Rosto da promoção e defesa dos direitos das crianças, Manuela Ramalho Eanes não hesita em considerar “ilegal, inconstitucional e eticamente condenável”, a divulgação, em plenário da Assembleia da República, por André Ventura, de uma lista de nomes de crianças admitidas numa escola portuguesa, sugerindo que “não são portuguesas”. Em declarações ao DN - tendo “por finalidade fazer prevalecer o Superior Interesse da Criança e defendê-la, enquanto minoria, como gostamos tanto de sublinhar, sempre, em vários fóruns políticos”, - e sem citar o autor da divulgação da lista, a fundadora e presidente honorária do Instituto de Apoio à Criança (IAC) continua: “É ilegal, por violar normas de proteção de dados e da infância; inconstitucional, por ferir a igualdade, privacidade e dignidade; e é eticamente condenável, por expor crianças ao preconceito”. E vai mais longe. Sublinhando que “as crianças não podem ser usadas como arma política”, é dever “do Estado e de todos os seus órgãos” prestar-lhes proteção. “Mesmo quando essa proteção implica limitar a atuação abusiva de representantes eleitos”. Presidente do IAC de 1983 até 2013, Manuela Ramalho Eanes – a quem nunca agradou o título de primeira-dama preferindo ser olhada como “uma cidadã com empenho cívico”-, lembra que a democracia “deve acolher e proteger a todos, inclusivamente os que estão contra a democracia e a combatem”. E que a tolerância, “pensada para proteger as minorias, torna-se ineficaz quando a maioria não reconhece esse princípio”. Porém, é na lei que estriba estas declarações. .Proteção de Dados, Constituição, Convenção dos Direitos da Criança“A leitura em público de nomes de crianças para sugerir que “não são portuguesas” viola o direito internacional, a constituição portuguesa, a lei da proteção de dados e os princípios mais elementares da dignidade humana”, diz Manuela Ramalho Eanes. Que passa a explicar:“Viola frontalmente” o Artigo 8.º do Regulamento Geral de Proteção de Dados (e da Lei n.º 58/2019, que transpõe o RGPD para o sistema de direito português), que define que dados pessoais de crianças menores de 13 anos apenas podem ser divulgados e tratados com autorização dos encarregados de educação. “No entanto”, acrescenta, “não é apenas uma violação de privacidade: é uma violação de princípios fundamentais do Estado de Direito democrático, da dignidade da pessoa humana e dos direitos da criança”.Mais. “A utilização dos nomes das crianças como critério de origem étnica promove a discriminação e marginalização das Crianças e suas famílias”, declaração sustentada, defende, na Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada por Portugal em 1990, segundo a qual todos os países signatários são obrigados a respeitar os Direitos da Criança “sem discriminação de qualquer tipo, independentemente da origem étnica, nacional ou social [...] dos pais ou representantes legais.”Ainda segundo a Convenção sobre os Direitos da Criança, Manuela Ramalho Eanes remete para o artigo 3 º - “em todas as decisões relativas a Crianças [...], o Superior Interesse da Criança deve ser uma consideração primária”- para advertir que “divulgar nomes de Crianças para efeitos da sua discriminação é frontalmente contrário ao seu bem-estar e segurança”.Lembrando que a ordem jurídica portuguesa “assenta na dignidade humana, defende ainda que usar o nome de uma criança para a associar a uma identidade cultural como motivo de exclusão “viola esse princípio estruturante”.São vários os argumentos legais elencados. “Há uma clara violação do direito à privacidade”, diz, alertando para o artigo 26º da Constituição da República, garante do direito à identidade pessoal e à reserva da intimidade da vida privada e familiar. E recorrendo ao artigo 69ª da lei da fundamental - “As Crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral”- concluiu: “O Estado tem, pois, o dever de proteger a Criança contra estigmas, xenofobia e exposição indevida”. .Medalha de Honra de LisboaManuela Ramalho Eanes vai receber da Câmara Municipal de Lisboa a Medalha de Honra da Cidade. A cerimónia terá lugar no dia 15 de julho, às 18:00, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, em reconhecimento do empenho da agraciada nas causas socais, especialmente na defesa dos direitos das crianças.“Ao longo de toda a vida, Manuela Eanes falou com firmeza e sem filtros sobre a pobreza e maus-tratos infantis, rompendo com tradições, nomeadamente relativamente ao papel da primeira-dama, o qual usou em prol das causas sociais”, lê-se na proposta subscrita por Carlos Moedas. A atribuição da Medalha de Honra da Cidade a Manuela Eanes foi aprovada pelo executivo municipal há cerca de dois meses, precisamente em 23 de abril, em reunião pública da câmara, com votação por escrutínio secreto, em que houve 16 votos a favor e uma abstenção.