"Eu sou a Via Láctea, lar de mais de cem mil milhões de estrelas e dos 50 sextiliões (é um cinco seguido por trinta e sete zeros) de toneladas de gás entre elas. Eu sou espaço; sou feita de espaço; e estou rodeada por espaço. Eu sou a maior galáxia que alguma vez existiu". Em poucas palavras, a astrofísica dos Estados Unidos, Moiya McTier, expressa a dimensão do objeto astronómico a que dá vida no livro Via Láctea, Uma Autobiografia da Nossa Galáxia (Bertrand Editora). Na obra lançada em Portugal este 2023, a também etnóloga, entrega uma voz à Via Láctea e oferece-nos um relato autobiográfico de uma entidade com uma vida longa: "Tudo começou há cerca de 13 mil milhões de anos, quando as nuvens de gás que se espalhavam pelo plasma primordial do universo não conseguiam manter as suas mãos metafóricas longe umas das outras. Sucumbiram à sua atração gravitacional, e daí nasceu a galáxia que conhecemos como Via Láctea"..Da síntese sobre esta origem remota que nos é dada na apresentação do livro, partamos para uma escala mais humana, a da meninice da autora, nascida em 1995, e dos porquês para partir à procura das estrelas. "Cresci numa cabana de madeira no meio da floresta na zona rural da Pensilvânia. Não tinha TV, sistema de aquecimento ou água corrente. As minhas tarefas incluíam carregar baldes de água da bomba exterior e cortar lenha para abastecer o fogão a lenha. A bandeira confederada mais próxima adejava muito mais próximo do que o negro mais próximo. Era um lugar interessante e foi uma forma de crescer", lemos na nota biográfica no site de Moiya MacTier. Uma afirmação que é substanciada no prefácio ao livro: "A floresta era o melhor recreio que uma filha única podia desejar, um espaço para inventar demandas épicas, procurar círculos de fadas ou encontrar o ramo perfeito para usar como cajado (...) no entanto, a comunidade em torno dessa floresta, cujos habitantes até então só tinham visto uma pessoa negra na televisão, não seria provavelmente o sítio que eu teria escolhido para viver.".Moiya olhava para as estrelas e acreditou que o Sol e a Lua eram os seus pais celestiais: "Conversava com a Lua quando era mais jovem, mas não estava interessado em observar estrelas ou na astronomia para além disso. A minha mãe tentou algumas vezes que olhássemos as duas para as estrelas. Eu reclamava e ia dormir.".Moiya MacTier quis fugir daquele lugar embrenhado na floresta, próximo à fronteira da Virgínia Ocidental. A Universidade de Harvard foi o caminho seguido para uma jovem que, tal como na sua infância, continuava apartada da astronomia: "Não entrei para astrofísica até ao meu segundo ano de faculdade, quando uma amiga me pediu para assistir a uma aula de astronomia com ela." O enlevo com a astronomia foi súbito, "pela natureza lógica e assente em dados. Mergulhar na astrofísica foi como aprender a falar com o espaço de um modo totalmente novo, que me deixava ouvir um pouco mais o que o universo estava a dizer em vez de inventar as respostas na minha cabeça". Em paralelo, Moiya aprofundava o seu amor pela mitologia, as "histórias que as várias culturas usavam como instrumentos para divertir, educar e explicar". Ciência e mito são instrumentos que nós, humanos, usamos para compreender o nosso lugar e como nos encaixamos no resto do universo"..Após quase dez anos a estudar a física do espaço, cinco deles num programa de doutoramento (na Universidade de Columbia), Moiya confessa-se mais ligada às pessoas e à natureza: "Percebemos como é realmente frágil o ecossistema complexo e interligado que consideramos a nossa casa, e as nossas escaramuças humanas mesquinhas parecem pequenas e desnecessárias"..Munida de um percurso académico que a aproximou das estrelas, a cientista decidiu assumir em livro a voz da mãe de muitas estrelas, milhares de milhões delas, a Via Láctea, à qual os humanos também chamaram ao longo dos tempos Rio de Prata, Caminho dos Pássaros, Salto do Veado, Caminho do Ladrão ou Palha. À pergunta sobre os porquês para escrever um livro sobre a Via Láctea na perspetiva da própria, a autora desarma-nos com a natureza do pronome pessoal que utilizámos : "É interessante que diga "ela" porque, intencionalmente, não dei um género à Via Láctea. Eu uso sempre o pronome demonstrativo "isso", mas, de facto, muitas pessoas assumiram que a Via Láctea seria feminina. Respondendo à sua pergunta, queria escrever na perspetiva da galáxia porque parecia mais divertido do que escrever um livro de ciências mais tradicional. Não leio muitos livros de não ficção, então essa foi a minha forma de tornar o projeto semelhante aos livros de fantasia que gosto de ler"..Fantasia que leva a astrofísica a, amiúde, entreter a escrita e a imaginação em torno de novos mundos. É, inclusivamente, apresentadora e produtora do podcast Explore, que explora a construção de mundos ficcionais através da lente da ciência. "Gosto de imaginar todo o tipo de mundos diferentes. Não é apenas uma questão de começar com a Terra e adicionar elementos ao nosso planeta. O meu processo começa antes disso. Posso imaginar a vida e a cultura num planeta gasoso, ou num planeta que orbita vários sóis, ou talvez até mesmo nenhum sol. Estudei exoplanetas quando fiz o doutoramento e, dessa forma, sei que os planetas são incrivelmente diversos. Ensino sobre a ampla gama de possibilidades através do meu trabalho de construção de mundos". Uma forma de transcender a dimensão terrena que já levou Moiya a prestar serviços de consultoria para a Disney nos seus mundos ficcionais. Um projeto sobre o qual a autora é reservada nas explicações: "Não tenho permissão legal para fornecer pormenores sobre essas consultorias, mas posso dizer que os ajudei a pensar nos detalhes de alguma da ciência e magia que estão a usar em alguns de seus próximos projetos.".Moiya McTier foi, de acordo com a própria, "a primeira pessoa da história da universidade a estudar astronomia e mitologia em simultâneo. A meu ver, a astrofísica e a mitologia tentam responder ao mesmo tipo de perguntas: de onde viemos? Como funciona o universo? O que acontecerá num futuro distante? Os astrofísicos modernos podem responder a essas perguntas com simulações matemáticas e de computador, mas há milhares de anos os humanos tentaram respondê-las através de histórias que explicavam as suas observações do mundo. Além disso, praticamente todas as culturas antigas prestavam atenção ao céu. Desta forma, podemos estudar registos antigos, lendas e artefactos culturais para entender como era o céu, o que nos ajuda a entender como este mudou ao longo do tempo". Como olha, então, a nossa galáxia para os mitos humanos sobre as suas origens? "A Via Láctea só começou a prestar atenção aos humanos por causa dos mitos de origem", enfatiza Moiya, para acrescentar: "Gostava [a Via Láctea] de ser uma personagem ou protagonista central dessas histórias, mesmo sabendo que as histórias não captavam a verdade. Mas pelo menos significavam que lhe estávamos a prestar atenção.".A Via Láctea antropomorfizada por McTier tem uma voz solene, sabedora e é dotada de forte personalidade, dirigindo-se diretamente a nós, humanos: "Olhe à sua volta, humano. O que vê? Pensando bem, não responda. Porque haveria eu de lhe dar ouvidos quando sei que as respostas estão erradas?". Por vezes desafiante: "Se possuírem uma fração que seja da curiosidade necessária para se interessarem por este livro, talvez estejam a pensar com os vossos botões: "Mas como é que a Via Láctea fala?"" Uma boa deixa para perguntarmos à autora como encontrou a voz para a sua Via Láctea? "O meu editor e eu explorámos algumas vozes diferentes para a Via Láctea. Uma opção pareceu-nos a mais estimulante, mas não parecia correta para algo tão grande quanto a Via Láctea. Outra voz era mais como um irmão de uma fraternidade um pouco idiota. Por fim, a voz que ouvi foi inspirada pela ciência. É a personalidade que imaginei que uma criatura teria se passasse milhares de milhões de anos a enfrentar frustrações e fracassos sem fim". De facto, a Via Láctea personificada na escrita de McTier trabalha muito, chegando a confessar-nos: "Ser uma galáxia todos os dias é esgotante." Porquê? "A Via Láctea produz um punhado de novas estrelas todos os anos, mas cada uma delas é um projeto de milhões de anos em construção. Além de formar estrelas, a Via Láctea precisa manter e supervisionar o movimento das estrelas, o que é difícil porque há mais de 100 mil milhões delas para acompanhar. A Via Láctea também é a principal responsável por manter o nosso grupo local de galáxias junto devido à sua gravidade", sintetiza a astrofísica que em 2018 publicou um estudo sobre a identificação de montanhas em planetas fora do sistema solar..Se entre a miríade de humanos, à nossa galáxia fosse dada a oportunidade de escolher mentes brilhantes que a desvendam quais seriam as eleitas? perguntamos a Moiya que, diplomaticamente nos responde: "A Via Láctea aprecia qualquer humano que dedique o seu tempo a aprender mais sobre ela [há dez mil astrónomos entre perto de oito mil milhões de humanos]. Todavia, alguns entre os seus favoritos modernos são provavelmente pessoas como o astrónomo Edwin Hubble, a astrónoma Vera Rubin e, claro, eu.".O pragmatismo do trabalho de Moya McTier não a afasta de uma dimensão irreal e fantasista que, aliás, não nega. Imaginando que, de facto, mantinha uma conversa com a nossa galáxia e que lhe colocava uma pergunta ainda não respondida pela ciência que questão seria? "Provavelmente perguntaria se algum elemento do sobrenatural e paranormal é real. Ou seja, algo deste género: "existem fantasmas ou fadas ou dimensões alternativas?"".No correr da obra, a Via Láctea parece dirigir-se aos humanos zangada e com pouca paciência. "Eu não diria que a Via Láctea está zangada connosco, porque não se importa suficientemente com os humanos para assumir uma atitude de raiva. Realmente, não somos importantes no esquema cósmico das coisas. Mas está aborrecida e confusa com as nossas ações, principalmente com os comportamentos que nos afastam ainda mais da adoração do céu. Do meu ponto de vista, como autora, direi que estou com raiva do comportamento humano e da maneira como tratamos o nosso planeta, e foi bom expressar um pouco disso no livro", desabafa Moiya..Afastar-se da Terra, até aos confins da galáxia [o disco da galáxia tem de comprimento 100 000 anos-luz], trouxe à autora uma nova perspetiva do nosso planeta? "Absolutamente", devolve-nos Moiya McTier e conclui: "Escrever este livro deu-me uma perspetiva totalmente nova sobre o universo que considero muito útil na minha vida quotidiana. Eu já sabia o quanto a Terra é diminuta no universo, mas uma coisa é saber e outra é familiarizar-me pessoalmente com essa escala astronómica. A Terra costumava parecer grande, mas agora parece íntima. Pequenos inconvenientes costumavam parecer o fim do mundo, mas agora sei que passarão em pouco tempo. Sinto-me muito mais em paz depois de escrever Via Láctea"..Via Láctea, Uma Autobiografia da Nossa Galáxia Moiya McTier Bertrand Editora 216 páginas