"A base das Lajes não perdeu valor estratégico com o fim da Guerra Fria, só ganhou"

"Entre o carro de bois e o avião: uma pequena comunidade no centro de uma rivalidade global" foi a tese do jornalista açoriano Armando Mendes que lhe deu o doutoramento pelo ISCTE em História, Defesa e Relações Internacionais. Mas mais do que olhar para o passado da base das Lajes, o investigador tenta agora perceber porque razão nunca os EUA desistirão dela.

A base das Lajes perdeu valor estratégico com o fim da Guerra Fria ou essa perda é mais recente?
A base das Lajes não perdeu valor estratégico, só ganhou. A base das Lajes na Guerra Fria tinha um papel na realidade bipolar e agora tem muitos papéis na nova realidade, que é uma realidade assimétrica, dispersa, ainda com pouco conhecimento sobre a evolução das coisas, mas a verdade é que já não vivemos numa realidade bipolar, vivemos numa situação multipolar. As pessoas fazem uma confusão que é: se se faz um downsizing numa base, pensam que se fez esse downsizing porque ela perdeu importância, não pensam que o downsizing foi feito porque há outras realidades, há outras formas de fazer a guerra, outras formas de estar e de ocupar o espaço.

Está a dizer que os americanos não deixaram de valorizar as Lajes, só que não as usam como usavam durante a Guerra Fria e portanto precisam de menos pessoal?
Usar, usam, eu já explico. Há três formas de ter um espaço: uma é de uma forma muito visível, para a ação; outra é de uma forma absolutamente invisível, que é para negação, ou seja, não se quer estar ali, mas também não se quer que ninguém esteja e se ninguém estiver está tudo bem porque não precisa de se estar lá; a terceira, é ter aquilo reservado para si. Os Açores funcionam das três maneiras, por isso é que muitas vezes se torna invisível a importância do espaço geoestratégico dos Açores.

Em que situação estão os Açores neste momento?
Nas três. Temos a base das Lajes em ação...

Diminuta em relação ao antes...
Não sei. Neste momento temos os P8 Poseidon que substituem os P3 Orion a fazerem operações de busca de submarinos, porque os russos estão no Atlântico com submarinos de ataque de alta performance. Continua intacta a capacidade de combustível da base das Lajes e continua-se a manter uma série de operações na base que nós, obviamente, não sabemos muito bem para que são, quais são as finalidades. Continua a haver os sistemas de comunicação, os sistemas de redundância das comunicações. Está tudo operacional. Ou seja, voltando novamente ao problema da visibilidade: é mais importante a operação que hoje se faz na base das Lajes com pouca visibilidade? É mais indispensável a operação que há hoje na base, eventualmente invisível, ou a operação que se fazia de reabastecimento no solo que agora se pode fazer no ar? O problema é que se faz no ar, mas tem de ser a partir daqui. Ou de outra maneira: não podes ter hostilidade aqui, daí a explicação para a negação de acesso. Ou seja, os norte-americanos e a NATO, mas sobretudo os norte-americanos no caso dos Açores, não querem nem podem ter potências concorrentes nos Açores. É isso a negação de acesso. Posso explicar de uma forma muito prática com a História: no final do século XIX Portugal meteu-se numa dívida brutal, aliás como é costume, e para resolver o problema havia várias hipóteses. A que estava mais em cima da mesa era dividir Portugal entre algumas potências. Ora, a solução que foi encontrada foi a de entregar os Açores a Inglaterra para que esta tratasse dessa dívida. Assim, os Açores estiveram entregues a Inglaterra entre o final do século XIX e o fim da segunda Guerra Mundial - depois houve passagem de mão para os Estados Unidos - e, praticamente, não se sabia. Foi preciso alguns investigadores irem a arquivos ingleses para se saber o que se tinha passado. E o que é que se passava aqui: passava-se que a Inglaterra nem sequer precisava de usar os Açores, precisava era de que outros não usassem os Açores. Então, os açorianos ficaram impedidos de desenvolver os seus portos, de ter contactos e contratos com as potências marítimas em ascensão e que se afirmavam, como a França, a Alemanha, etc. Portanto, ficámos aqui numa situação de pobreza por não nos podermos relacionar internacionalmente, porque os Açores estavam a ser usados numa estratégia de negação. Quer isto dizer que embora eu não queira usar, os outros também não podem usar porque isto é demasiado estratégico e vão-me causar problemas se o usarem. No caso, era causar problemas ao controlo que a Royal Navy tinha do Atlântico e das entradas e saídas do Mediterrâneo. Portanto, nós vivemos as três circunstâncias. Agora, ninguém tenha ilusões: quando nós fizemos o Acordo das Lajes de 1995 - um outro mito, que é bom que fique claro -, a ideia vigente em Portugal era a de que a base das Lajes tinha deixado de ter importância uma vez que tinha acabado a Guerra Fria. Era essa a ideia corrente em Portugal, e foi com base nessa ideia que Portugal negociou. O Prof. Medeiros Ferreira explicou que cada vez que há negociações com potências estrangeiras, em Portugal há ideias muito estranhas, como, por exemplo, desvalorizarmo-nos a nós próprios, eventualmente a soldo das potências estrangeiras - é uma hipótese, isso poderá ter acontecido em Portugal. A verdade é que enquanto Portugal andava a negociar a base das Lajes, assumindo que isto não era importante, os americanos - isto está escrito em documentação que eu próprio descobri e usei na minha tese de doutoramento - estavam a dizer: Acabem lá com essa negociação porque nós precisamos de usar isso rapidamente com liberdade, porque o mundo pós-Guerra Fria vai ser um mundo mais complicado do que aquele que existia durante a Guerra Fria.

"Os russos estão no Atlântico, e eles têm uma boa tradição de marinha e, no caso, estão aparentemente a evoluir bem na arma submarina"

É um mundo mais complicado, mas provavelmente não vai haver aquelas operações como o apoio a Israel na Guerra do Yom Kippur que fizeram as Lajes míticas. É tudo mais discreto hoje em dia.
Por enquanto, são mais discretas. Há potências em ascensão que se estão a posicionar. Como eu disse, os russos estão no Atlântico, eles têm uma boa tradição de marinha e, no caso, estão aparentemente a evoluir bem na arma submarina que os americanos, ou a NATO, tentam controlar com os P8. Os chineses têm a frota no Mediterrâneo e já se preparam para ter bases no Atlântico, sobretudo na costa de África e, obviamente, vão querer subir. Pelo menos, passam a degradar a situação no Atlântico a partir da costa de África. Há as novas rotas que se vão abrir com o crescimento do comércio no Atlântico através da rota do norte e das rotas que os chineses estão a preparar. O controlo dos Açores é absolutamente essencial. Ou seja, a importância geoestratégica de um lugar não é pelo aparato, é pelas funções que ele desempenha, é se as funções são importantes, se são decisivas ou se não são importantes e não são decisivas. As funções do espaço geoestratégico dos Açores são importantes e decisivas.

Então o downsizing está a ser mal interpretado. No fundo, afirma que estamos a valorizar muito o impacto humano, ou seja, o número de americanos que havia cá e o emprego que isso criava na comunidade local, e estamos a interpretar isso como uma perda de importância geoestratégica da base?

São novas formas de fazer a guerra, são novos desafios que os EUA e a NATO, mas, no caso, sobretudo os EUA, têm e são formas de dar resposta a esses novos desafios. É possível dar resposta, hoje, com as tecnologias existentes, etc., com menos gente e com outro tipo de recursos. Isto não quer dizer que o espaço geoestratégico seja menos importante, o que quer dizer é que é usado de outra forma, e o que quer dizer também é que do ponto de vista dos EUA o espaço não pode ser é usado por outros. Já imaginou o que seria os Açores fazerem acordos, por exemplo, com os chineses, e que estes colocassem nos Açores uma força chinesa qualquer, que teria de ser "civil", entre os EUA e a Europa?

"Já imaginou o que seria os Açores fazerem acordos, por exemplo, com os chineses?"

Há quem diga que os EUA nunca poderiam prescindir nem do Havai (que é um estado americano) nem dos Açores. Isso significa que essas são as duas fronteiras distantes dos Estados Unidos?
Eles encararam sempre isso como as suas duas fronteiras distantes, como duas zonas de contenção.

E isso não mudou?
Não. E também como zonas de projeção. Por exemplo, podemos dizer que hoje em dia os aviões podem passar por cima e fazer projeção de força, mas não é bem assim porque depende do que queremos pôr dentro do avião - se queremos carregar o avião muito ou se queremos carregar o avião pouco. Isso tem que ver com a otimização da plataforma. Muitas vezes, para ser bem otimizada, ela terá de ser abastecida efetivamente em terra ou abastecida no ar a partir de uma zona qualquer. A verdade é que se se fizer projeção de força dos EUA para espaços da Europa, Médio Oriente, África, etc., não se pode ter a zona dos Açores degradada com inimigos aqui.

Daquilo que tem investigado, não exclui que um dia possa haver um reinvestimento americano, até em termos humanos, nos Açores?
Será sempre variável de acordo com as necessidades, de acordo com as formas de fazer a guerra, de acordo com as tecnologias presentes e de acordo com os desafios que forem sendo colocados. O que eu defendo é que o espaço geoestratégico dos Açores é absolutamente essencial para o controlo do Atlântico, fundamentalmente desta zona do Atlântico, mas também para intervir no Atlântico Sul. As formas de uso, é que umas vezes nós percebemos, outras vezes não percebemos. Para percebermos, por exemplo, a forma de uso das Lajes, temos de perceber as novas formas de fazer a guerra, temos de perceber muito bem os novos desafios, temos de perceber que a realidade bipolar bruta da Guerra Fria acabou e que o mundo hoje é multipolar. Isto significa desafios que envolvem várias potências e já percebemos alguns deles e outros ainda não. Já percebemos que a Rússia, ao contrário do que se dizia, pode ser um problema; já percebemos que o Médio Oriente, afinal, é sempre um problema; já percebemos que determinadas zonas de África são problemas recorrentes, etc. Enfim, nós já começámos a perceber isto tudo que se dizia que tinha acabado com o fim da Guerra Fria, afinal não acabou, continua a existir e os espaços geográficos em determinadas zonas da Terra continuam a ser muito importantes para o controlo destas coisas. O que é inconcebível é controlar esta zona do Atlântico, fazer a ligação entre o território continental norte-americano, a Europa, África, etc. e não controlar o espaço geoestratégico dos Açores.

"A verdade é que se se fizer projeção de força dos EUA para espaços da Europa, Médio Oriente, África, etc., não se pode ter a zona dos Açores degradada com inimigos aqui."

Até agora tem estado a falar como académico, agora vou-lhe fazer uma pergunta como açoriano, como terceirense. Sente um vazio grande nesta redução das Lajes, por aquilo que as Lajes representavam no dia a dia da população?
Sim, mas nós temos de ver isto pela seguinte perspetiva: temos de falar um pouco dos impactos das bases. Os impactos das bases, sobretudo bases com a dimensão das da Guerra Fria, que eram equiparadas a pequenas cidades norte-americanas - cidades dos subúrbios norte-americanos - era um impacto ilusório, porque essas bases tenderam sempre a congregar a economia das zonas onde se implantaram e no caso de uma ilha isso era verdadeiramente evidente. Depois, ou com processos de downsizing por alguma razão, ou até com o encerramento de bases, deixam uma situação de terra queimada que, economicamente, é extremamente complicada. Foi efetivamente o caso que aconteceu na base das Lajes com a perda significativa de emprego, com a perda significativa de negócios que estavam agregados à base e a funcionar à volta das Lajes. Tudo isso sem substituição porque nós não estávamos preparados. Nunca pensámos que a Guerra Fria ia acabar, que existiriam novas formas de pensar a guerra, que existiriam novas tecnologias, que a utilização dos espaços seria subordinada às novas tecnologias, que os desafios da rivalidade que aí vinha iriam ser diferentes. Nunca pensámos porque nunca quisemos estudar nada disso. É uma característica dos Açores e de Portugal também. Uma ou outra pessoa estuda isto, mas em termos de massa crítica, nós não estudamos estas coisas.

Está a dizer que o famoso downsizing poderia ter sido antecipado?
Fomos apanhados de surpresa. A grande lição que nós tiramos disto, da base das Lajes, é que não podemos voltar a ser apanhados de surpresa. Nós não temos de pensar em voltar a ter uma base com a dimensão da base das Lajes. Há quem faça vida a pensar nisto, mas isso não vai provavelmente acontecer e, se acontecer, é por pequenos períodos. O que nós temos de pensar é em montar uma economia que seja alternativa e que não seja dependente de uma base militar.

A base das Lajes, durante uns anos, foi como se houvesse petróleo aqui na ilha Terceira. Não vale a pena pensar que se vai descobrir outro poço de petróleo...
Não. Nós temos de pensar efetivamente numa economia sem uma base militar, desligada de uma base militar, e tudo o que vier da base militar vem por bem. Ou seja, nós temos de negociar esta base, aliás está na altura de renegociar porque o contrato é de 1995 e em relação a outra base completamente diferente. Só que nós temos aqui um problema: para negociar temos de ter conhecimento, ou seja, nós temos de saber efetivamente, inquestionavelmente, para que é que esta base serve. Mais importante ainda: quando nós estamos a falar da base das Lajes, ela representa o espaço geoestratégico dos Açores. Portanto, temos de saber, inquestionavelmente, para que é que serve o espaço geoestratégico dos Açores, para que é que as potências querem esse espaço, para sabermos o que é que isto vale para cada uma das partes que vão estar em negociação. E nós não sabemos. Nós, pura e simplesmente, não sabemos. Nunca estudámos estes fenómenos. Qual é o exemplo que eu posso dar? Imagine que tem uma casa em Lisboa, mas não é de Lisboa e nunca estudou o mercado em Lisboa, e quer vender a sua casa. Se não conhecer o mercado, não falou com ninguém que conheça o mercado, qual é o preço que vai pedir pela casa? Nem sequer sabe o que é que casa vale para o outro que vai para lá... Portanto, não sabe muito bem como é que vai negociar. A base das Lajes é a mesma coisa. Por exemplo, em 1995 nós assinámos um acordo que, pela documentação que é pública e que eu trabalhei, foi assinado no pressuposto de que o espaço geoestratégico dos Açores não valia nada para os Estados Unidos.

Desvalorizámos o nosso produto?
Desvalorizámos. Agora está na altura de voltar a um acordo, mas eu tenho muito medo de que voltemos a um acordo, porque nós queremos outras coisas dos EUA, queremos pequenas coisas dos EUA. Podemos dar o espaço geoestratégico dos Açores em troca dessas pequenas coisas - como habitualmente acontece, como tem acontecido - e depois quem vai perder outra vez vão ser os Açores.

É óbvio que a base afetou a sua vida porque investiga a relação de defesa dos EUA com Portugal, mas de um ponto de vista mais íntimo: foi uma criança que cresceu na ilha Terceira, o que é que esta presença dos americanos lhe dizia? Eram os jeans que podia ter, era a Coca-Cola que bebia, como é que isso lhe chegava a si?
O meu pai trabalhou desde sempre na base das Lajes e o meu irmão também trabalha na base, portanto a minha ligação às Lajes é muito importante. Há aqui uma outra dimensão da base das Lajes que eu tenho de contar: é que a base trouxe outro mundo à ilha Terceira. A primeira vez que há televisão em Portugal é a partir da base das Lajes, metade da ilha Terceira começa a ver televisão antes de Portugal sonhar sequer, lá fora em Lisboa, que havia televisão. Há a estação de rádio americana. Alguns dos melhores grupos de música rock, pop, jazz, vieram aqui à ilha. Nós temos aqui discografia muito antes de aparecer a música anglo-saxónica, sobretudo americana, no espaço europeu. Nós sempre usufruímos disto tudo, criámos uma cultura que é efetivamente portuguesa, mas com toque anglo-saxónico.

Isso distingue a Terceira das outras ilhas dos Açores?
Isso distingue a Terceira das outras ilhas dos Açores e não só. Isto espraia-se pelos Açores porque nas primeiras décadas da base há muita gente das outras ilhas que vem trabalhar para as Lajes e que leva esta cultura consigo. As consequências são, efetivamente, um modo de vida diferente e, de facto, uma riqueza diferente, tanto em termos económico-financeiros como em termos culturais.

A Terceira é uma ilha mais aberta, mais tolerante, mais cosmopolita?
Não tenho dúvidas nenhumas.

E é por causa da base?
É por causa da base das Lajes. Aliás, uma das coisas que estamos a tentar estudar é precisamente esse impacto em várias vertentes. Uma das minhas ideias, por exemplo, é tentar perceber se o impacto da cultura americana à volta da base das Lajes mudou a perspetiva das pessoas expostas. Por exemplo, eu sei que para os açorianos, a pena de morte não é aceitável. Será que é aceitável para aqueles que andaram décadas expostas à cultura americana e à televisão americana?

Falando dos muitos legados dos americanos da base, há um, o ambiental, que tem levantado agora especiais dúvidas. Pode explicar?
Todas as bases da dimensão da base das Lajes vão criando, nas zonas onde estão implementadas, um legado ambiental complicado. A base das Lajes criou um legado ambiental extremamente complicado, chamado crosscontamination. Porque é contaminação a partir de vários elementos: hidrocarbonetos, metais pesados e mais uma série de coisas, que afetou e afeta os aquíferos, os solos e também afeta o ar através da emanação a partir dos solos. É um problema que foi trazido para a opinião pública em 2008 pela primeira vez por mim. Através de documentos que me foram entregues por norte-americanos que me disseram que não havia maneira de resolver este problema e, portanto, se eu queria pegar no assunto no Diário Insular e na Antena 1 Açores. Eu disse que sim e os americanos entregaram-me primeiramente o relatório de uma empresa alemã e quando se foram embora um deles virou-se para trás, apontou-me o dedo, e perguntou-me assim: "Do you have balls for this?". Se tinha coragem. Respondi: "vou tentar". Depois juntei a este processo um professor da Universidade dos Açores, Félix Rodrigues, com conhecimentos mais técnicos, pois a minha formação é nos Estudos de Defesa e Segurança e Relações Internacionais. E conseguimos que fosse feita uma abordagem nas comissões que gerem o acordo das Lajes, pelos americanos, pelos Ministérios da Defesa e dos Negócios Estrangeiros em Portugal, mas o assunto não tem sido resolvido. Sei que o atual governo regional quer encarar isto numa perspetiva que leve a alguma forma de resolução. E se houver renegociação do acordo das Lajes entre os EUA e Portugal esse terá de ser um dos pontos fortes.

leonidio.ferreira@dn.pt

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