334 inquéritos crime sobre violência policial em investigação. Subiram 57% num ano

Desde 2020 que a Lei de Política Criminal determina que crimes contra a vida e contra a integridade física praticados por polícias devem ser investigados prioritariamente, tal como já acontecia com estes crimes quando cometidos contra agentes de autoridade. Uma repercussão do caso da morte de Ihor Homeniuk, no qual o Supremo Tribunal de Justiça salientou as exigências quanto à prevenção geral e quanto à prevenção da violência policial.

O Ministério Público (MP) instaurou 334 inquéritos-crime relativos a denúncias de violência policial em 2021, mais 57% do que no ano anterior (212), quando estes casos foram pela primeira vez incluídos nos crimes de "investigação prioritária" e discriminados estatisticamente.

De acordo com fonte oficial da Procuradoria-Geral da República (PGR), trata-se de dados "respeitantes a inquéritos instaurados por denúncias contra agentes da autoridade por atos de violência no exercício de funções, na sua maioria, por ofensa à integridade física simples, ofensa à integridade física qualificada e abuso de autoridade por ofensa à integridade física".

A Lei de Política Criminal (LPC) para o biénio de 2020-2022 tinha determinado que estes crimes passassem a ser considerados de "investigação prioritária", tal como já acontecia com as agressões contra os agentes de autoridade.

No entanto, nada mais se sabe a não ser este número de inquéritos-crime. A PGR não facultou outras informações que já tinham sido pedidas por organizações internacionais, que permitiriam aferir do resultado das investigações, como o número de acusações, sentenças e punições. "Os dados disponíveis são aqueles que foram enviados", retorquiu este porta-voz.

Portugal foi apanhado em falha pelo Comité para a Prevenção da Tortura e Tratamentos Desumanos do Conselho da Europa (CPT), que, no seu relatório sobre o nosso país, pediu estas estatísticas.

Conforme o DN noticiou na altura, a PGR (com a ex-procuradora-geral Joana Marques Vidal à cabeça) assumiu que não tinha dados organizados sobre violência policial e o Ministério da Justiça (MJ), com Francisca Van Dunem como Ministra, reconheceu também não ter essas informações, além de afirmar que não tinha intenção de alterar os "critérios estatísticos".

Colocando Portugal entre os países da Europa com mais casos de violência policial e maus-tratos nas prisões, este organismo do Conselho da Europa solicitava, com o objetivo de ter um "retrato completo do número de casos de alegados maus-tratos por elementos das forças de segurança, bem como o resultado das investigações", estatísticas sobre "o número de queixas registadas no Ministério Público (MP) em relação a danos corporais graves alegadamente infligidos por membros da GNR, da PSP, do SEF, ou guardas prisionais; o número de acusações deduzidas pelo MP nos casos acima mencionados; e o número de sentenças proferidas pelos tribunais, incluindo informações sobre a punição concedida em cada um desses casos".

Queixas mal ou nada investigadas

Arrancava o ano de 2018 quando o relatório do CPT foi divulgado, cerca de seis meses depois de - numa decisão histórica - o MP ter acusado 18 membros da PSP por crimes de tortura, sequestro, injúria e ofensa à integridade física qualificada, agravados pelo ódio e discriminação racial, contra seis jovens negros da Cova da Moura, na Amadora.

O processo, que tinha começado com as vítimas a serem constituídas arguidas, acusadas de terem invadido a esquadra de Alfragide, levantou muitas questões sobre a forma como eram investigadas as denúncias de violência policial.

Mas essas perguntas ficavam sem resposta por não haver qualquer sistematização dos dados dessa realidade.

Tanto mais que se veio a saber, através de uma inspeção do MP ao Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) da Amadora, noticiada pelo DN, que nessa comarca havia muitas queixas desse tipo arquivadas sem sequer serem investigadas convenientemente ou feitas as perícias exigíveis.

"Verificou-se a existência de um número significativo de inquéritos contra agentes da PSP pela prática de factos que, eventualmente, poderiam integrar crimes de abuso de poder. Globalmente, a investigação não teve a exigência que aquele tipo de crimes exigiria, nomeadamente num contexto social etnicamente diversificado", escreveu, nas conclusões da inspeção, o já jubilado procurador-geral adjunto Alípio Ribeiro, que era inspetor do MP.

Esta observação reportava a 2014, um ano antes do caso Alfragide / Cova da Moura, que ocorreu em fevereiro de 2015.

Dois anos antes, uma avaliação das Nações Unidas, através do seu Grupo de Trabalho de Peritos sobre Pessoas de Ascendência Africana, já tinha reportado que na Cova da Moura "a polícia toma por alvo imigrantes afrodescendentes e leva a cabo operações em larga escala nos bairros onde aqueles residem", com os "jovens de ascendência africana da comunidade" a serem "vítimas frequentes de perfilamento racial por parte da polícia, que os manda parar nas ruas para os interrogar apenas devido à cor da sua pele".

O efeito da morte de Ihor Homeniuk

Seria, no entanto, preciso esperar por 2021, quando, aprovada a nova Lei de Política Criminal, a procuradora-geral da República, Lucília Gago, emitiu a diretiva para a execução da Lei, clarificando a forma como devem ser investigadas as denúncias de violência policial.

Mais do que os casos da Amadora, envolvendo afrodescendentes, esta alteração dever-se-á à morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, a 12 de março de 2020, sob custódia do SEF, e a tentativa desta polícia de encobrir o que se passara, apresentando o óbito como "natural".

No acórdão em que confirmou a condenação a nove anos de prisão dos três inspetores acusados pela morte de Ihor, o Supremo Tribunal de Justiça salientou as exigências quanto à prevenção geral da violência policial.

"As imposições de prevenção geral devem ser determinantes na fixação da medida das penas em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afetados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano", escreveram os magistrados, estatuindo: "A expectativa dos cidadãos no modo de atuação dos seus agentes autoridade não é o de que resolvam questões comportamentais mediante agressões físicas a quem quer que seja, mas antes que se rejam pelas normas legais que, em primeira linha, juraram cumprir e fazer cumprir."

Conforme o DN já noticiou, era até 2011 suposto que os casos de violência policial tivessem um tratamento especial na PGR, em cumprimento de uma ordem, de 1993, do então procurador-geral Cunha Rodrigues, segundo a qual "as ocorrências em que são intervenientes agentes de autoridade requerem tratamento que evidencie a relevância criminal dos factos, o seu tratamento por instâncias formais de controlo e respetiva evolução processual".

Ordenava-se assim que os procuradores comunicassem "diretamente e no mais curto prazo ao gabinete do PGR todas as ocorrências criminais que deem origem à instauração de inquéritos contra agentes de autoridade, remetendo cópia da respetiva denúncia ou auto de notícia, ou informação especificada quanto à identidade completa e categoria dos agentes e tipos de crime objeto da investigação".

Esta ordem de Cunha Rodrigues é anterior à criação da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI), que surgiu em 1996 (ano em que ocorreu o homicídio e posterior decapitação de um detido no posto da GNR de Sacavém), com a incumbência de fiscalizar as polícias sob tutela do ministério da Administração Interna e de investigar disciplinarmente as queixas apresentadas contra agentes das forças de segurança.

Durante alguns anos, a IGAI publicou anualmente relatórios sobre as mortes e outras violências atribuídas às polícias sob a sua fiscalização, e resultado dos inquéritos disciplinares a elas atinentes, permitindo obter uma ideia da dimensão do fenómeno - o que deixou de acontecer, ou só sucede parcialmente. Os dados da PGR respeitantes a esta realidade foram sempre de acesso mais difícil.

Em 2011, 18 anos depois da decisão de Cunha Rodrigues, o procurador-geral Pinto Monteiro revogou o despacho do antecessor, no âmbito de um "processo de atualização e reformulação da base de dados" do MP. O que durou 10 anos, deixando por esclarecer muitos crimes.

Na sequência do caso de Alfragide, o MP da Amadora passou, por iniciativa do então procurador coordenador, Helder Cordeiro (que deduziu a acusação contra os 18 polícias da esquadra de Alfragide) a ter uma atenção especial para este género de denúncias .

Em 2018, como também noticiou o DN, este magistrado pediu à PJ (cuja Unidade Nacional de Contraterrorismo tinha sido responsável pela investigação de Alfragide /Cova da Moura) que investigasse vários outros inquéritos reabertos, igualmente respeitando a queixas de violência policial.

Questionada a PJ , desde o passado dia 28 de novembro e com duas insistências, sobre o resultado destes processos não deu qualquer resposta.

O que são crimes de investigação prioritária

Na sua diretiva nº 1/2021, a Procuradora-Geral da República indicou as "instruções genéricas para a execução da Lei de Política Criminal para o biénio 2020 / 2022". No entanto, vigoram as normas.

De acordo com a PGR, "a investigação de alguns dos tipos de crime prioritários, pela sua natureza, gravidade e complexidade, demanda a adoção de métodos de investigação que congreguem a intervenção de diversos órgãos de polícia criminal e/ou de outras entidades e organismos que detenham características diferenciadas, designadamente mobilidade de atuação, meios técnicos adequados às exigências investigatórias e competências de elevada especialização".

Quanto aos inquéritos "contra a vida e contra a integridade física praticados contra ou por agentes de autoridade", demanda a PGR que "a investigação deve, sempre que possível, e de acordo com a respetiva estrutura organizativa, ser concentrada em secção especializada ou semiespecializada do departamento competente, ou, não sendo possível, ser afeta a magistrado do Ministério Público com experiência e competências técnicas específicas em matéria de investigação deste tipo de crimes".

Estas investigações "não devem ser delegadas no órgão de polícia criminal em causa, devendo, sempre que possível, ser realizada pelos magistrados do MP, em especial as diligências de inquirição dos ofendidos e das testemunhas presenciais dos factos, e, se for o caso, do interrogatório do arguido".

Note-se que em alguns processos referidos na inspeção do MP na Amadora, alguns queixosos de violência policial foram apenas inquiridos por oficiais de justiça ou outros funcionários do DIAP, relevando o desvalor atribuído aos casos. No caso de Ihor Homeniuk, o SEF nem sequer pediu a intervenção da PJ.

Na sua diretiva, Lucília Gago ordena que os magistrados deem especial atenção "à célere averiguação da existência, no local dos factos, de câmaras de videovigilância, para efeitos de determinação da preservação e remessa ao MP das correspondentes gravações; ao apuramento da existência de fotografias e exames médicos ou registo de observação médica ou de enfermagem a ofendido que tenha sido conduzido a estabelecimento prisional, e que tenham sido realizados aquando da sua entrada no estabelecimento; às diligências que recaiam sobre a avaliação médico-legal, imprimindo a maior celeridade possível à sua concretização; à célere inquirição do(s) ofendido(s)".

Assinala ainda que "do auto de notícia, da denúncia ou de outros elementos juntos, que resulte a eventual prática de atos contra a vida ou a integridade física praticados por agentes da autoridade, bem como nos casos em que arguido presente ao MP ou ao juiz de instrução apresente lesões compatíveis com eventuais agressões, os magistrados do MP deverão ponderar a adequação e a necessidade de abertura de inquérito autónomo para a investigação desses factos ou a sua investigação no inquérito em causa".

No caso de Alfragide / Cova da Moura, recorde-se, as vítimas foram apresentadas como agressores e constituídas arguidas, por decisão da juíza de instrução, não tendo, inicialmente, o MP aberto qualquer inquérito autónomo.

Conclui a diretiva que os inquéritos contra agentes de autoridade devem ser "comunicados à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e à Inspeção-Geral da Administração Interna" e "deverá ser ponderada a necessidade e adequação de estabelecer mecanismos de articulação com aquelas entidades relativamente a segmentos investigatórios comuns, designadamente recolha de elementos probatórios relevantes".

Não se sabe ainda como resultou esta "articulação", nem que consequências tiveram todas estas alterações de procedimentos, uma vez que, conforme informou a mesma fonte oficial da PGR, "os trabalhos de elaboração do Relatório de Execução da Lei de Política Criminal encontram-se em curso".

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG