O Barómetro da Saúde Oral 2024, divulgado pela Ordem dos Médicos Dentistas (OMD) nesta quarta-feira, expõe um panorama preocupante sobre a saúde oral em Portugal.Não faltam, ao longo do relatório, números a merecer reflexão ao nível das políticas públicas de saúde. Como as cerca de 300 mil pessoas (30% dos que nunca vão ou vão raramente ao dentista) que justificam o facto de não irem ao dentista por falta de dinheiro, um aumento de 5,6 pontos percentuais em relação a 2023. Ou os 65,7% da população que têm pelo menos um dente em falta (mais 6,8 pontos percentuais), as 28% das pessoas que têm seis ou mais dentes em falta, ou as quase insignificantes 2,5% das consultas dentárias realizadas via SNS ou cheque-dentista, o que indica a prevalência do sistema particular ou seguros.Motivos para uma conversa com o bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas, Miguel Pavão.. Ficou surpreendido com os resultados do barómetro de Saúde Oral de 2024 ou apenas confirmaram os alertas da Ordem?O barómetro vai consolidando conhecimentos que de ano para ano não trazem alterações significativas, mas confirmam um cenário coletivo preocupante: má situação de saúde oral em Portugal, agravamento da falta de dentes nas pessoas, ausência de reparação dos dentes. Há um dado novo neste barómetro: pessoas que revelam falta de capacidade financeira para ir ao dentista, o que é preocupante. Porque é que está a piorar o cenário da saúde oral, havendo na sociedade uma maior consciencialização para a importância desta área da saúde?Por um lado, há, se calhar, alguns aspetos decorrentes ainda da pandemia, que levou a que decaíssem os programas de escovagem dos dentes nas escolas e outros projetos de saúde oral. O que permite demonstrar que por muito investimento que possa haver, se não tivermos uma abordagem preventiva não vamos obter bons resultados, mas há um aspeto estrutural a destacar, evidente neste barómetro: 98% dos portugueses reclamam a importância de ter acesso a saúde oral no SNS e mais de 96% defendem que o Governo devia comparticipar tratamentos de saúde oral como faz com os medicamentos. Os tratamentos dentários, designadamente os mais básicos, como limpezas e manutenção, deviam ter uma comparticipação maior. E os cheques-dentista não têm sido solução para isso..Há mais pessoas sem dentes e piores hábitos de higiene oral. Portugal investe pouco na saúde oral? Falta resposta do SNS nesta área? Há uma falta de investimento gritante. Desde logo financeiro: e repare que a saúde oral nunca ultrapassou os 20 milhões de euros de financiamento anual. Repito: 20 milhões. Num Orçamento de Estado de 16 mil milhões, isso é uma gota de água num oceano. A par disso há falta de atenção a políticas de saúde oral, que durante anos tem sido o parente pobre da saúde em Portugal, e não só. A Organização Mundial de Saúde, por exemplo, para tentar por cobro a isso, deu passos muito importantes nos últimos tempos para o reconhecimento da saúde oral como um fator crucial para o bem-estar da população e lançou uma série de recomendações para serem seguidas ao nível dos países. Entre elas a integração, até 2030, da saúde oral nos sistemas nacionais de saúde. Mas em Portugal falta avançar nesse sentido, os passos para integrar os médicos dentistas no SNS estão a definhar e isso está longe de ser uma realidade ainda. Além disso não há nenhum modelo que reforce a complementaridade entre setor público, privado e social. Estamos muito longe de estar numa situação satisfatória..Os Serviço Nacional de Saúde é um sistema coxo, que deixa sem resposta de saúde oral muitos casos sociais que mereciam outra dignidade, seja no âmbito da assistência à pobreza, às incapacidades ou aos nossos idosos, por exemploMiguel Pavão. O programa do atual Governo contempla a saúde oral como área prioritária de intervenção…O atual governo contempla um programa para a saúde oral, mas ele ainda não saiu do papel. Os portugueses continuam à espera que o Governo apresente o Programa Nacional de Saúde Oral, que seria conhecido até ao final de 2024. Sei que a srª ministra [Ana Paula Martins] diz que isto vai ser uma realidade, lançou o desafio de englobar o ministério da Segurança Social e o da Juventude nesse desígnio, o que acho bem, porque se cada um desses ministérios contribuísse para orçamentar esta área já seria um esforço importante, mas está ainda tudo no papel. Segundo o barómetro, mais de 300 mil pessoas dizem não ir ao dentista por falta de condições financeiras. Ir ao dentista em Portugal hoje é um luxo vetado a uma grande parte da população?A saúde oral é uma área onerosa. A preparação, os equipamentos ou a própria formação dos profissionais fazem desta uma área onerosa. O problema aqui é que os portugueses sentem isso como ninguém, porque são obrigados, a esmagadora maioria, a pagar do próprio bolso. Mas há países que são bons exemplos de modelos de comparticipação. Nos Países Baixos, por exemplo, até aos 18 anos a saúde oral é gratuita. No Reino Unido, está inserida no sistema público. Em Portugal, no entanto, só 2,5% das consultas foram através do SNS em 2024. Os Serviço Nacional de Saúde é um sistema coxo, que deixa sem resposta de saúde oral muitos casos sociais que mereciam outra dignidade, seja no âmbito da assistência à pobreza, às incapacidades ou aos nossos idosos, por exemplo..A saúde oral nunca ultrapassou os 20 milhões de euros de financiamento anual. Repito: 20 milhões. Num Orçamento de Estado de 16 mil milhões, isso é uma gota de água num oceano.Miguel Pavão. Nesta altura, quais são então as prioridades para a Ordem dos Médicos Dentistas?A prioridade é o investimento real na saúde oral e deixarmo-nos de avanços e recuos. É fundamental consolidar uma complementaridade entre os setores público, privado e social, fazer a saúde oral chegar às Unidades Locais de Saúde, criar as carreiras de médico-dentista no SNS. É preciso executar e não apenas planear. Porque a aposta na saúde oral tem comprovados retornos em duas vastas dimensões: uma é trazer benefícios não só para a saúde da cavidade oral mas sim para a saúde em geral dos indivíduos, com impacto em doenças como a diabetes, por exemplo; outra é a dimensão social, porque uma melhor saúde oral traduz-se significativamente em menos problemas sociais, melhor integração e auto-estima.Qual o real empenho da tutela nesta área, nesta altura? Tem tido contactos com a ministra da Saúde? Temos tido contactos com a tutela. Tanto o anterior ministro, o dr. Manuel Pizarro, quanto a atual, a drª Ana Paula Martins, demonstraram querer fazer algo. Mas a saúde oral continua a não ser uma prioridade e, se queremos mudar algo, esta área tem que ter um plano de emergência, caso contrário continuará a ser permanentemente secundarizada. Fui muito crítico da Plano de Emergência e Transformação da Saúde precisamente por isso, porque não incluía a saúde oral. Como podemos transformar a saúde dos portugueses sem tratar da sua saúde oral? Esta é uma emergência que tem sido ignorada pelos sucessivos governos.