João Paulo Catarino, 55 anos, é natural de Proença-a-Nova e tem uma longa ligação às políticas de ordenamento do território e gestão florestal. Licenciado em Engenharia Silvícola, iniciou o percurso profissional na administração local, tendo sido presidente da Câmara Municipal de Proença-a-Nova entre 2005 e 2015. Integrou depois o Governo como secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural (2019-2022), onde se destacou pela defesa de uma reforma estrutural da propriedade rústica e pela promoção do emparcelamento agrícola. Foi deputado e mantém intervenção pública ativa nas questões ligadas à floresta, ao interior e à coesão territorial.O Governo PS criou um grupo de trabalho para fazer o diagnóstico e propostas de alteração à legislação da propriedade rústica. O trabalho foi concluído mas nada saiu do papel, pois não? O documento foi aprovado ainda em Conselho de Ministros, no último Conselho de ministros, naquele em que esteve presente o Presidente da República. Só que grande parte destas medidas eram de reserva da Assembleia da República e por isso não ficaram logo a produzir efeitos. Na prática, os diplomas ficaram concluídos e foram entregues na pasta de transição ao governo seguinte. O compromisso era de que, se o PSD avançasse, o PS estaria disponível para ajudar e apoiar, inclusive na Assembleia da República. Por isso era tão importante que o PSD tivesse avançado com este processo. Entretanto passaram três anos e continua tudo da mesma, não é? Sim, nesta matéria tudo na mesma. Qual era o diagnóstico identificado? A situação é preocupante. Existem mais de 11 milhões de prédios rústicos e uma parte muito significativa está em herança indivisa. Os números oficiais falam em cerca de 30%, mas na realidade devem ser perto de 50%. Isso significa milhares de propriedades onde ninguém toma decisões porque os herdeiros são muitos, vivem longe ou até já faleceram sem que as partilhas tenham sido feitas. A dimensão média das parcelas, sobretudo no Norte e no Centro, é inferior a meio hectare. É impossível gerir com viabilidade áreas tão pequenas. Temos casos de prédios com dezenas de herdeiros, completamente abandonados, porque ninguém se sente responsável pela sua gestão. O mercado praticamente não existe: em Portugal, 50% dos prédios só mudam de dono por morte. Não há dinamismo no mercado. Quem quer investir ou aumentar a sua exploração agrícola não consegue. E o cadastro que também lançamos com o Balcão único do prédio (EBupi), continua incompleto, o que torna a situação ainda mais caótica. Tudo isto gera abandono e tem reflexos diretos na economia, na coesão territorial e na prevenção dos incêndios. Mas quais são os principais problemas identificados? Posso resumir quatro: na gestão da propriedade, decorrente das dificuldades na administração das heranças; a fragmentação excessiva, que já referi, com a maior parte dos terrenos de dimensões inferiores à unidade mínima de cultura; a morosidade dos processos, devido à ausência de prazos para a habilitação de herdeiros e partilhas, prolongando situações de indefinição; por fim a exigência de acordo por unanimidade dificulta a tomada de decisões e a alienação de bens. Pode dar-me alguns exemplos de soluções apresentadas? Sem querer entrar muito em questões técnicas e jurídicas, há um conjunto de medidas fundamentais. A primeira é impedir que as propriedades continuem a ser divididas abaixo da unidade mínima de cultura. Ou um dos herdeiros compra a totalidade e paga tornas aos outros, ou vende-se e reparte-se o valor. A segunda é permitir que as heranças possam ser decididas por maioria e não apenas por unanimidade. Hoje exige-se unanimidade, mas isso é impossível em muitas famílias. A terceira é criar a figura de um gestor de herança, nomeado quando os herdeiros não chegam a acordo, findo os 5 anos apos a constituição da herança, com poderes para a sua alienação. Outra medida importante é acelerar o cadastro. É preciso garantir que todos os terrenos estão registados de forma clara e que essa informação é atualizada. E finalmente, é preciso estimular o emparcelamento ativo, com incentivos para quem consolide propriedades e simplificação de processos. O programa “Emparcelar para Ordenar” teve pouca adesão porque era provavelmente muito complexo e foi pouco divulgado, mas a ideia é válida: apoiar financeiramente quem queira juntar propriedades e criar escala. Apresentámos propostas muito concretas. Nos casos de heranças jacentes ou vagas, - que são heranças abertas (com a morte do seu titular) mas ainda não foi aceite pelos herdeiros e, por isso, está num estado intermediário de incerteza - neste momento não há prazo definido para a habilitação de herdeiros e há um prazo de 10 anos para aceitar ou contestar. Propomos um prazo de seis meses para a habilitação e dois anos para a aceitação. Nas heranças indivisas propusemos acabar com a ausência de prazo legar para a partilha, para uma obrigatoriedade em cinco anos. Nas situações de compropriedade. Propomos que deixe de haver esta possibilidade em áreas inferiores à unidade mínima de cultura (pode ir de um a 11 hectares, dependendo da região). E está tudo na mesma. No seu entender, por que é que algo que parece óbvio para toda a gente., nomeadamente na gestão florestal e prevenção de incêndios, não consegue avançar? Quais são os obstáculos? O Plano Nacional de Ação do Sistema Integrado para a Gestão dos Fogos Rurais também tem medidas relacionadas com a propriedade rústica, que têm uma execução baixíssima e consideradas pontos críticos desse plano... Acho que é falta de compreensão em algumas áreas, sobretudo política, porque este é um tema muito técnico e também muito jurídico. Além disso, há uma mudança de paradigma em relação ao direito sucessório. O direito sucessório vem do direito romano e assenta na ideia de manter a herança o mais una possível, só sendo dividida por unanimidade ou, em casos extremos, através de tribunal. Ora, esse edifício jurídico foi pensado quando praticamente não havia divórcios. Hoje a realidade é completamente diferente: temos heranças com múltiplos herdeiros, em que alguns herdeiros já são outras heranças indivisas, muitas vezes de várias famílias, e em alguns casos até herdeiros que não se conhecem ou que vivem no estrangeiro. Isto cria um emaranhado jurídico cada vez mais difícil de resolver. Houve quem criticasse estas medidas, não foi? Sim. Houve juristas mais conservadores que disseram que era uma revolução, porque vai contra a lógica do direito sucessório construído ao longo de séculos. Mas a verdade é que procurar unanimidade hoje é condenar o país à paralisia. Temos de ter mecanismos que reflitam a realidade social e familiar atual. E do lado político, como foi a reação? O PSD mostrou abertura? Sim. Nunca houve oposição clara, pelo menos. O problema não esteve na aceitação das ideias, mas sim nas circunstâncias políticas: quedas de governo, mudanças de ministérios e alguma resistência dentro da Justiça. Da Justiça, como? Eu diria que os historiadores do direito sucessório acharam as propostas demasiado ousadas. E quanto ao novo plano do Governo para 25 anos? Vejo pouca inovação. Muitas medidas são um plágio daquilo que já tínhamos preparado ou que estávamos a fazer, o que não me parece mal, o que me parece mal, é não referirem os seus autores e apresentarem um plano como sendo deste governo quando tem muito pouco de novo, e até as medidas dos governos anteriores, as únicas que estão em andamento são aquelas que já deixamos lançadas. Medidas como as que acabamos de falar que era só submeter a assembleia da república, não o fizeram. Julgo que o PS o irá fazer em breve. Mesmo que fossem aprovadas, quanto tempo demoraria até vermos resultados? Estas medidas não resolvem o passado. Só se aplicam ao futuro. Mas isso não é razão para não avançar. Quanto mais adiarmos, pior será. O número de divórcios aumenta, as famílias fragmentam-se, as heranças ficam cada vez mais complicadas. É uma bola de neve que cresce todos os dias. E qual seria o impacto prático destas medidas para o país? Seria muito grande. Primeiro, porque permitiria saber quem é o responsável por cada prédio rustico, algo essencial para prevenir incêndios e ordenar o território. Segundo, porque criaria dinamismo no mercado fundiário, dando oportunidade a agricultores e investidores de consolidar áreas. Terceiro, porque acabaria com milhares de prédios abandonados que hoje ninguém cuida. Isto não é só uma questão de economia, é também social e ambiental. Um território abandonado é mais vulnerável, mais pobre e mais perigoso. Noutros países, como é que isto foi resolvido? Quando atravessamos a fronteira, por exemplo, percebemos logo a diferença: é raro ver grandes manchas de mato abandonado como temos cá...O território espanhol está muito mais cuidado e compartimentado, porque têm um setor agrícola forte. Também têm menos floresta contínua do que nós. Com exceção da Galiza, que é mais húmida e florestada, a maior parte do território tem uma paisagem em mosaico, com parcelas agrícolas que travam a propagação dos fogos, embora os problema dos incêndios também lá está a chegar com muita intensidade, já é um problema real em muitas latitudes do planeta. Em Portugal temos grandes manchas de pinheiro e eucalipto, em monocultura, continuas, que em associação com o nosso clima e o efeito das alterações climáticas se tornam muito vulneráveis. Portanto, a questão central é política? Sim. Está tudo estudado há anos. Temos diagnósticos claros, propostas concretas e até diplomas preparados. O que falta é coragem política. É um tema sensível, porque mexe no direito de propriedade e no direito sucessório, mas é absolutamente necessário. Se não fizermos nada, continuaremos a ter um território fragmentado, abandonado e vulnerável a incêndios. Se tivermos coragem, podemos criar condições para uma agricultura, a norte do Tejo, mais competitiva, uma floresta mais ordenada e comunidades rurais mais seguras, tendo sempre consciência que mesmo fazendo bem, os resultados levaram décadas, e a politica não espera pelos resultados décadas, nem as boas politicas dão resultados eleitorais quando o seu resultado só poder ser avaliado 20 ou 30 anos depois. Aqui estará, provavelmente, a grande dificuldade deste tema.