Apesar de terem muita experiência e conhecimento nessa área, o que mais vos chamou a atenção no conjunto desta obra?Margarida A. Santos: É uma síntese de vários aspetos que nós temos estudado, e que de facto se reconduzem muito ao conceito desenvolvimental do próprio crime, ou seja, a noção que a delinquência juvenil é um fenómeno prevenível, é um fenómeno que para muitos jovens é transitório, e portanto será necessário começar a fazer uma aplicação ou uma prevenção precoce em determinados fatores, principalmente no contexto familiar e no contexto escolar. Estes são contextos de grande importância, e todos os autores de alguma forma vieram dar esse acervo ao livro e explicar de que forma é que esses contextos são importantes para prevenir. Também concluímos que a reação mais forte à criminalidade, principalmente à juvenil, nem sempre tem um efeito positivo. Aliás até pode agravar a própria delinquência. E esta noção de intervenção precoce e de avaliarmos programas de forma sistemática - perceber que respostas é que estão a ser dadas e como estão a ser dadas, quais são os seus custos, quais são os seus benefícios - são as portas para responder a este fenómeno.Gilda Santos: Nós percebemos que a investigação que é desenvolvida em Portugal acompanha a par e passo aquilo que são os dados internacionais. As conclusões a que chegamos, quando fazemos uma análise comparativa com outros países, mostram resultados muito semelhantes. Eu acho que isso também é um aspecto muito interessante. Não me lembro em nenhum capítulo de ver um dado que saísse completamente fora da caixa no panorama internacional. Isso é muito importante porque também nos permite ter uma base de conhecimento sólida, nacional e internacional, robusta, que permite o desenvolvimento destas intervenções - é esse o nosso foco. Também era muito importante para nós que o livro não fosse mais um acervo académico. Claro que é para servir os nossos estudantes, de várias áreas, mas, sobretudo, para funcionar como uma ferramenta de trabalho para os profissionais de terreno.Como avaliam o cenário da delinquência juvenil em Portugal?Margarida A. Santos: Apesar de os dados oficiais da criminalidade mostrarem que a delinquência juvenil tem subido nos últimos dois/três anos, não se trata de uma subida alarmante. E é preciso contextualizar essa subida, que dá-se sobretudo em áreas metropolitanas, com criminalidade grupal - ou seja, em cidades maiores, onde existem mais problemas sociais, mais problemas de vulnerabilidade dos jovens. E mais falta de supervisão, o que de alguma forma vai de encontro aos resultados dos estudos que também são apresentados no livro. Hoje em dia, o que se tem passado é essas mensagem de alarme, que é baseada em políticas de desinformação, que muitas vezes o que fomenta são atitudes mais punitivas, mais reativas. E o que a ciência tem mostrado, e este livro também tem um bocadinho esse objetivo, é que principalmente nos jovens essas reações mais punitivas podem ter efeitos mais nefastos, e não necessariamente mais positivos. Gilda Santos: Comparado a alguns países, no sistema juvenil português a última medida é de internamento, em sentido educativo. Portanto, é um sistema que promove a implementação de medidas num seio comunitário, num meio aberto, em liberdade. E é essa a orientação internacional em termos de intervenção na delinquência juvenil, é essa a pista que a ciência dá. Agora, o que se passa em Portugal é o que se começa a passar noutros países. Começam a aparecer novos designers de crime, por exemplo, o cyberbullying, a cibercriminalidade de uma forma geral.Era justamente o que ia perguntar.Margarida A. Santos: Começamos a ver estes casos a serem mediatizados - a publicação de um vídeo na internet, que mostra um lado mas que necessita de começar a ser investigado, naturalmente. Nenhum país está preparado ainda, mas Portugal está atento a isso. Aliás, há vários estudos que se focam, a nível académico, na análise dos comportamentos online, dos comportamentos delinquentes praticados por jovens. E depois nós não nos podemos esquecer que também temos alguns organismos governamentais, como o Centro Nacional de Cibersegurança e até mesmo a APAV, por exemplo, que tem feito imensas intervenções na escola já dirigidas à questão da cibercriminalidade - ou seja, começa a haver um foco neste âmbito.Gilda Santos: Como são fenómenos mais recentes, ainda não estão sedimentas as melhores formas estratégias de deteção, intervenção e acompanhamento das vítimas. E daí também a importância desta obra. Porque nós temos aqui aspectos focados nestas questões do cibercrime. Mesmo para comportamentos que não são expressivos online, Portugal é o país onde ainda não existe uma estrutura sistemática de intervenção. Temos uma lei dos sistemas juvenil, mas tudo o que está fora dessa lei é feito quase de forma geográfica. Quando começámos a construir o livro, começámos a perceber que os nossos colegas da Universidade de Coimbra, da Universidade de Lisboa, aqui na Escola de Criminologia, estão a desenvolver trabalhos muito semelhantes e que se podiam juntar de alguma forma. Há pouca comunicação na academia e há pouca comunicação para os decisores políticos. Era importante que o livro chegasse, por exemplo, às pessoas que tomam as decisões políticas. Porque a verdade é que não há uma estratégia nacional, vamos pôr a coisa assim, de prevenção e intervenção. Isso não existe em Portugal..Machismo tóxico: “A escola é extremamente ignorante sobre isto”.E sobre a prevenção, qual é a missão da escola?Margarida A. Santos: A escola é uma estrutura, é considerada a segunda grande instância de socialização da nossa vida. É como se fosse a nossa segunda casa a partir de certa idade. A partir do momento em que a escola deixa de ser um espaço que é visto como seguro, começam a haver dificuldades de adaptação. E esta questão dos vínculos sociais é particularmente importante dentro da escola. Portanto, a escola pode funcionar como um mecanismo que pode proteger, em muitos momentos, mas que também pode aumentar o risco de comportamentos antissociais. Nós temos estudado muito isso, tanto eu como a professora Gilda, e até orientamos bastantes trabalhos nesta área. E o que os estudos mostram é que quem é vinculado à escola, quem tem compromisso, expetativas positivas sobre a escola e acha que a escola é importante, normalmente têm mais sucesso escolar e muitos mais comportamentos positivos e trajetórias normativas. Isso é o que nós vemos.Gilda Santos: Neste momento em Portugal, estamos a viver um panorama de grande desvinculação à escola e problematização da classe social do próprio professor, que de alguma forma está a enfraquecer esses vínculos sociais. Nós vemos a escola como a segunda grande instância de desvinculação. A primeira grande instância é a família, e nós sabemos isso, mas depois há um momento em que há uma transição, em que as crianças saem da família e vão para a escola. E a escola passa a ser o espaço onde elas estão mais tempo. É ali que nós vemos a relação que eles estabelecem, desde já, em primeira instância, com figuras de autoridade, e, portanto, isto é um aspeto também importante. Quando olhamos para a vontade de prevenção deste tipo de comportamentos ou intervenção, eu continuo a achar que a escola é um contexto privilegiado para esta ação. Estudos anteriores têm-nos mostrado isto, a escola como principal plataforma para a intervenção. As crianças estão lá, nós conseguimos trabalhar diretamente com elas, e, às vezes, num período alongado no tempo, conseguimos fazer sessões mais estruturadas, ter um planeamento, e, portanto, não só focarmos nos fatores de risco, mas também olhar para a escola enquanto contexto privilegiado para a intervenção e a família. Podem ser intervenções dirigidas à escola toda ou a uma estrutura - por exemplo, mudar políticas disciplinares, ou regulamentos, como podem ser micro intervenções dentro da própria sala de aula. Se uma turma apresenta problemas de comportamento, podemos ensinar os professores a lidar com isso e a alterar essas dinâmicas dentro da escola.A partir dos últimos relatórios do RASI têm-se falado muito das gangues juvenis. Como avaliam essa realidade em Portugal?Margarida A. Santos: Gangues juvenis não são um fenómeno de Portugal, não é? Mas é estudado há décadas, principalmente em países como os Estados Unidos. A questão é porquê isso essa criminalidade tem sido mais expressiva nos últimos anos? Isso pode estar ligado ao crime organizado - dizemos pode porque não há estudos, logo não podemos dar uma resposta concreta a isto.Gilda Santos: Concordo, não há estudos científicos desenvolvidos com dados nacionais, que nos permitam comparações com estudos que têm sido feitos noutros países,como o Reino Unidoe Estados Unidos, com evidência sólida. Em Portugal, nós começámos agora a trabalhar isso. Mas acho que há o alerta. E, desse alerta deviam resultar mais estudos. Estudar o tema significa estar em contato com as pessoas. Não é só pegar naquilo que já existe e que já sabemos. Nós sabemos que a criminalidade grupal, principalmente em jovens, está associada a subculturas, em determinados territórios sociais. E, aqui em Portugal, isso está a acontecer nas áreas metropolitanas, principalmente Porto, Lisboa e Setúbal. E veja: se à meia-noite, um jovem está com outro jovem na rua, onde estão os pais? Em Portugal provavelmente estarão a trabalhar em dois turnos e não conseguem supervisionar o filho. Como disse, a primeira parte é a família e depois é a escola, são os elementos mais importantes a nível de uma lógica preventiva.Margarida A. Santos: Temos de começar de baixo. Há muitos trabalhos internacionais em que a intervenção é focada, por exemplo, em mães adolescentes ou famílias socialmente mais descobertas, casos em que a intervenção começa antes do nascimento. Porque nós sabemos que as questões de saúde, de educação, de cuidado infantil, são também importantes para um desenvolvimento adequado. A lógica da prevenção por causa da prevenção desenvolvimental é quanto mais cedo, melhor. É sempre melhor intervirmos antes destas dificuldades se estabelecerem no desenvolvimento infantil. É uma supervisão contínua.Gilda Santos: E inclusive online. Também temos que dar ferramentas aos pais e torná-los conscientes dos perigos que existem na internet, não é? E falar da necessidade, principalmente durante a adolescência, de supervisionarem os filhos. Mas, atribuir aos pais essa responsabilidade toda, não é justo. Porque é que as crianças e os jovens podem aceder a essas redes sociais? Isso tem que ser responsabilidade das redes sociais. Margarida A. Santos: Se qualquer criança de 10 anos consegue ter um Instagram, é porque alguma coisa está errada.amanda.lima@dn.pt.Gangues juvenis: "A violência na família é o caldeirão onde muita desta delinquência ganha forma".RASI: Delinquência juvenil, roubos a bancos e violações aumentaram em 2024