Morte a pedido viola ou não a Constituição?

Constitucionalistas ouvidos pelo DN dividem-se: Costa Andrade, Isabel Moreira e Bacelar de Vasconcelos dizem que não, Paulo Otero e Jorge Miranda pensam o contrário
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"Não se compatibiliza, está à margem da Constituição, não se pode referendar." É desta forma que o constitucionalista Paulo Otero começa por falar da eutanásia, socorrendo-se do artigo 24.º da Lei Fundamental: "A vida humana é inviolável." Semelhante linha de raciocínio apresenta o pai da Constituição, Jorge Miranda, ao passo que os especialistas em direito constitucional Manuel da Costa Andrade, Pedro Bacelar de Vasconcelos e Isabel Moreira invertem a lógica e "colam-se" ao manifesto "Direito a morrer com dignidade": a perspetiva legal deve ser vida como direito inviolável, sim; como dever irrenunciável, não.

Mais do que ideológica - que também o é -, a linha que separa os especialistas partidários do "sim" e do "não" é esse artigo. Jorge Miranda considera que a morte assistida "colide" com a Constituição. "Atentar contra a vida humana, seja no início [referindo-se ao aborto], seja no fim colide com esse princípio ético", refere o professor universitário ao DN.

No entanto, Otero e Miranda divergem quanto à necessidade de mexer na Constituição para acomodar a morte assistida. "Penso que teria de haver revisão constitucional. Qualquer outra forma seria inconstitucional", aponta Otero; "Não houve revisão constitucional quando se legalizou o aborto. Provavelmente se se avançar com uma lei sobre a eutanásia poderá ser encontrada uma justificação qualquer", nota Miranda.

Já Isabel Moreira, falando a título pessoal - é subscritora do manifesto - e não como deputada do PS, salienta o contrário: "A eutanásia ou a morte assistida prende-se precisamente com a defesa do direito à vida, no sentido de uma vida digna." E vai mais longe ao notar que o direito à vida não deve ser "visto isoladamente", mas, ao invés, "em diálogo" com os restantes.

A parlamentar socialista explica assim que "a Constituição neste caso não dá a resposta fixa e, portanto, o legislador é livre de tomar uma opção no sentido de manter a legislação como está ou de avançar nesse sentido". Sem a beliscar.

"O que aconteceu noutros países que permitem a eutanásia foi uma opção livre do legislador, uma interpretação que o legislador tem o direito de fazer, olhando para a sociedade como ela é hoje, e tendo em conta uma interpretação atualista, laica, dos valores éticos que estão plasmados na Constituição", reforça.

Tese que o presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, Pedro Bacelar de Vasconcelos, subscreve. "Em abstrato, não há incompatibilidade entre a perceção dos direitos fundamentais, designadamente o direito à vida, tal como estão consagrados na Constituição, e aquilo que está em causa nesta iniciativa - nesta petição que só por acaso não subscrevi", salienta o deputado socialista, que afirma que "não, não é necessária uma revisão constitucional" para abrir caminho à eutanásia. E afasta-a liminarmente sugerindo que não se pode "constitucionalizar o problema nem transformá-lo numa questão técnica."

"Cada direito é conflituante com outros. Neste caso verificam-se as duas coisas: o direito à vida, mas também o direito à dignidade e não se pode dizer que a vida está acima da dignidade ou o contrário. Não há uma hierarquia entre esses valores. Há uma compatibilização inteligente, atual, que tem de ser feita, e transformar a Constituição no obstáculo ou no instrumento de inscrição desse tipos de reivindicações é negativo", sustenta.

Já o deputado constituinte Costa Andrade (PSD) sublinha que o artigo 24.º não é posto em causa com a eutanásia. "Não colide. O direito [à vida] é inviolável, quando ameaçado contra a vontade da pessoa. É mais para vedar a pena de morte", nota. "O que vai acontecer é um recuo da lei penal, que não afronta a Constituição.

"Até pode haver outras formas de proteger a vida humana. O direito penal protege os valores e bens jurídicos mas na medida em que são considerados necessários. Há bens em que a tutela não é necessária, sem pôr minimamente em causa a vida humana", explica.

O professor universitário observa, porém, que não se opõe a que a morte assistida seja referendada e critica os deputados que assumem essa posição. "É uma boutade dizer que não se referenda a liberdade. É um soundbite sem relevo absolutamente nenhum. Quem diz não se referenda a liberdade também devia dizer não se legisla a liberdade. Se dez milhões não se podem pronunciar como é que 230 podem?", questiona Costa Andrade.

Por sua vez, Jorge Miranda não exclui essa hipótese mas não tem dúvidas quanto a eventuais diplomas que venham a emanar do Parlamento: "Se fosse Presidente da República, vetaria [iniciativas sobre a eutanásia]."

Paulo Otero aponta no mesmo sentido. Embora frise que cabe ao Chefe do Estado, e apenas ao Chefe do Estado, tomar essa decisão, indica que o inquilino de Belém - e esta matéria vai cair nas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa - "não pode abdicar dos seus valores éticos". Sob pena de "despersonalização" da mais alta figura do Estado.

A propósito da consulta popular, é contundente: "A vida não é referendável."

Já para contestar alterações à lei invoca dois argumentos: o Estado "deve ter meios que promovam a vida humana" - realça a importância dos cuidados paliativos para doentes terminais - e o "compromisso ético-deontológico dos médicos com a vida". Assim, deixa a questão no ar: "Poderá a eutanásia transformar-se numa solução para um problema económico-financeiro e também social?"

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