25 Abril. No Estado Novo, a Igreja foi "amordaçada", mas "não se resignou", diz o bispo José Ornelas
PAULO CUNHA/LUSA

25 Abril. No Estado Novo, a Igreja foi "amordaçada", mas "não se resignou", diz o bispo José Ornelas

Para o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, no início "a Igreja também se anichou dentro do regime", desde logo porque "era sobrevivente de toda a confusão política de ainda antes, no século XIX, e depois no século XX, com a República, que foram [tempos] muito violentos" para a instituição.
Publicado a
Atualizado a

O bispo José Ornelas olha retrospetivamente para a situação da Igreja durante o Estado Novo e não tem dúvidas: "foi uma Igreja amordaçada, mas também uma Igreja que não se resignou".

Para o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), no início "a Igreja também se anichou dentro do regime", desde logo porque "era sobrevivente de toda a confusão política de ainda antes, no século XIX, e depois no século XX, com a República, que foram [tempos] muito violentos" para a instituição.

"E o regime dava assim uma espécie de ninho, de refúgio. E esse foi o mal-entendido, porque depois as coisas vieram a complicar-se e não foi a Igreja que saiu vitoriosa desse confronto", diz José Ornelas em entrevista à Lusa, destacando que, depois, sobreveio uma "época de luz, de luta, de descoberta de novas coisas".

Desde logo, "o Concílio Vaticano II [iniciado no pontificado do Papa João XXIII, em 11 de outubro de 1962, e terminado em 8 de dezembro de 1965, já com Paulo VI] aconteceu como algo de tremendamente revolucionário dentro da Igreja".

"E esse espírito chegou também a Portugal" através dos padres que foram estudar para o exterior, "alguns dos quais depois se tornaram bispos -- [como] o bispo do Porto [António Ferreira Gomes], como emblemático de toda esta situação, como alguém que nunca se vergou aos ditames do regime e que, por isso mesmo, foi exilado", recorda.

O também bispo de Leiria-Fátima sublinha, ainda, "a atitude do Papa Paulo VI, que conhecia bem a situação portuguesa desde quando era Secretário de Estado" do Vaticano relativamente a um "regime que estava fechado em si próprio e que não escutava a voz de ninguém, nem dos seus parceiros políticos e militares, que eram quem permitia a guerra em África, que o condenavam a nível diplomático, mas depois tornavam possível também a aventura militar em que Portugal estava metido".

"O Papa conhecia isto e, por exemplo, muito significativo, nunca nomeou um substituto para o bispo residencial para o Porto em lugar de D. António Ferreira Gomes. Foram sempre administradores, até que ele pôde voltar depois da morte de Salazar", lembra.

O prelado reforça o papel de Paulo VI no alerta para a situação vivida em Portugal com a sua visita a Fátima, em 1967, para o cinquentenário das aparições, e que escancarou o ambiente de tensão entre a Igreja Católica e o Governo.

"Foi [uma visita] tensa, também no encontro dos dois [Paulo VI e Salazar] em Monte Real, porque o Papa não quis ir a Lisboa, (...) e foi um momento muito claro, não só o Papa não ter ido a Lisboa, receber Salazar na Base de Monte Real, vir diretamente a Fátima e voltar para Roma, mas também logo em seguida [01 de julho de 1970], receber os líderes dos movimentos [africanos] que lutavam pela Independência", sublinha José Ornelas, admitindo que "isto foi algo que, para os próprios crentes portugueses, foi completamente difícil de entender".

Afinal, vivia-se o período em que a narrativa oficial era a de que os militares portugueses estavam em África "a defender a fé e o Império".

Para o jovem José Ornelas, seminarista na altura, quando o 25 de Abril chegou, a questão da necessidade de transição para a democracia "estava completamente resolvida".

"Tinha educadores, algum deles, a maioria, eram italianos que não concordavam claramente com o regime. Mas foram muito inteligentes e pedagogos. Nunca deram propriamente um sinal de que eles queriam fazer a revolução. Ouvi deles: vocês é que têm de a fazer, nós queremos fazer-vos perceber o que é realmente uma democracia, o que é um país a funcionar", relembra o presidente da CEP.

No seminário de Coimbra, este atual bispo madeirense dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos) -- congregação de que já foi superior-geral -- encontrou "padres que falavam muito claramente" da situação.

"Aí começou verdadeiramente tudo. Nessa altura, o meu irmão tinha ido combater para a Guiné. Lembro-me que eu tinha escrito um aerograma a dizer-lhe que estava muito orgulhoso de ter um irmão a combater pela pátria. E ele escreveu no aerograma seguinte: 'Pensava que já tinhas crescido'. Só isto", recorda, admitindo que este foi mais um "clique" que o despertou para a realidade.

Posteriormente, em Lisboa, passou dois anos no então Instituto Superior de Estudos Teológicos, onde encontrou professores como Frei Bento Domingues, e onde conviveu com um oficial do Exército que ali ia estudar Teologia.

"Era um oficial que nos fazia fotocópias -- na altura, era o stencil que funcionava, as fotocópias eram raras ainda e caras. Mas ele trazia-nos sempre do Exército e disse-nos claramente que pertencia ao Grupo de Informações e que estava no ISET precisamente para saber qual a temperatura que se vivia por ali. No fim de semana antes do 25 de Abril, ele disse-nos: 'esta semana, ou há um banho de sangue ou isto muda'".

E mudou mesmo, numa altura em que "tínhamos a noção de que o regime estava podre, estava a cair por si próprio", acrescenta o presidente da CEP.

O bispo José Ornelas
PAULO CUNHA/LUSA

África foi importante para a revolução e para a abertura da Igreja

O bispo José Ornelas está convicto de que África foi importante para o 25 de Abril, devido à guerra colonial, mas também para a abertura da Igreja, face à visão mais avançada de muitos missionários.

"É que em África, o Concílio Vaticano II entrou muito mais rapidamente. Naquele momento, estava-se a nível mundial a aplicar o Concílio, e onde é que isso se deu mais? Nos países mais pobres, que aspiravam à independência, mais pobres e mais sofredores, debaixo de regimes ditatoriais", lembra o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, que pouco tempo depois da revolução rumou a Moçambique.

Segundo o bispo, "as comunidades de base na América Latina fizeram tremer os regimes, concretamente no Brasil".

"Foi isso que passou também para a África portuguesa", considera.

"Aquilo que estamos a viver agora, falando de uma Igreja sinodal, uma Igreja de participação de leigos, uma Igreja na mão de leigos, etc, isso eu vi tudo acontecer em Moçambique, de 1974 a 1976", lembra, acrescentando que o bispo de Nampula, Manuel Vieira Pinto [que foi expulso do território], "foi uma das pessoas que mais trabalhou neste campo, mas os missionários vinham com uma ideia nova e, muito antes do 25 de Abril, transformaram a Igreja em Moçambique".

Por outro lado, "fruto disso são também aqueles estudantes que eles [os missionários] formaram nas missões e se tornaram líderes da Frelimo, quase todos. A primeira geração da Frelimo foi educada [por missionários], e não podia ser de outro modo, porque as escolas eram as missões que as desenvolviam, [tal como] escolas, hospitais".

Apesar desta proximidade, a Igreja não deixou de viver tempos difíceis em Moçambique depois da independência, com os carros e as casas das missões a serem "nacionalizadas". Mas, "os padres construíram cabanas e foram viver para o meio da gente, tanto que a Frelimo dizia: 'Saiu-nos o tiro ao contrário. Pensávamos que eles iam embora, ficaram mais próximos e mais difíceis de controlar'".

José Ornelas afirma que "nas missões lia-se até mais do que aqui [no continente]. Os missionários e as missionárias -- também os portugueses - eram gente muito mais à frente, porque davam-se conta da situação que lá [em África] existia".

"Sabia-se muito bem que a maioria dos missionários das congregações religiosas eram favoráveis à independência e detestavam este regime colonial que estava completamente fora daquilo que eram as correntes do tempo, do novo mundo que se queria criar", avança José Ornelas, não esquecendo que foram os padres de Burgos que denunciaram o massacre de Wiriyamu, e depois foram expulsos de Moçambique.

Para José Ornelas, "as colónias e a Igreja nas colónias foram elementos muito importantes, que devem ser estudados ulteriormente", referindo o recente livro dos jornalistas Manuel Vilas Boas e Amadeu Araújo -- Moçambique: da Colonização à Guerra Colonial - A Intervenção da Igreja Católica -, como um documento que "dá bem conta desta situação".

O facto de se estar em período pós-Concílio Vaticano II, acontecimento que "traz uma revolução copernicana dentro da forma de entender a Igreja", é também fulcral para a predisposição de, dentro da Igreja, na chamada Metrópole, também aparecer muita gente disposta a contestar o regime.

"Normalmente, começava-se por descrever a Igreja desde o Papa aos bispos, aos padres e depois, no fundo, o povo, sobre o qual exerciam a sua autoridade todos os outros.

O Concílio começa com uma outra coisa, começa pela noção de Povo de Deus. E isto parece uma brincadeira, mas não é. (...). É isto que vai dar origem às comunidades de base, que vai dar origem a uma nova conceção do ministério dos padres e dos bispos. Que vai recuperar a originária noção do que é liderança e autoridade dentro da Igreja", afirma José Ornelas.

O prelado recorda que "começa dentro da própria Igreja esta discussão", embora reconheça que "em Portugal demorou a chegar", acrescentando que "isto é a própria noção de Igreja que põe em causa o regime, para quem quisesse tomá-la a sério, e muita gente tomou".

E as experiências novas começaram a surgir: "nós cantávamos as canções do padre Fanhais, traduzíamos canções de fora que nos davam outra imagem de Igreja, eu ensinei nas barracas à volta de Lisboa, ali concretamente entre Alfragide o Bairro da Boavista, onde agora passa a CRIL, [dei] aulas com o método Paulo Freire, que não é simplesmente aprender a ler, é aprender a pensar. Era proibido [este método] e está na origem também da revolução e das comunidades de base, que eram comunidades de desenvolvimento de fé, e [também de] desenvolvimento e compromisso político", sublinha o bispo que lidera a hierarquia católica em Portugal.

E depois, havia a Ação Católica, "que foi perseguida pelo regime, mas foi daí que nasceu o laicado consciente" e, também nas universidades, "quanta gente, alguns dos quais ainda hoje estão na cena política, foram católicos empenhados na transformação da Igreja. Vem tudo disto".

"A Igreja, também aqui, foi promotora da transformação", acrescenta, para reforçar, o papel do Papa Paulo VI nesta mudança.

"Uma das pessoas que foi fundamental foi o Papa Paulo VI. Conhecia bem a situação portuguesa e o que ele fez foi nomear uma série de bispos" - a começar por António Ribeiro, que substituiu Manuel Cerejeira como patriarca de Lisboa -- que deram "um rosto novo à Igreja em Portugal".

E se, a par desta evolução no seio da Igreja, faz questão de afirmar que "a construção da democracia portuguesa teve um caminho de sucesso", não esquece o que o seu mentor dos tempos de estudante, o padre italiano Gastão Canova, lhe disse na tarde do próprio dia 25 de Abril de 1974: "Ornelas, [foi] bonito hoje. Mas, agora é que começa a dificuldade. Instaurar um regime democrático é razoável, é fazer uma revolução e virar as coisas, deitar abaixo a ditadura. Foi muito importante, mas agora trata-se de construir a democracia e viver em democracia e aí começam as dificuldades", embora "dificuldades bonitas

É preciso responder às "reais necessidades do povo"

O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) identifica riscos para o futuro da democracia em Portugal e alerta para a importância de "encontrar formas honestas capazes de responder às reais necessidades do povo e não simplesmente a chavões ideológicos".

"O problema está tantas vezes aí. Joga-se muito com teorias necessárias do ponto de vista económico, do ponto de vista financeiro, do ponto de vista da educação, do ponto de vista da saúde, mas depois é preciso que isso se traduza em soluções", diz o bispo José Ornelas.

Para este bispo católico, Portugal não é "um país perfeito", no entanto, sublinha que, depois de "viver em vários países", não o trocaria facilmente por outro.

"Mas, acho que nós precisamos de melhorar, segundo aquilo que nós somos, segundo a nossa identidade, a nossa história, que vão crescendo e vão alargando, porque outros estão a chegar e é importante que essa gente que chega tenha gosto de viver neste país", afirma, numa referência concreta aos imigrantes que procuram Portugal para viver.

"Temos de encontrar maneira de resolver essa questão, que hoje é fundamental para todo mundo, que é a solução para um mundo que é cada vez mais generalizado, cada vez mais universalizado, mas que nunca pode deixar de ser o mundo em cada lugar onde se vive, correspondendo às necessidades de quem lá está", afirma.

E perante os que "se proclamam Messias, que têm solução para tudo, e fáceis", José Ornelas é claro: "esses não vão resolver o problema (...). Se as coisas fossem assim tão simples, chegávamos lá cedo".

"Mas é preciso que todos tenhamos realmente a capacidade de participar dentro do sistema. Ser livres e críticos em relação àquilo que apreciamos, àquilo que apoiamos, àquilo que deixamos de lado, para fazermos realmente um mundo que não seja simplesmente à minha medida, mas à medida daqueles que nos rodeiam e para encontrarmos um mundo melhor", acrescenta.

Convicto de que ao "25 de Abril é preciso reinventá-lo cada dia, porque hoje temos problemas que há 50 anos não tínhamos, mas também temos recursos que há 50 anos não tivemos", o presidente da Conferência Episcopal entende ser necessário encontrar "um projeto comum para o país", capítulo onde, acredita, "a Igreja tem um papel importante, sempre teve".

"Eu acho que a Igreja sempre teve um papel importante do qual nunca se desligou, e que pode ser entendido ou não. (...) A Igreja está ao serviço de... tem um projeto que nunca se vai esgotar num partido, numa ideologia, num regime", sublinha José Ornelas.

Para o também bispo da diocese de Leiria-Fátima, "a Igreja tem de estar sempre misturada, amassada com a realidade onde vive, mas tem de estar aí como fermento e como semente, humildemente, mas sem abdicar do seu papel de sonhar e ajudar a sonhar um mundo novo".

"Não tenho de me confundir com um partido, não tenho de me confundir com uma delegação do Estado, nem coisa nenhuma. Eu não sou Estado. Não quero ser, nem é esse o meu caminho, mas tenho um grande amor a este povo e tenho também uma pretensão, isso sim, de trazer alguma solução", enfatiza, reconhecendo: "as pessoas têm ideias diferentes e é interessante ver como tantas vezes se cruzam, mais do que a gente pensa, se nos escutarmos um bocado uns aos outros".

E como está, 50 anos depois do 25 de Abril, a relação entre a Igreja Católica e o Estado?

"Desde que nós ponhamos o povo, que nós queremos servir, como objetivo, nós vamos sempre encontrar caminhos de convergência. Na altura em que estivermos a perguntar-nos [sobre] quem é que ganha mais com esta iniciativa, quem é que fica mais importante, quem é que passa para frente das imagens, nessa altura, entornamos o caldo", responde.

O presidente da CEP faz ainda questão de defender que a Igreja sempre esteve presente, muitas vezes "substituiu o Estado", deixando o desafio de que o Estado "tem de se tornar presente, não simplesmente pela sua autoridade e presença no território, mas, fazendo-se presente através da proteção" a todas as instituições "que trabalham em favor do povo".

"E não falo só da Igreja, falo de tantas outras instituições -- veja-se a saúde, os mais idosos, as crianças, o desporto, enquanto instituições de pessoas que não têm (...) senão o desejo de colaborarem para um mundo melhor. E nisso todos devem ter o apoio do Estado", conclui José

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt