (4,6% do total). "Estamos perante um grande desequilíbrio de género no mercado de trabalho tecnológico, o que implica que, num momento em que existe um grande défice de talento, desperdiçar metade da população ditará um agravamento da situação", sublinha Luísa Ribeiro Lopes. A inversão do cenário é, também, um dos objetivos do programa INCoDe.2030, uma iniciativa pública para o reforço das competências digitais na população portuguesa. "Temos vindo a trabalhar no sentido de dar visibilidade a todas as empresas que se colocam na linha da frente deste desafio", diz. Continua ainda a ser necessário "fazer um trabalho grande de sensibilização para as outras [organizações] que ainda não entenderam a importância que esta matéria tem para o desenvolvimento económico e social e para os seus próprios resultados", garante.
Sandra Ribeiro concorda com esta última ideia. "A igualdade de género nas empresas, para além da dimensão humana, é claramente uma estratégia inteligente de negócio", considera. A paridade na gestão, diz a presidente da CIG, traz "muitos benefícios" ao nível da criatividade, da capacidade de inovação e do fortalecimento dos modelos de negócio com mão de obra "qualificada e talentosa". "Diria que o caminho inclusivo que está a ser feito, e que devemos aprofundar, é o que implicará mais e melhor desenvolvimento social e económico", remata Luísa Ribeiro Lopes.
Como veem elas os desafios do país
Da política à saúde, passando pela tecnologia ou finanças, a tertúlia "Mulheres de Portugal - Desafios para o País" vai contar, na tarde desta terça-feira, com a participação de mulheres de diferentes quadrantes para debater, entre outros temas, a importância da representatividade. A iniciativa do Diário de Notícias, com o apoio institucional do Grupo Bel e da CIP - Confederação Empresarial de Portugal, dará palco às vozes de Sandra Ribeiro, presidente da CIG, Isabel Vaz, CEO do grupo Luz Saúde, Isabel Ucha, administradora da Euronext, Joana Vasconcelos, artista plástica, Luísa Ribeiro Lopes, do programa INCoDe.2030, Luísa Pestana, administradora da Vodafone, e Marianela Mirpuri, fundadora da Hera. A moderação será assegurada pela diretora do DN, Rosália Amorim, num evento que decorrerá no Farol Design Hotel, em Cascais, a partir das 16.00 e cuja transmissão está assegurada via streaming em www.dn.pt.
Ao longo de cerca de duas horas, as participantes vão olhar para os desafios nacionais e internacionais numa altura em que a guerra regressou, 70 anos depois, à Europa, mas também num momento em que a luta climática, os riscos de uma crise financeira, a reindustrialização do velho continente e o fim da pandemia marcam a agenda pública. Em representação das organizações empresariais estará, ainda, presente o presidente da CIP, António Saraiva, que comentará os temas em análise. A tertúlia que decorre no Dia Internacional da Mulher, celebrado neste 8 de março, será encerrada com um discurso do presidente da Câmara Municipal de Cascais, Carlos Carreiras.
dnot@dn.pt