O papel do meteorologista nunca terá estado tanto em foco como agora, graças à crise climática. O quanto mudou a profissão nestes últimos anos?A minha profissão talvez tivesse menos visibilidade quando comecei, há mais de 30 anos, ainda no antigo Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica, mas nunca se tratou só de ser o senhor que apresenta o estado do tempo, como muitas pessoas imaginam. Na verdade, a maior parte do trabalho de um meteorologista de radar o público não vê. Isto é, configurar um sistema de radar, parametrizá-lo, configurar aqueles avisos meteorológicos que a maioria das pessoas não vê, porque só veem uma ínfima parte que são os que aparecem quer numa app, quer no nosso site.Para percebermos, o que é isso de ser meteorologista de radar?É o meteorologista que analisa os radares meteorológicos, e temos já sete em Portugal continental e ilhas. No nosso caso são sistemas de Banda C, polarização dupla e doppler. O que é que eles permitem? Permitem, no essencial, identificar áreas de precipitação forte e áreas onde a precipitação pode tornar-se forte, embora não ainda com o detalhe que nós queríamos. Conseguem também identificar, por exemplo, para a aeronáutica, nuvens com grande desenvolvimento vertical, com topos muito elevados, que podem ser gravosos ou severos para a navegação aérea. E temos ainda uma componente cinemática importante. Cinemática quer dizer de movimento. Por exemplo, conseguimos obter perfis verticais do vento de 10 em 10 minutos, muito importante para identificar correntes de jato, rajadas fortes em níveis próximos da superfície, etc. E depois também temos uma componente de avisos. Por exemplo, temos avisos de precipitação estratificada e avisos de precipitação convectiva.O que é que isso quer dizer?Quer dizer que o meteorologista previsor, além de estar a ver de 5 em 5 ou 10 em 10 minutos o campo de intensidade da precipitação, que é instantâneo, pode também estar a ver sobreposto, se for o caso disso, um aviso que lhe está a indicar se é provável que nos próximos 10 a 20 minutos naquela área precipite muito ou não. Portanto, há uma observação instantânea, mas também alguma componente preditiva. São os avisos de precipitação. Há ainda avisos de convecção organizada, para identificar nuvens com alguma organização e que duram mais tempo: uma hora e meia, duas, quatro... Essas nuvens têm mais tempo para produzir tempo severo e o radar permite identificar isto.Ainda assim somos surpreendidos muitas vezes com eventos inesperados, chuvas fortes, inundações. Porquê?Porque muitas vezes, na hora anterior ou duas horas antes, ter a certeza absoluta no sentido de poder emitir um aviso ou fazer uma previsão de que, out of the blue, quer dizer, sem indicador nenhum, vamos ter dali a duas horas 30 milímetros de chuva não sei onde, isso ainda é muito difícil. Eu gosto dizer isto às pessoas, sobre a previsão da precipitação e possíveis inundações: nós temos em Lisboa a Praça do Comércio, que tem cerca de 36 mil metros quadrados. Ora, se cair um milímetro de precipitação, que é um litro por metro quadrado, durante uma hora - um valor muito baixo, que nem sequer dá para acionar aviso, para ter uma ideia - são 36 mil litros naquela praça, 36 toneladas de água. Ora, numa praça que não tem relva, só pedra e asfalto, o sistema de drenagem, por muito eficaz que seja, vai ter que lidar com quase 40 toneladas de água numa hora. Agora, imagine caírem 20 litros por metro quadrado, 50 ou 100, que foi o que já aconteceu, por exemplo. Isto é problemático..“ A atmosfera tem um comportamento intrinsecamente caótico, quer dizer, não é possível com modelos numéricos de previsão do tempo saber qual vai ser o estado do tempo em Lisboa, por exemplo, daqui a 17 dias. Não é possível.”Paulo Pinto, meteorologista. O nível de exigência evoluiu tanto ou mais do que a própria tecnologia ao dispor? As pessoas hoje querem saber exatamente a que minuto vai chover, a quantidade de chuva que vai cair e os estragos que pode fazer.Sim. Aquilo que é a necessidade de previsões meteorológicas para a sociedade, para as empresas, para o próprio Estado, enfim… a exigência cresceu de tal ordem que nós, por vezes, não conseguimos dar respostas proporcionais ao que a gama de recursos tecnológicos faria supor. Por exemplo, uma coisa muito simples: vamos supor que prevemos aguaceiros para hoje, eu ainda não consigo dizer que vai haver um aguaceiro muito forte dentro de uma hora e vinte e sete minutos numa determinada zona de Lisboa. Não consigo. Nem eu nem ninguém.Porquê?Porque há aqui dois planos diferentes, que são a tecnologia e a ciência, que não são a mesma coisa. A atmosfera tem um comportamento intrinsecamente caótico, quer dizer, não é possível com modelos numéricos de previsão do tempo como nós utilizamos saber qual vai ser o estado do tempo em Lisboa, por exemplo, daqui a 17 dias. Não é possível. E não é possível porquê? Porque os modelos que nós utilizamos presumem que há um determinismo que na atmosfera não existe. A atmosfera tem um comportamento caótico, tem interações não lineares que escapam à tecnologia. Em todo o caso, é verdade que a tecnologia evoluiu bastante e nos dá hoje em dia muito mais ferramentas. Além disso, também é verdade que a sociedade passou a ter, digamos, um modo de viver de tal maneira frenético, complexo, que faz com que hoje em dia tenhamos pessoas a percorrer quilómetros de norte a sul do país, com um telemóvel disponível, e essas pessoas têm muito mais probabilidade de ver um tornado, de ver um aguaceiro forte, de presenciar uma situação meteorológica qualquer em que podem filmar, avisar e partilhar. Isso leva a que fiquemos com a perceção de que os fenómenos estão a ocorrer mais, quando nem sempre é verdade.. Isso leva-me a perguntar-lhe o quão anormal é, afinal, hoje o clima que temos?Essa pergunta é de difícil resposta, até porque há muitas maneiras de olhar para o clima. Eu não sou climatologista, mas sei que tem havido um aumento, e é natural que assim seja, de eventos extremos. Embora me possa dizer que sempre houve precipitação forte, sempre houve tornados, sempre houve secas, e isso é verdade. Por exemplo, aqui em Lisboa e no sul de Portugal sempre houve secas. É típico do clima mediterrânico. No entanto, o clima está de facto a mudar e temos agora a perceção, embora alguns ainda o tentem negar, que há uma componente antropogénica na mudança climática.E quão mais frequentes são os fenómenos extremos, efetivamente?Uns colegas norte-americanos fizeram um estudo muito interessante sobre os tornados em que eliminaram todos os tornados abaixo de F3 (de moderados a fracos) e verificaram que o número de tornados mais fortes nos Estados Unidos se mantinha. E provavelmente os outros também. O que é que acontece agora? As pessoas têm a perceção de que há mais tornados porque, anteriormente, os fracos passavam muito despercebidos. Mas há uma diferença, sim, num aspeto. Suponha que a média de tornados nos Estados Unidos era de 3 mil por ano. Aquilo que acontecia há 50 anos é que num ano havia 3 mil, no outro ano 2900, no ano seguinte 3100 e andavam em torno disso. Hoje, o que esse estudo confirmou é que temos um ano com 4500, depois um com 1100, outro com 3900. Ou seja, a variabilidade climática aumentou.De que forma é que a meteorologia e a geoinformação podem ajudar a influenciar políticas públicas de adaptação a estes eventos extremos?Há aqui um detalhe importante. Nem de perto nem de longe a chuva é o único, ou sequer, às vezes, o principal fator que determina inundações e cheias. Valência [as inundações em 2024] é um caso paradigmático. Em Valência praticamente não choveu. Ou choveu relativamente pouco. Com certeza, menos do que 30 a 40 milímetros naquelas horas todas. No entanto, houve locais próximos, a 30 e 40 quilómetros, onde caíram 200, 300, quase 500 milímetros, num dos casos. E isso depois levou a todo o desencadear de processos - transporte de massa por gravidade, terra, etc. - que causou a desgraça que infelizmente conhecemos. Mesmo dentro de uma cidade, e uma cidade particularmente grande, podemos ter grandes heterogeneidades. E haverá valores de precipitação com os quais nós não conseguiremos lidar. As cidades não estão muitas vezes projetadas para os valores extremos, porque eles eram raros. Mas se passarem a ser menos raros, talvez valha a pena pensar neles.De que forma isso deve fazer repensar a forma como se constrói e como se vive as cidades?Imagine que conseguimos prever que amanhã vão cair 300 milímetros de chuva num determinado local. O que é que se faz? Não se vai evacuar as pessoas todas, não é um tsunami. Mas, como disse, podemos pensar nas cidades do futuro. Como sabemos hoje, tudo aquilo que for impermeabilização, tudo o que for concentrar a água em zonas muito estreitas é aumentar o risco. Portanto, precisamos de políticas que criem mais espaços verdes, mais zonas em que a água possa permear ao chover, ter sistemas de drenagem desentupidos, preparados e adaptados às necessidades. Agora, se me perguntar, tudo isto poderia ter evitado Valência? Não. Poderia se não houvesse nada construído em leito de cheia. E isso, infelizmente, acontece. Lá e cá, em muitos sítios.As mudanças climáticas vêm denunciar e castigar também tudo o que de mal andámos a fazer em termos de urbanismo e ordenamento do território?Sim, se nós tivermos uma maior incidência de fenómenos extremos, como mais precipitação, mais episódios de vento forte, etc, temos que nos preparar para eles. E para isso é preciso uma visão multidisciplinar das cidades. É importante a visão do meteorologista, mas também do engenheiro de sistemas, do engenheiro civil, do engenheiro hidráulico, e muitas outras áreas.. Portugal é considerado um dos países mais vulneráveis às alterações climáticas em curso. Que clima vamos ter daqui a 25 anos, a meio do século?Aquilo que o IPCC, Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas, tem apresentado como principais cenários. Passaremos a ter, provavelmente, situações de mais convecção, ou seja, situações em que temos trovoada, ventos fortes, granizo, etc. Poderemos ter mais situações dessas, em especial, em algumas alturas e regiões no verão. Não quer dizer que vá chover muito no verão, mas que esses episódios poderão ser mais frequentes. Poderemos ter mais ondas de calor que façam com que as temperaturas extremas possam exceder certos limiares com mais frequência. E devido a estas alterações no clima, Portugal enfrentará uma subida do nível médio do mar. Com certeza que teremos que ter alguns cuidados quanto a isso, e penso que já estão a ser tomados junto à faixa costeira. Mas, mantendo-me na minha área, eu diria que provavelmente teremos mais episódios de precipitação no regime torrencial, em que teremos uma fração razoável da precipitação média do mês ou do ano a cair num período curto, o que quer dizer que durante o resto do tempo não choverá. Estes episódios mais extremos tenderão a ser mais frequentes, e portanto... a causar mais estragos também, eventualmente. Mais impactos. Aliás, a ideia é evoluir para uma previsão meteorológica por impactos. Não apenas que tempo vai fazer, mas o que é que o tempo vai fazer. Porque a mesma quantidade de chuva num mesmo sítio, em alturas diferentes, pode ter impactos completamente diferentes, o que uma análise meramente meteorológica não consegue resolver. Tem que ser com outras valências..Haverá no futuro valores de precipitação com os quais não conseguiremos lidar. As cidades não estão projetadas para os valores extremos, porque eles eram raros. Mas se passarem a ser menos raros, talvez valha a pena pensar neles”.Paulo Pinto, meteorologista. E a Inteligência Artificial que ajuda dará neste campo?Estamos ainda em fase experimental. Ainda não conseguimos medir o real impacto da Inteligência Artificial. Agora que vai haver, disso não tenho grandes dúvidas. Quer se trate de machine learning , quer de deep learning, permitirá dar aos algoritmos que existem e a outros que vamos criando a capacidade de treinarem com grande quantidade de dados e conseguirem modelos e formas de previsão que nós atualmente não temos. Eu agora consigo fazer uma extrapolação linear simples e dizer que superfície frontal fria que está no Porto agora vai afetar Coimbra daqui a duas horas e Lisboa daqui a três horas e meia. Mas os tais detalhes da precipitação muito localizada não é possível fazer atualmente com essa facilidade. Aí a IA estou convencido que pode ajudar, porque vai conseguir sintetizar informação que o ser humano não consegue com as tecnologias hoje disponíveis.Entrevista realizada à margem da participação de Paulo Pinto como orador no painel "Fenómenos Naturais Extremos e o Valor da Geoinformação", na primeira edição do Dia do Departamento de Engenharia Geográfica, Geofísica e Energia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.